23 December 2006

Ensinamento Às Crianças de Saragoça


Às crianças da escola Hilarion Gimeno, de Saragoça, a quem impediram de celebrar o Natal, para não ofender outros credos.

Queridas Crianças de Saragoça, venho-vos explicar o mundo, como um filósofo velho que acolhe, como avô, os pequenos no regaço. Porque há coisas, crianças, que os outros velhos, que se chamam adultos, não querem que vocês saibam: mas é urgente que saibam! Percebo que não percebam muito do quanto percepcionam e cada dia é uma novidade e cada espaço, uma vontade de ser maior, sendo mais sabido. E, no entanto, Deus!, às vossas perguntas, só têm o eco como resposta. Por isso vos sento hoje aqui, Crianças de Saragoça, e vos falo do Natal.

Sei que na vossa escola não há Natal. E, coitados de vós – ó arautos de permanentes porquês! –, que não entendem a cidade, porque na cidade há Natal. Há luzes confusas nas árvores do jardim municipal – mas também isso, sabeis?, não é Natal. Os vidros das lojas têm azevinhos e tons encarnados, como fosse tudo um grande pecado – o pecado de celebrar o Natal. E, subitamente, tudo fica mais barato (ou assim se promove) – coisa bizarra, quando se pensa que, depois, logo seguem os saldos: que pensam os adultos? Mas nem isso, crianças, nem isso é verdadeiramente o Natal. Aliás, coisa mais esquisita ainda, é vocês receberem presentes, ainda por cima, sempre no mesmo dia do ano. Eu sei a vossa alegria e como voam aladas de brinquedos, mas, lá no fundo, comichão!, há essa grande confusão de perceberem a razão por detrás da atitude, porque tanto quanto os pais vos tenham dito, vocês fazem anos noutro dia.

É uma época, a bem dizer, aberrante – um pouco como os adultos. E na vossa cabeça pequena e no vosso coração grande, não faz sentido nenhum – só porque desconhecem, porque vos calaram, o que acontece. Não que as coisas para serem belas ou agradáveis tenham de fazer sentido, mas nenhuma de vocês, crianças, acredita, certamente, que os adultos são surrealistas, que são o único género de pessoas que fazem coisas muito divertidas, mas sem sentido nenhum.

O mais enervante, porventura, é que, maldição!, o vosso primo, que até é um ano mais novo do que vocês – o primo de Barcelona, que vem sempre passar esta altura convosco (o que é uma coisa, em si, também esquisita: por que inspiração todos acorrem, pastores peregrinos, à gruta de vossa casa?) – ele sabe o que se passa, certamente, porque não parece nada confuso – e vocês nunca o tomaram por palerma. Há um grande mistério, e nenhum Holmes para o resolver.

Ai Crianças de Saragoça!, fazem-vos cegas, mas como os dentes novos que vos nascem incessantemente, brota em vós nova vista continuamente. E que eu vos dê a luz, que não seja artificial ou um néon disparatado a piscar numa rotunda. Ficai pois sabendo, ó Crianças de Saragoça, que toda a barafunda instalada em torno a vós, todo o hábito estranho que constatais agora, nada mais são que manifestações superficiais de uma coisa profunda, mas que, talvez a medo que fiqueis corcundas com o peso da verdade, os adultos vos escondem. Mas, ai!, sabeis?: nem têm más intenções, os vossos pais – julgo apenas que eles mesmo já são ignorantes.

Por isso, vós que me escutais arrebitados, ide hoje dizer a vossos pais, que há algo de profundamente errado nisto tudo, enquanto o ser humano for um macaco que teimou em não se submeter a Darwin. E como macaco, copiar uma tradição que herdou e mais não sente – e mais não lhe conhece a causa. E erguei-vos, crianças, a homens: vós que estais mais perto, porque ainda o tendes fresco na memória, do que é nascer. E ide dizer ao vosso primo de Barcelona que afinal, ah!, também ele andava enganado pela coca-cola: porque o Natal, o Natal, niños, é só – e é tanto! – a festa de um outro Ninõ que nasceu.

O Príncipe


Havia pressa minha, mas havia a contrapor, do outro lado, urgência. Parei, escutei amenamente (mau grado o frio que se faz sentir nestes últimos dias que são também os dias últimos), e ganhei felicidade em assinar o papel: tinha-me inscrito na Amnistia Internacional, em mais uma das suas campanhas de rua. No próximo domingo celebram-se 58 anos sobre a adopção pela Assembleia Geral das Nações Unidas da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Contudo, a Amnistia ainda existe – porque, infelicidade!, continua a ter trabalho.

O caso de Alexander Litvinenko persiste em no-lo relembrar. O antigo tenente-coronel dos serviços secretos russos morreu a 23 de Novembro, em Londres, onde residia, exilado, na sequência de um envenenamento, por polónio-210, no início do mês passado. Dissidente, da sua boca e da sua pena saíam fortes denúncias do maquiavelismo das cúpulas políticas russas. Alguns apelidavam as suas teses de ‘lunáticas’; mais recentemente, concentrava-se no caso da jornalista russa Ana Politkovskaia, fortíssima crítica de Putin, também ela assassinada, em princípios de Outubro, com quatro tiros no elevador de sua casa.

Não desejo repetir o que os media repetiram. Mas, vendo aquela fotografia de Litvinenko, já na fase terminal, no hospital, a minha mente teimava em descarrilar para as memórias que guardava de Yushchenko, o malogrado presidente da Ucrânia, de rosto desfigurado, vítima também ele de envenenamento, por recusar o protectorado subjugador da Rússia e olhar alto para a Europa à esquerda. Ninguém pode afirmar nada, nada pode acusar ninguém: a política tem sempre a subtileza de um pano de veludo como luva de uma mão de ferro – e ficamos restritos a enunciar factos, quando todos, nos cantos, anunciam, porque sabem, os criminosos. De resto, já não há informação independente na Rússia para dizer a verdade mesmo que alguém a desconhecesse: só na última década, 261 jornalistas russos foram mortos.

Paralelamente, no mesmo dia em que uma dessas mártires, Ana Politkovskaia, foi assassinada, Putin celebrou os seus 54 anos. José Milhazes, jornalista conhecido de alguns, que mantém um dos mais interessantes sítios da blogosfera (http://blogs.publico.pt/darussia), dava conta, in loco, das celebrações. Destacava, com ilustrações, o concurso lançado a crianças de todo o país, as quais eram convidadas a desenharem o presidente: o vencedor receberia um cachorro, irmão da cadela de Putin. O segundo premiado levaria um quimono de judo, desporto favorito do presidente, e o terceiro um manual de alemão pelo qual Putin, enquanto agente da KGB, estudara. Em meados do século XX, isto seria reconhecido como culto da personalidade.

De facto, é viva a ligação entre o chefe e o seu povo: Putin dá entrevistas, respondendo a perguntas dos internautas sobre a sua vida pessoal, compõem-se canções apresentando o presidente como paradigma de masculinidade, e o povo ama-o tanto que, na referida celebração do seu aniversário, na Tchetchénia, as autoridades organizaram uma reunião de 60 000 pessoas, pedindo que Putin altere a Constituição para que se possa recanditar uma terceira vez. Incrível!

Ao mesmo tempo, esse «povo», de acordo com a sondagem de uma rádio moscovita, concorda que o assassinato de Litvinenko foi “a realização da lei russa de combate ao terrorismo no estrangeiro”. Durão Barroso comentou, no novo cargo: «Temos um problema com a Rússia. Na verdade, vários problemas. Demasiadas pessoas forma mortas e não sabemos quem as matou.» As crianças, lá fora, no recreio, trauteiam: «O rato roeu a rolha da garrafa...».

22 December 2006

Artes Plásticas


Saiu recentemente em DVD a terceira temporada de Nip/Tuck, uma série americana de grande sucesso centrada na vida de dois cirurgiões plásticos. A série, polémica, aborda de forma inovadora a actividade destes profissionais explorando os dúbios limites éticos da sua profissão. Paralelamente, estreou na semana passada o novo reality show do canal quatro: Doutor, Preciso de Ajuda! Estou convencido que é a estação quem precisa de ajuda e dum facelift urgente.

A persistência e a insistência no modelo dos reality shows, progressivamente mais aberrantes e espectaculares que os anteriores, é algo que, mau grado a válida explicação sociológica, me começa a confundir. Certo: há a curiosidade natural, o voyerismo quase hitchcockiano, uma longa cultura de imprensa cor-de-rosa que assenta no mesmo sentimento. Também é verdade que nem todos os reality shows gozaram da mesma fama, alguns notabilizando-se pela negativa. Porém, que justifica que, ciclicamente, reapareçam? Raramente se fala da possível relação do fenómeno com a incapacidade criativa do espectador. O telespectador médio perdeu o sonho depois de ter sido criança e ter acreditado em duendes. Porque não é capaz de um exercício de ficcionalidade, porque toda a ficção surge ante ele como delírio especulativo, ele busca então os programas ditos reais ou os que reflictam prtensamente o seu real (telenovelas). Nietzsche pôs a tragédia grega vítima esganada às mãos de fenómeno análogo.

Doutor,... espelha a necessidade da aparência. O programa oferece aos seus participantes uma cirurgia plástica, transmitida publicamente: no fundo, cultiva-se o gosto que levou à morte, na semana passada, da jovem modelo brasileira Ana Carolina. Uma das primeiras concorrentes – relatava o Público – “47 anos, motard nos tempos livres, já é avó, mas acha as conversas das pessoas da sua idade uma chatice”. Aqui se mostra a hipocrisia profunda da sociedade: a candidata, ao submeter-se a uma operação de rejuvenescimento, vai-se disfarçar, com patrocínios. E, numa terra de máscaras, espantamo-nos com as declarações do primeiro-ministro húngaro de que é necessário mentir povo: somos cães da mesma raça.

Mas notai!: “No nosso programa há muita informação médica, há conversas com anestesistas, com nutricionistas, que explicam os passos tomados”, reafirma Miguel Stanley, ideólogo do projecto. Não se trata de qualquer ficção inconsistente: todos os procedimentos são cientificamente explicados, o que representa evidentemente um contributo impagável de educação pública ou até “uma forma de trabalho social”! Ai, que riso amargo!: sim, é trabalho social, porque trabalho para o social, para a aparência, para o inglês, que é português, ver.

Eduardo Moniz vem em defesa do programa explicando: “Não poderíamos passar este programa antes das 23h. Sim, porque nós cumprimos as regras!”. Por isso, pelo respeito pelas regras, é que 25% do emitido na televisão em Setembro foi publicidade e a TVI domina no valor gasto. E há regras, caro Moniz, que não se acham escritas em Diário da República algum... Essas são conhecidas pelo nome de ética. Mas “quem tem ética passa fome”. A TVI é um exercício de kitsch – mas isso é só um sinal de esterilidade. Porque, admire-se o recém-nascido!, também este Doutor,... não é mais que uma variante de um já testado estereótipo. De produtos artificiais como os D’ZRT (que precisaram de se legitimar chamando ao segundo álbum Original), passando por Inspector Max (cujo único excerto que vi, num restaurante, me convenceu da inabilidade primária do director de fotografia) até Doutor,..., a TVI chapinha de cópia em cópia, até criar pastiches sem consciência da sua essência ridícula.

Na América, há Nip/Tuck – em Portugal, Doutor,...: cada um tem o que merece.

O Processo


Quando o bicho espevitou o olho, permaneci adormecido – e guardei silêncio. Sabia em mim muita coisa e deixei que o mundo seguisse o seu curso natural. Há um prazer hediondamente cínico em rir por último: mas até o cinismo era entre os gregos uma escola de filosofia! Acolhi, pois, como um déspota a notícia dos jornais que ordenava que o Ministério da Educação repetisse apressadamente o exame de Química a uma aluna de Coimbra, cidade do conhecimento!, e que, a obter média igual ou superior à de acesso em Medicina, se abrisse nova vaga na vetusta Faculdade local. Ah!, que gozo, ah!, que espanto!

Recordo, vívido!, uma altercação na TSF, no dia em que me fui candidatar à Universidade, e o comentário de um ouvinte que afirmava que se geraria o caos se todos os exames fossem repetidos. E eu disse, deus feito: «Faça-se o Caos!» e o Caos fez-se por tribunal. Faço figas secretas agora pela desconhecida que se sentará numa sala vigiada por dois docentes e responderá certas às perguntas. E, nessa altura, se ainda houvesse honra, a Ministra demitia-se.

De um lado, pois, se erguem prometeicos exames prometedores; do outro, esgaravatam os cientistas da 5 de Outubro as suas pedagogias alucinadas e declaram eurekas!: Filosofia não terá mais exames nacionais. [Só há, coisa de somenos, cerca de 300 cursos que aceitam Filosofia como prova de ingresso.] A Ministra e a sua equipa são reencarnações, em linha directa, sem interrupção, dos juizes que condenaram Sócrates no Areópago: estabeleço definitiva a tese da metempsicose! A Filosofia é arma do pensamento: e o Governo não quer armas, e o Governo não quer pensamento: e o Governo não quer revolução! E o Governo quer poder.

O silogismo é breve: ou a Ministra é de uma ignorância tal que não consegue perceber a fundamentalidade da Filosofia e então, pobre!, falando como Cristo, perdoemos-lhe, porque não sabe o que faz; ou a Ministra é suficientemente lúcida para entender aquilo que está em jogo e, então, é claro a intenção propositada e maléfica nisto tudo. Não há inocência na política: e todos têm as mãos cheias do sangue de Lady Macbeth. Repito: está em curso um processo de estupidificação.

E não nos deixemos enganar pelas mentiras! Ontem, como hoje, os “cérebros” quando não fogem, são vandalizados. Prova disso é a recentíssima demonstração dos bolseiros da área das Ciências frente ao Parlamento: alheados do sistema de Segurança Social, estes jovens – tantos deles, demasiado deles! – vivem em absoluta precariedade, não tendo assegurada reforma ou não podendo, sem grande luta, conseguir um pequeno crédito numa instituição bancária. Não me cabe aqui discutir que outro sistema de bolsas pode ser reinventado, cabe-me assegurar que seja respeitada a dignidade destes manifestantes – e não que sejam achincalhadas pelo Estado.

A nossa educação é kafkiana, isto é, não tem sentido nenhum. Os velhos gregos primavam por que as suas crianças desde cedo fossem cultivadas na música, na língua, na ciência e na filosofia. A primeira, ninguém sequer se levanta para discutir a sua inclusão obrigatória a substituir ridicularidades como Área de Projecto; a língua, com a nova terminologia, pode ter ficado mais cientificamente correcta, mas aparece hidra às crianças que se têm de fazer Hércules para a vencer; quanto à ciência e filosofia, já falámos. Estamos cada vez mais distantes do tempo absoluto de Sophia, esse tempo que aprenderíamos do exemplo dos helenos. No último Jornal de Artes & Letras, sugeria-se um referendo aos currículos: estou plenamente de acordo. Mais, faça-se um referendo à Ministra e sua equipa! Mais ainda, faça-se um referendo à interrupção voluntária do Governo!

Negativo


A 13 de Outubro – esse dia de azar, sexta-feira – a Academia do Nobel (dispensa-se a leitura à la Saramago) galardoou Muhammad Yunus com o Prémio Nobel da Paz 2006: sorte grande dos pobres! A 2 – o único canal que vale a pena ver, agora que o Dr. House acabou na TVI – emitiu sábado passado um documentário sobre a revolução, como dom, que este professor de economia ofereceu aos miseráveis (num tempo em que Vítor Hugo já morreu). O conceito de microcrédito, patenteado por ele, é tanto mais fascinante quando compreendemos que não se trata, como inicialmente seríamos tentados a fazer, habituados que estamos, de um donativo de caridade, mas sim de um verdadeiro e formal empréstimo, inclusive com juros. Eis que o capitalismo – esse bicho amorfo que uns viam castrado de fazer bem – se mostra, esplendoroso, pela coisa simples, mas nunca antes experimentada – a solução esperada.

É notável o relativo pouco destaque que alguns meios de comunicação social deram ao anúncio norueguês, mas tristemente mais espantoso é como pessoas com a têmpera de Yunus permanecem ostracizadas pelos media, por escolha destes últimos: em contrapartida, uma revista de há duas semanas noticiava com importância que José Castelo Branco tinha sido contratado para um circo. É que Yunus não devia ser propriamente desconhecido: só este ano, já tinha sido galardoado com o Prémio da Paz de Seul e o Prémio Madre Teresa. Entristece-me mais ainda, contudo, saber que, para o ano, poucos se recordarão do nome deste filantropo – para não querer ter de admitir que, se um inquérito fosse feito, provavelmente já agora quase ninguém reconheceria o nome Muhammad Yunus no nosso país – país em que, de resto, pouco valor parecem ter os direitos humanos, quando, numa recente sondagem do Público, 41% dos portugueses é a favor da pena de morte para homicidas e dois terços defendem a legalização da prostituição: nitidamente, ainda não viram Transe, o novo filme de Teresa Villaverde.

Porém, hoje é o dia em que a minha esperança não se abala. Se há quinze dias, em «Fotografia», constatava a naturalidade do mal, hoje é o tempo em que revelo a inversão das coisas, e da fotografia fico com o «Negativo»: a possibilidade, tão real quanto a outra, de o ser humano ser agente de bem. Provas, como dons, apresentam-se, para quem as queira detectivar: esta semana que passou foi a Semana para o Mundo Unido, promovida pelos Jovens para a Unidade; este domingo em que redigo a crónica, é Dia Mundial das Missões; e, no anterior, pomposa e grossa, mas justa e merecida, assistimos todos, concelho, à magna celebração dos ínclitos cem anos da Santa Casa da Misericórdia da Mealhada – realidade tão próxima (e tão necessária) de nós que mais me ratifica esta certeza da bondade.

Algures no documentário já aqui referido dizia-se que a dignidade humana passa, entre outras coisas, por não ser pobre. Numa sociedade como a nossa, em que as crianças vilipendiam os pais no peditório de um 3G – e, maior agravo! – os pais as satisfazem, essa dignidade passa também por não ser demasiado rico, ou, antes, por saber pôr a riqueza nas coisas certas e duradouras – e saber dar, numa cultura de ter. Já na homilia da missa de 15 de Outubro, D. Albino Cleto apontava essas palavras no Evangelho do dia. Podemos sempre indagar que diferença fará o nosso contributo, mas aí são válidas as palavras, sobre o microcrédito, com que Yunus fechou o documentário e com as quais termino: «Quando os irmãos Wright voaram com o seu avião pela primeira vez, este manteve-se no ar por 20 segundos e percorreu 36 metros. Na altura, dissemos: “E então?”. Mas isso mudou o mundo. Seres humanos voaram pela primeira vez. Nós somos o avião dos irmãos Wright. Estamos a percorrer apenas 36 metros.»

Fotografia


As crianças vão, levadas num jipe quasi-militar, cinzento. O rapaz, mudo, com a sombra que lhe lança o chapéu de palha maior que a cabeça, esconde os olhos, fixo no que deixa enquanto o veículo arranca. O nariz é a parte mais visível e distinta, estreita, sulcando o rosto. Do lado esquerdo, a rapariga, com a sua toca vetusta, curiosa criminologista, concentrava-se na cena, incompreendendo. E, ao centro, escondida dentro, a garota, assustada, comprimida, com os dedos de fora segurando ferozmente a janela traseira do transporte, observando, receando e receosa, de olhos muito azuis. Há um certo verde de campo como pano de fundo baço.

É a fotografia – que ilustra a notícia.

As crianças fazem parte da comunidade amish, onde a semana passada um homem, aparentemente comum, assassinou meticulosamente várias alunas que tomara como reféns na escola local. O massacre foi o terceiro em menos de uma semana nos EUA, estes ainda precedidos do mediático tiroteio numa escola no Canadá. Há um qualquer absurdo em todos estes cenários. Há um mal, puro e inteiro. Podemos invocar causas psiquiátricas que justifiquem este acto que firmemente pretendemos rotular de irracional. Porém, quanto mais remetemos a explicação destes comportamentos para a área da loucura, menos nos consciencializamos da horrorosa verdade da sua lucidez. Todos estes ataques não resultaram de um delírio momentâneo do criminoso, mas de profunda preparação e cuidado.

O ser humano lida mal com a sua faceta obscura, crendo-se civilizado e racional. Veja-se o caso de Hitler, sistematicamente achincalhado com problemas psicológicos na busca das pessoas de uma explicação para a ditadura: o ditador era, na verdade, bastante normal – e parte do «pecado» do excelente filme A Queda foi tê-lo retratado assim. O Mal é, verdadeiramente, uma escolha, feita com a mesma dose de consciência com que, alternativamente, uma pessoa pode alinhar por um comportamento dito concordante com as normas sociais. A bondade, a correcção, não são essências, fixas; mas estados. Entrar numa escola a disparar é algo que pode acontecer a qualquer um de nós, sem qualquer razão justificativa (até porque não a pode haver). Em comentários ao seu cru Elephant, uma reconstituição parcial do massacre de Columbine, o realizador Gus Van Sant, que nunca, ao longo da película, indica uma causa concreta para o que aconteceu, explicou que a primeira cena, em que se filmam, longamente, nuvens, era uma forma metafórica de levantar a hipótese de o móbil dos assassinos não ser outro que o tempo nublado. De facto, tudo serve de justificação – porque a não há, senão o capricho.

Repito, porque é essencial a compreensão desta verdade: não estamos perante psicopatas. Um jogo gratuito na net permite ao utilizador tomar o lugar dos assassinos de Columbine e reproduzir a matança. Este RPG teve 40.000 downloads: vamos acreditar que todos os utilizadores que o descarregaram sofrem de terríveis e ominosos distúrbios psicológicos? Contudo, não caiamos na falácia de julgar então estes jogos como os responsáveis pelos instintos violentos dos jovens: eles vêm-lhes responder, o que é diferente. A forma fácil como se desliza para o «lado negro da força», para usar a gíria da Guerra das Estrelas, é ilustrado brilhantemente em obras como o aterrador O Deus das Moscas, do nobel Golding.

Aceitar, parafraseando Hannah Arendt, a banalidade do mal é custoso – e mais fácil de não ser feito. Filosoficamente errado, o povo associa ao normal o correcto – e o que difere olha de soslaio e condena. Mas não há qualquer relação de causalidade, menos ainda de sinonímia, entre os dois conceitos. O Mal pode ser banal – mas não menos absurdo, não menos horroso, não menos destruidor – e, ai!, há esse lado que não escolhe: o lado da vítima inocente. «...as crianças, Senhor,/Porque lhes dais tanta dor?!...» Deixai o jipe levá-las, deixai...e elas não vejam o horror!

Cons-pirados


Fui comprar o jornal. Ao chegar à tabacaria, um homem discutia avidamente com o vendedor, mas a matéria não era o regatear de um preço. Dizia o comprador que o 9/11 não era mais que uma conspiração bem organizada pelo governo americano, já que um edifício daquela altura, comprovavam-no as afirmações de engenheiros, não podia ruir com o simples embate de um avião, como o demonstravam documentários agora finalmente revelados. Outro senhor ao lado ratificava a postura de desconfiança, expondo as semelhanças óbvias entre uma implosão propositada e a queda das torres. E o vendedor, coitado, não assentia nem negava, porque o cliente tem sempre razão, até quando a não tem.

Este episódio é sintomático de tantas conversas que tenho escutado entre amigos desde que a RTP transmitiu o documentário Loose Change (cuja tradução portuguesa do título, lamentavelmente, desconheço), que emitiu mais três vezes, mostra da sua popularidade. Quando o vi na 2:, alertado por um amigo, acabei por abandonar o filme, cansado de tanta teoria tola. Não o levei a sério, mas mais como um exercício de humor negro pelo canal público. Quando, contudo, membros da comunidade muçulmana – que de modo algum considero representativos da opinião da mesma, no Prós & Contras que opôs Soares e Pacheco Pereira, baseados em Loose Change apresentaram as suas dúvidas tímidas quanto à veracidade do 9/11, entendi, enfim, o alcance daquele pequeno filme. Amigos meus começaram também a pôr em questão a versão oficial, alguns rendendo-se mesmo em absoluto ao documentário e suas «provas».

Se Pacheco Pereira condena a RTP por ter posto no ar tal peça, eu não a censuro, pois, inserida numa série de documentários sobre o mesmo assunto, representou, para aqueles com distanciamento crítico, um lado, ridículo, mas existente, do 11 de Setembro. Porém, vendo a confusão que originou, tenho de confessar que entendo Pacheco Pereira. Esta teoria é semelhante às que negam que o homem alguma vez esteve na lua: ambas inconsistentes. Satirizando, eu e o amigo que me avisara do documentário juntámo-nos para filmar uma tese que já anteriormente apresentei neste espaço, a de que Antero de Quental é o verdadeiro responsável pelos atentados – julgo, sinceramente, que a nossa produção é tão credível como aquela que a 2: revelou e enviaremos esperançosamente o nosso filme para a emissora pública.

Brincadeiras de parte, é preocupante a facilidade com que as pessoas caíram na armadilha, pelo que urge desmontá-la. Se nenhum avião embateu contra o Pentágono e se o voo 93 nunca caiu na Pensilvânia, então, quem choram os familiares das vítimas? E onde estão aqueles que, assim sendo, não morreram? O documentário afirma que os terroristas não estão mortos, mas não explica o paradeiro dos tripulantes, supostamente, por necessidade lógica, também vivos. Mais, como pode a queda das torres ser devida a uma implosão premeditada vinda da cave dos edifícios (como pretende o documentário) se a queda destas sucede não a partir da base, mas a partir do topo, como é facilmente observável? Para além disso, se o 9/11 não é mais que uma conspiração americana, foram então também os americanos os responsáveis pelo 11 de Março espanhol e pelo 7 de Julho inglês? Isto para partilhar apenas as indagações mais pertinentes.

Uma coisa é afirmar que o 9/11 serviu como pretexto à invasão do Iraque – como o faz o Fahrenheit 9/11 de Moore – outra, que os atentados foram provocados para servirem de desculpa a essa mesma invasão. Eu, que discordo na generalidade da política levada a cabo por Bush e que continuo a declarar que a guerra do Iraque foi um erro, não deixo que as minhas opiniões me conduzam a uma deturpação do real desse nível. Só se estivesse (cons)pirado...

Elogio da Silly Season


É Setembro, com a pena que isso sempre acarreta. Universalmente, o fim das férias. Durante um mês, houve o sabor e a sabedoria de ser livre: arranjou-se um romance light, foi-se ao cinema e passeou-se amplamente à noite. Os mais jovens arranjaram um flirt. Os jornais, sinceramente, eram vagamente despachados num quarto de hora, vazios de notícias. Estupidificantemente, era-se capaz de ficar a ver, seguidos, os três filmes de sábado à tarde. E, no final do dia, estávamos, verdadeiramente, cansados. Era a silly season, a estação estúpida.

Principiou-se, então, a rentrée em seriedade da sociedade. Na política, a Festa do Avante! , ainda, confessadamente, um misto dos dois tempos, do ligeiro e do grave, intermitente entre concertos e jerónimos. A Festa do Pontal, coisa esquisita, montada em praia, sem líder. O BE, caminhando peregrinamente. O PP, longe, na Madeira. E o PS, num one-man-show, no Porto. A rentrée é, no mínimo, uma coisa esquisita.

Por fim, a única coisa pela qual a maioria dos portugueses se interessava minimamente, também correu mal, pondo sérias dúvidas à sustentabilidade deste país. Nas comemorações do 11 de Setembro, tão pródigo em teorias da conspiração, eis que uma nova e mais imensa e mais terrível cabala se ergue. O seu herói e o seu vilão: o Gil Vicente! Antes sequer que interesse identificar o culpado, o que causa, de imediato, espanto e choque no clamor de espadas que atravessa o futebol é a própria situação em si: é surrealista. Esta, conjugada paralelamente com o «Apito Dourado», veio, sobretudo, desvelar, pública e ostensivamente, a decrepitude que enche o futebol, cujo nome é: mesquinhez.

Esta vem mascarada de soberba, mas é apenas, verdadeiramente, o seu oposto. Ainda recordo de Luís Filipe Vieira afirmar, aquando da sua candidatura, que, dentro de três anos, o Benfica seria o maior clube do mundo. E foi eleito. Na realidade, política e futebol são bem mais parecidos do que aparentam: promete-se e ganha-se. Porém, o que incomoda é o orgulho destemperado e evidente convencimento com que os dirigentes dos clubes se apresentam. Como se pretendessem deuses, vêem-se acima das acusações que lhes tecem – e conseguem-no.

Não sendo o futebol o meu desporto favorito, não deixa, nem que não seja pela sua predominância televisiva, de ter um significado para mim. Ora, precisamente como apreciador, desgostam-me todas estas perturbações no decurso normal da Liga por uma mesquinhez tamanha como a dos gilistas que, pugilistas, a todos se opõem. Uma vez mais, mais do que a coisa em si, interessa-me o modo dela. Impressiona-me mais fortemente não tanto a decisão que os sócios do Gil tomaram na quinta passada (de resto, previsível), mas a forma como, de facto, tão facilmente se galvanizam multidões com demagogia. Ao que sucedeu naquele pavilhão aplicaria eu, verdadeiramente, o rótulo da alucinação colectiva. Não é de estranhar que, do mesmo modo, associações xenófobas e extremistas poluam as claques juvenis dos maiores clubes. Fenómenos distintos, a natureza da sua origem é semelhante. Numa altura em que as pessoas não conseguem ter orgulho no seu país (e, brevemente, nem no país sob forma da selecção nacional, se a FIFA chegar à punição) inevitavelmente deslizam-no, sob forma exagerada, para outro lado. O cómico é que isto é trágico.

Silly season, o Verão? Silly season Setembro!

Na Rota da Europa


Viajei até à Galiza celta, dois dias, para celebrar o início de Agosto. Levei, acompanhado de assuntos pendentes, o telemóvel, para a necessidade desconhecida. Rompida a fronteira hispânica, logo a operadora de rede, prestável, se dedicou a me informar do facto. Adolescentemente, não me apercebi da verdadeira substância do aviso automático, omnisciente. Só depois de atender uma anémica chamada e registar, em consequência, um saldo anoréxico, entendi, pleno, o significado do termo estrangeiro roaming. Independentemente das promoções que as operadoras possam anunciar, este é fantasticamente absurdo no espaço europeu.

Chocado, recordei-me duma leitura antiga, algures no último semestre do ano, de uma proposta, a discutir no Parlamento Europeu que visava, precisamente, a extinção do malfadado roaming. Calculava-se mesmo que, por volta da semana final de Julho, já estivesse em vigor a medida – pela minha experiência, apercebi-me, penosamente, que não. Este é apenas mais um dos exemplos, tão quotidianos, da Europa inacabada.

A UE é, possivelmente, o facto político mais miraculoso da segunda metade do século XX, independentemente de todas as crises porque passou (e passa hoje). Pessoa escreveu, nas suas reflexões sobre a I Guerra Mundial, que a civilização europeia assentava exactamente em três pilares comuns (o Poeta nunca definiu com precisão um quarto, que ele a estes juntava): a Cultura Grega, a Ordem Romana e a Moral Cristã. Que o conjunto de nações hoje tão amplo que se reúne sobre o mesmo abraço tenha, durante séculos, digladiado-se incessantemente é motivo de estranheza, perante esta inequívoca herança comum. Foi o reconhecimento desta que me converteu num acérrimo defensor da cidadania e do projecto europeus.

É, pois, com tristeza que me apercebo das falhas desse edifício, como a do mesquinho roaming. Mas fora todo o mal europeu esse! Quando um bom amigo meu me confessa que, no dia do mancebo, o militar que o acompanhou se lamentou que havíamos perdido parte da nossa identidade nacional com a adesão ao Euro; quando, numa aula de História, discutindo precisamente tal facto, vejo uma voz feroz contra a nova moeda; não posso senão sentir desilusão perante um nacionalismo caquéctico, primitivo e medricas.

Do mesmo modo reajo e me exalto ante a cruzada das Juventudes de esquerda contra o Processo de Bolonha, como este fora um apocalipse universitário. Eu propunha até que, na mesma linha, esses grupos iniciassem manifestações contra o Projecto Erasmus, ou, ainda mais fiéis a tão nobres princípios, contra os estudantes portugueses que partem para estudar Medicina em Espanha: acaso não serão estas duas situações prenúncio de Bolonha, na permutabilidade entre universidades que pressupõem e que esta reforma vem amplamente facilitar, na uniformização europeia dos cursos que procura? Tudo quanto possa evadir os portugueses de Portugal só pode ser favorável.

Comemora-se este ano a entrada do nosso país na então CEE. É uma oportunidade única de se rever, em perspectiva positiva, esta caminhada. O fenómeno não é só português, mas sendo eu português (e mais europeu), é sobre Portugal que me debruço, constatando que ainda não soubemos acolher devidamente a ideia europeia. Enquanto assim não suceder e guardarmos o cepticismo inglês ou a negação francesa e holandesa, a Europa não se constituirá, jazendo incompleta, como sonho bonito – e arruinada. ■ o corvo


O Cedro (Ardendo)


A actual situação do Líbano sitiado sentou-se connosco às refeições. As televisões passam os desenvolvimentos da crise do Médio Oriente, intermitente entre uma novidade desportiva e uma politiquice nacional. Entre os que vêem, há os que ignoram – como ignoramos todos já, pacificamente, os mortos iraquianos; há os que lucidamente compreendem as implicações do conflito – como a subida dos preços do petróleo; e os que, como eu, olham ineditamente, preocupados pela presença de um amigo no epicentro do combate.

O frustrante na guerra que neste momento sacode o Líbano é o estado de inocência e impotência do país em causa, massacrado numa guerra que não é a dele. Num blogue libanês chamava-se a atenção para as declarações de Bush «De forma a poder lidar com esta crise, o mundo tem de lidar com o Hezbollah, com a Síria e continuar a trabalhar para isolar o Irão.» O autor do blogue interrogava-se, chocado, onde, neste discurso, aparece a palavra Líbano. Semelhantemente, deparando-me com um artigo de Pacheco Pereira, notei que, em três quartos de uma página A3, só uma vez o Líbano é referido, sem ser sequer, na alusão, o objecto da mesma. A pergunta que emerge é, de facto, porquê o Líbano.

Ninguém concebe que um país, que tão recentemente passou por uma revolução política – a Revolução dos Cedros – possa ter um governo suficientemente forte para expulsar uma organização essencialmente terrorista do Sul do seu território – sobre os problemas enfrentados por estes novos governos, basta olhar a crise que a Revolução Laranja atravessa na Ucrânia. É utópico responsabilizar o governo do Líbano pelas acções do Hezbollah – porém, é isso que Israel já afirmou procurar.

No jogo da política de que todos, meros cidadãos, somos somente peões, o Líbano aqui é só um bode expiatório, o palco de embate de potências alheias. Quem está por detrás do Hezbollah é a Síria. A prova de que é este, verdadeiramente, o país que deveria ser responsabilizado é a confissão de Bush, na cimeira dos G8, julgando os micros desligados: «O que eles precisam é de fazer com que a Síria convença o Hezbollah a parar de fazer esta merda, e acabou». A Síria, não o Líbano. Julgava os israelitas mais cultos que Bush em Geografia.

Pode-se argumentar que é no Líbano que está alojado o Hezbollah. Porém, o país que Israel, em sua defesa, possivelmente deveria legitimamente bombardear seria a Síria (ou o Irão – o único que, verdadeiramente, está a ganhar com tudo isto, com as atenções a serem desviadas do seu programa nuclear). É certo que os campos de treino do Hezbollah estão no Líbano – mas tal não justifica a necessidade de destruir um país fénix que, pela abundância de guerras que o trespassam, continuamente se vê forçado a reconstruir-se. De facto, de que servem campos sem dinheiro (Síria)? De que servem campos sem instrutores (Irão)? A acção mais espectacular do Hezbollah até agora, segundo Israel, deve-se à presença de Guardas da Revolução iranianos no terreno.

Uma sondagem estranhamente equilibrada no site da Al-Jazira procurava determinar o responsável pela crise – só um país aparecia absolvido, com 0% dos votos: o Líbano. Não que uma guerra contra a Síria ou o Irão deixasse de ser preocupante. Uma guerra é sempre um acto lamentável: pode ou não ser reprovável – e, tendo em conta o alvo e o género de ataques, esta é, indubitavelmente, uma das que encaixa na segunda categoria.

11 July 2006

A Lição de Moby Dick

Retirei-me, velho cansado, estes dias, para casa de um bom amigo meu, na banda de Leiria, entre o campo e bosque, numa pequena localidade chamada Quintas do Sirol. Em aí regressando, como que sinto sempre um prazer inédito de descobrir de novo a terra livre: conhecer a surpresa de abrir uma porta de casa e ouvir, sem sentimentalismo falso, as aves, exorcizadas pela cruz dos prédios das nossas cidades. Uma certa nostalgia de Caeiro como me invade nesses momentos súbitos. Consciencializo-me a uma escala planetária da criação dos seis dias e da penetrante beleza periclitante que lhe é intrínseca. E, relembro, triste, a citação do filme Matrix: «Os seres humanos são uma doença, o cancro deste planeta».

Neste espaço de que escrevo, quão mais bárbaras parecem as declarações de Fernando Ruas, incitando os seus concidadãos a “correr à pedrada” os inspectores do ambiente, bobamente acrescentando “medir bem as palavras” – pena não as ter pe(n)sado! Poderia concentrar-me no insulto cuspido do presidente de Viseu à inteligência comum, ao afirmar depois que não se o deveria levar à letra – num apalermado paradoxo. Podia analisar o significado do apoio imediatamente expresso de Alberto João Jardim – se valesse, da facto, ainda comentar que quer que se oiça vociferando desses lados insulares. Porém, o meu coração ofende-se mais profundamente que tudo com o pensamento excêntrico que, latente, pulsa nesta afirmação de Fernando Ruas. O poder político (numa muito provável intrusão de outros poderes poderosos) afronta o habitat do homo sapiens – criamos reservas para linces ibéricos, correctamente previstas por decreto, mas insistimos em não cuidar de nós próprios.

Penetramos aqui no instável equilíbrio entre o cidadão e o poder: obviamente, reside em nós a certeza constatada de que um esforço individual – aos mais diferentes níveis, da reciclagem à poupança de água – contribui, ipso facto, para o melhoramento do mundo; porém, simultaneamente, sabemos da importância dos poderes superiores e das suas decisões. Ajuizadamente, a tudo isto, o Ministro do Ambiente veio retorquir que aqueles “que entendem que o desenvolvimento económico é incompatível com o ambiente [...] têm uma mentalidade de desenvolvimento própria dos anos 50” – até nisto parece Portugal, anacrónico, estar a meio século de distância da Europa civilizada. A indignação do Ministro respondia também às declarações de Basílio Horta, presidente da API, pedindo para aumentar a quantidade de emissões de CO2 previstas para Portugal por Quioto: creio bem que, daqui a uns anos, aconselhará a nossa retirada deste tratado, apontando como exemplo saudável os EUA de Bush.

Internacionalmente, uma outra notícia, passada por certo despercebida – apesar do tamanho gigantesco do seu objecto, inquietou-me: a Comissão Baleeira Internacional na declaração final da sua reunião anual escreveu que a moratória que proíbe a caça à baleia desde 1986 “não é mais necessária” e, pela primeira vez em duas décadas, exprimiu o seu apoio à caça deste mamífero para fins comerciais. Tomemos consciência de que a família dos cetáceos esteve à beira da extinção – o que, atempadamente (?), levou à moratória referida. Não obstante, era do conhecimento comum a persistência do mercado negro. O levantamento da interdição pode ser fatal e encerrar a milenar história de uma das mais belas e simbólicas espécies marítimas. Os tempos passaram desde que Melville, no seu Moby Dick, louvava a perseguição dos cachalotes, mas a alegoria da obra permanece válida: indomável, Moby Dick destrói o convencido navio Pequod e o seu capitão Ahab, incapaz de entender a vitória sempre final, sempre perpétua da Natureza sobre o Homem, cego na sua ânsia de a dominar: aprendamos!

Histreta



Exames.

A palavra, curta, mas suficiente para fazer um parágrafo pelo peso. Por duas semanas longas, bicho hibernado, centrei-me concentrado – como os sumos artificiais, como é tanto do estudo que, neste tempo, se pratica – na matéria grave e sábia em que me iam experimentar. O de História era, a mim e aos como eu, aquele que mais pesadamente preocupava. Ironia do destino – e o destino tem essa virtude de ser particularmente cínico, foi o mais triste de todos.

Com novo programa, impossibilitados de utilizar os exames de anos anteriores como referência, sem qualquer prova modelo enviada pelo Ministério (apenas algumas directrizes), foi com surpresa manifesta que recebemos a aberração, entre grande formalidade de exame. Num primeiro conjunto, éramos confrontados com quatro questões semi-sucintas sobre o Estado Novo e uma de desenvolvimento. Esta última, contudo, não só era loucamente absolutizante, exigindo que nos estirássemos ao longo de múltiplas linhas – e, mais grave, minutos – como nos forçava a repetir muita informação anteriormente referida noutras perguntas.

O segundo grupo, esse, porém, é que se apresenta com todo o seu esplendor de disformidade: três perguntas referindo-se a um discurso de Kofi Annan sobre as questões transnacionais da actualidade, datado de 2004. Se o Ministério pretende com este grupo – que valia, note-se!, 70 pontos – testar a interpretação textual, só posso deduzir que, por certo, se terá enganado no exame: o de Português B talvez fora, para isso, mais eficaz. Ah!, mas esqueço-me que também este deixou aparvalhados alunos que, obrigados a decorar, à pressa, num só ano final, matéria gramatical (e que matéria!, as novidades gramaticais que já tive aqui antes oportunidade de falar), a viram praticamente excluída do exame, o qual pouco apelava aos seus conhecimentos gerais, resumindo-se a uma correcta leitura de textos apresentados.

Como estes, também os alunos de História perceberam que o que haviam estudado – ou não, já que estes assuntos, últimos no programa, tendem, consequentemente, a serem deixados de lado ou dados sob pressão e mal – de pouco lhes serviria para resolverem aquelas questões. Porém, até isso é o menos! O que, de facto, escandaliza aqui é o próprio testar destes assuntos. Considera-se, lugar-comum, que a História se pode fazer com justiça e imparcialidade volvidos trinta anos sobre os acontecimentos que se pretendem estudar. Ora a matéria de 12º vai desde o final da I Guerra Mundial até ao ano passado, incluindo acontecimentos muitíssimo interessantes como os atentados da Al-Qaeda, o Euro 2004 ou a eleição de Durão Barroso para a presidência da Comissão Europeia. Seguindo o critério referido, tal devia ser ensinado apenas em 2034 – se é se na altura ainda existir Portugal, algo de que devemos sempre duvidar.

Se já leccionar isto foi uma parvoíce, mais ainda que tal saia num exame nacional, para o qual se foi obrigado a estudar três maciços volumes para, no fim, sermos presenteados amargamente apenas com dois temas, um deles ridículo. Compara-se com o currículo anterior e o seu exame, de estrutura completamente diferente e que permitia uma muito maior cobertura do programa, abordando (tome-se o exame de 2005) o modernismo na arte, o pós-II Guerra Mundial, o 25 de Abril, a Grande Depressão, a Primeira República, entre outros. Até neste aspecto, regredimos. Mas, aliás, em todos os aspectos, enquanto país, regredimos. Descansa-me ao menos que os que se me seguirão não terão igual exame de Histreta (Históra+Treta), mas novo (provavelmente, também sem prova modelo...). Só posso reiterar o que escrevia Eça n’Os Maias (aplicação de conhecimentos do estudo para os exames): «Isto é um país impossível!»

Metamorfose Incompleta IV


Concluímos, nesta crónica, a revisão dos avanços e recuos na educação portuguesa, no fim deste primeiro ano socrático, comparando com o que antes tínhamos proposto.

A última das minhas propostas era o fim de todas as reformas educativas a médio prazo. A OCDE apontou, para explicar os resultados portugueses insatisfatórios, a instabilidade governativa na pasta da Educação: 27 ministros em 30 anos. Cada um com a sua reforma, como uma senhora chique que se faz acompanhar, ao descer à rua, do seu cãozinho. Não nego que algumas possam ter sido proveitosas, mas esta espiral instaurou um mal-estar profundo na comunidade educativa. Note-se: eu apanhei uma nova reforma; aqueles que me precederam tiveram a sua própria; aqueles que, para o ano, tomarão o meu lugar, têm já uma nova.

Às propostas que em tempos idos lacei, acrescentaria outra que, cada vez mais, se me tem imposto com vital para um rendimento escolar saudável e que a OCDE veio reiterar: corpo docente mais estável. Em Portugal, dizem as estatísticas, um terço dos professores muda de estabelecimento de ensino todos os anos. Para além de prejudicar fortemente as vidas pessoais dos docentes, afecta ainda os alunos que, a meu ver, em cada ciclo, deviam ser acompanhados pelo mesmo conjunto de professores, ou seja, do 5º-6º, do 7º-9º e do 10º-12º. Eu tenho essa experiência, escolas de sucesso têm-na, e, são benéficos os efeitos duma tal política.

Claro que, a ameaçar esta estabilidade docente, aparece o novo diploma que a senhora ministra quer fazer aprovar, onde se pretende que os pais avaliem os professores, os tais, que, nas palavras da mesma, parecem ser os únicos responsáveis pelo insucesso escolar. Plagiando um filme francês, onde um rapaz perguntava a uma rapariga, que lhe respondia afirmativamente, se cria no amor à primeira vista, eu, tal ele, depois, replico «Ingénua». De facto, muito naïv deve ser a ministra senhora para diabolizar assim os docentes, esses mesmos que, como mostrou uma reportagem recente da televisão pública, estão, em muitos sítios, em estado de sítio. Ao entregar a avaliação a uma das facções do processo educativo (os encarregados de educação), vicia todo o sistema. Era como se, suponhamos absurdamente, o BE fosse encarregue de ajuizar sobre o PSD. Os pais, esses mesmos que, na maioria dos casos, se demitiram da educação dos filhos (veja-se quantos respondem às convocatórias escolares), obviamente tenderiam para a parcialidade, no grosso das situações, como é facilmente entendível. Avaliem os professores: mas que o trabalho seja feito por uma comissão neutra, também conhecida por independente.

Os professores, esses, face a tantos ataques sistemáticos, falaram na possibilidade de uma grave greve que abarcaria os dias dos exames nacionais. Sei que balbucio “Razões de quem parece que é suspeito”, como dizia Camões de Baco. Enquanto finalista, sei da fragilidade da minha posição nesta matéria, por inevitavelmente surgir como tendenciosa, por muito que eu clame a sua neutralidade. Que um grupo (professores) prejudique outro (alunos), quando a única razão de existência dos primeiros é educar os segundos, parece-me reprovável e revela que, em Portugal, não se combate pela educação, mas por interesses de classes.

O relatório da OCDE vem-nos relembrar o verdadeiro objecto da justa luta. Diz: “Apesar de não ser o discurso oficial, a retenção dos alunos é uma prática frequente e tida como a principal ferramenta para corrigir as lacunas na aprendizagem”. Ai!, quem me dera poder chumbar o Ministério da Educação!

Metamorfose Incompleta III

Continuamos a nossa análise, à luz das conclusões do relatório da OCDE, do que, no primeiro ano do executivo socrático, foi feito na área da educação, em comparação com as propostas que avançámos há um ano neste mesmo espaço.

Salientámos então a importância da obrigatoriedade da creche. Obviamente, continua por realizar. Por sua vez, o que então me motivou a inclusão desta reivindicação (que opunha à decisão ministerial de prolongar a obrigatoriedade do ensino até ao 12º ano) parece ter caído no esquecimento. Sobre este projecto do governo, diz a OCDE que não passa por aí a solução, já que poucos são os países que adoptaram essa estratégia. Acresce que se deve continuar a apostar na diversificação do secundário, investindo no ramo tecnológico. Este é, de facto, dos mais bem conseguidos e desenvolvidos do nosso país, razão de orgulho para nós (recordo a recente parceria estabelecida pela Vasconcelos Lebre com a Alemanha). O que, hoje, porém, me arrisco a defender é que esta via técnica se inicie muito antes, isto é, que, enquanto opção, seja disponibilizada logo desde o terceiro ciclo. Isso permitiria a muitos alunos – francamente desmotivados, que se arrastam pelo básico até aos 16 anos – seguir uma via profissionalizante que melhor os serviria e os manteria na escola, com mais interesse e, consequentemente, menos abandono. Esta deserção é um dos mais dramáticos fenómenos registados pelo relatório da OCDE, que pareceu ficar chocada com o facto de que aqueles que não acabam os estudos não têm dificuldades de trabalho, pelo contrário, a taxa de emprego é mais elevada para estes do que para os que concluem o secundário e mesmo para os licenciados. Que estes têm emprego é cada vez mais um mito.

Uma das outras bandeiras que levantava era a obrigatoriedade dos exames nacionais no termo dos vários ciclos de educação. Desenterrei esta preciosa frase da senhora ministra, proferida no início das suas funções: “É preciso ter consciência de que [os exames] avaliam apenas uma parte das capacidades dos alunos. Não avaliam coisas como a oralidade.” A frase põe o dedo na ferida, achando – eureka! – o busílis de toda a examinação das línguas estrangeiras. O que falta exactamente nos exames de, por exemplo, inglês, francês ou alemão é a avaliação da oralidade no seu duplo sentido: do falar e do ouvir. O conhecimento de uma língua não pode ser somente mudo (ler e escrever). Este é um dos vários pontos críticos a reformular nos exames. Porém, hoje, com a extinção gradual dos exames levada a cabo pela senhora ministra, mais importante que reformulá-los, é mesmo mantê-los.

Quanto à forte redução da carga horária, o Público de dia 28 de Abril tinha uma magnífica carta de leitor, onde, com toda a clareza, se apontava este problema como a causa maior do insucesso escolar e se acusavam os responsáveis pela perpetuação deste sistema em que os alunos do básico chegam a ter 15 disciplinas(!): os sindicatos (que, obviamente, não pretendem a redução do horário lectivo pois isso implicaria menos empregos) e as associações de pais (que querem as escolas abertas o maior tempo possível, pois não têm onde deixar os filhos). Os dois lobbies conjugados, ao qual se parece associar o próprio governo (não esqueçamos o adiamento da hora de saída na primária decretado por esta ministra), resultam na visão, comum a tanto bons como maus alunos, da escola como uma prisão. Só nenhum dos condenados compreende o crime que cometeu...

Metamorfose Incompleta II


Continuo o balanço, à guisa de avaliação, do último ano de políticas ministeriais educativas, iniciado na última crónica, recordando os pontos importantes da reforma necessária.

Um era a efectiva intervenção do Estado como órgão controlador do preço e qualidade dos manuais. Eis que, finalmente, estão em discussão pública projectos reformistas neste sentido. A 13 de Abri, o Governo aprovou o novo regime dos manuais escolares (no âmbito do qual se inscrevem as reformas já referidas no ponto anterior). O executivo anunciou que, a partir do fim da legislatura, 2009, os alunos carenciados verão os seus manuais pagos na totalidade. Não pretendo que o governo pague a íntegra dos manuais a todos os alunos, mas é preciso que estabeleça tectos mais apertados para travar o verdadeiro saque levado a cabo pelos editores. Talvez então, estes abandonassem cadernos e cadernetas que anexam aos livros, sem verdadeira utilidade senão torná-los ainda mais caros. As medidas aprovadas estipulam que o secundário passe a ser incluído no regime de preços convencionados, levando à descida do mesmos, regime que vigorava, até agora, só no básico. Os alunos, em nome dos pais que lhes pagam os livros, agradecem. O diploma prevê ainda que a escola, no exercício da sua autonomia, tenha a possibilidade de emprestar manuais, medida que vigora, por exemplo, na Alemanha.

Quanto à questão qualidade, o diploma supra-referido institui uma comissão que funcionará como entidade competente de aprovação dos livros. Aquilo que, fora eu outro, poderia, com toda a facilidade, qualificar de uma violação grosseira da liberdade, como o estão a fazer os editores (que classificam a medida de «estalinista»), não o é. Há quem diga que tal matéria (selecção dos manuais) devia caber às escolas, no quadro da sua autonomia, porém, note-se que a comissão de peritos não vai escolher os livros e impô-los, tão somente filtrar os de qualidade inferior. Os professores continuam a escolher, mas de um lote menor, onde ficam os melhores (volto a recordar que há editoras que chegam, para o mesmo ano, a ter dois manuais à escolha: absolutamente absurdo). Lia-se no PúblicoDo universo de livros certificados, os docentes de cada escola ou agrupamento poderão seleccionar os manuais que mais se adequam ao seu projecto educativo do respectivo estabelecimento.”: é inequívoco que a liberdade de opção não fica ferida.

Insiste, criticando, Vasco Teixeira, representante dos livreiros, “Não são dois ou três especialistas sentados num gabinete que vão saber o que precisam os alunos e professores espalhados desde o interior ao litoral e regiões autónomas”. Eu pergunto: e são dois ou três autores contratados para a feitura de o manual que o saberão? Bem vistas as coisas, quem define os manuais é um grupo não restrito, mas restritíssimo. O governo assegura que o objectivo da comissão é assegurar “a conformidade dos manuais escolares com os objectivos e conteúdos dos programas ou orientações curriculares em vigor” e promover “a elevação do seu nível científico-pedagógico“. A ser cumprido o que está no papel, só posso subscrever, com uma assinatura grande, mostrando o meu orgulho em, pela primeira vez, sair uma medida inteligente do Ministério nesta legislatura.

Quanto à mudança profunda dos programas, as minhas razões de queixa não se mantêm: agravaram-se. Como descrito numa outra crónica há pouco tempo, a reforma que na minha sombra cavalga parece que só veio agravar o fosso entre a inteligência e o sistema de ensino português – vergonhoso.

Metamorfose Incompleta I


Há pouco mais de um ano o governo de José Sócrates entrou em funções. Há um ano eu escrevia, neste espaço, um conjunto de dez medidas que urgiam em nome da saúde do sistema de educação. Hoje, um ano depois, chegaram os resultados do relatório da OCDE, que muito discorre sobre o problema do nosso ensino. À boleia, voltaram à tona os problemas estruturais: muito, ultimamente, se tem discutido sobre eles. Volvidos estes 365 dias, parece justo fazer um balanço daquilo que então chamei a lição da educação, recapitulando o que, então, em jeito de manifesto, sugeri: para constatar, triste, a metamorfose incompleta do ensino.

Começava por pedir a redução do número de alunos por docente. Afirma a OCDE a necessidade de aumentar as turmas, baseando-se nos números que evidenciam o desperdício de recursos na Educação Portuguesa, em que 93,4%(!) da despesa se destina à remuneração dos professores. Indirectamente, o que se pede é a redução do pessoal docente: contribuição ao desemprego. “Assim será possível ter melhores condições materiais e fiscais de ensino, sem aumentar o custo por estudante”, lê-se. Contudo, existem outras condições, para além dessas, necessárias à boa aprendizagem e um número reduzido de alunos ajuda a que a aula renda mais. Se o digo, não é para banalizar mais o lugar-comum, mas porque, pela experiência, o confirmei: feita a razia de alunos que, pelo caminho do secundário, vão reprovando ou desistindo, chegado, enfim, ao 12º, é translúcido o melhor aproveitamento de cada colega que me acompanha. O processo de redução das turmas é, aliás, um natural, porque, como o próprio relatório da OCDE confirma, a natalidade diminuiu fortemente, o que – notam-se já os seus efeitos – leva a menos alunos, o que, mantendo o mesmo número de turmas, conduz obviamente a turmas menores.

Porém, não podemos evitar meditar nos números assustadores com que o relatório nos confronta, no que toca ao desperdício de recursos (materiais e humanos). Obviamente, tenho de concordar com a análise quando diz que as regras dos aumentos salariais e promoções têm de ser revistas (o princípio de contenção salarial, no cenário generalizado de crise, é certo em todos os sectores, de resto). Inevitavelmente, também, terá de haver despedimentos ou, diz a OCDE, recolocamento de professores noutras carreiras (e tudo isto me levanta sérias dúvidas sociais...).

Outra das questões que mais me mobilizava era o fim da multiplicidade de manuais escolares para uma maior homogeneidade. A 13 de Abril, o governo aprovou um novo regime para os manuais escolares, com significativas alterações. A ministra critica a “proliferação de títulos no mercado, impossibilitando o efectivo controlo da qualidade por parte das escolas e dos docentes". O diploma mencionado prevê o prolongamento da vida dos manuais de 4 para 6 anos. Para além de reduzir os custos das famílias mais numerosas, contribui positivamente para o que aqui defendemos. Àqueles que criticam, acusando que os manuais de História ficarão desfasados, chamo a atenção para que nunca, na prática, professor algum dá qualquer matéria que envolva os últimos 6 anos, para além de que, se trata de um período do qual, quer quem lecciona, quer quem aprende, está ciente, porque lhe é contemporâneo. Para outras disciplinas, a crítica torna-se inviável: Matemática, por exemplo, tem um currículo inalterável; Português, idem aspas, qualquer língua, o mesmo. Ciências é, ainda, o domínio mais problemático, mas, nessa área, qualquer ano é tão cheio de tanta novidade que seria necessário anualmente fazer novos livros de texto. Todavia, para toda uma maioria de disciplinas, o projecto governamental tem todo o sentido.

30 April 2006

Paris Universal!

A França é dos países mais interessantes do mosaico ocidental, pelo temperamento muito próprio dos seus habitantes. Depois dos subúrbios, os distúrbios revolucionários reencarnaram na Sorbonne. A questão do CPE (Contrato Primeiro Emprego) é apenas uma sinédoque de todo o problema maior, não francês, mas europeu, com que a juventude se confronta actualmente. Na edição de quinta do Público, o jornal registava a confissão dum jovem italiano, licenciado em economia e com mestrado feito em Buenos Aires, que afirma que, tivera 1000 euros como salário, prontamente se casaria e compraria casa. Pelo contrário, porque recebe somente 300 euros, continua a viver com os pais. Encontra-se contratado por seis meses apenas: tivera ele mais estabilidade, por certo não hesitaria em se autonomizar. Tudo se acha invertido: numa altura em que a terceira idade cada vez mais necessita que sejam os jovens, com trabalho redobrado, a suportarem-na; são os mais velhos que sustentam os jovens, que não se conseguem empregar.

Correríamos a tentação de, ante tal demografia, rejubilar perante a perspectiva próxima da reforma de toda uma série de funcionários. Porém, a esperança é errada, pois, ainda que estes saiam, não entram novos – assim o exige a remodelação da administração pública. A título de exemplo, olhemos o caso dos professores – com tantos desempregados há anos, que lugar no sistema se reserva para os novos?

Alguns criticam os jovens por não estarem dispostos a um futuro precário: argumento fácil para aqueles que têm assegurada a profissão. Dizem-nos: há que ser polivalente e flexível, têm de estar preparados para exercer profissões que não estão ligadas ao que cursaram. A título de exemplo, ainda há umas semanas atrás, a revista Dia D entrevistou jovens recém-licenciados, registando como sobreviviam em trabalhos completamente alheios ao seu canudo. Uma rapariga estava empregada como caixa e outra, de noite, indicava os lugares no escuro dum cinema. Comentarão então os sábios iluminados que estamos perante dois casos notáveis de bem-sucedida adaptação ao mercado, independentemente da sua formação universitária. Erguem-se-me, porém, duas perguntas: é este desperdício de recursos humanos intelectuais que esses senhores querem apoiar? Num período de contenção orçamental, nada se faz para travar esta sangria de dinheiros públicos, com profundos investimentos em jovens que, simplesmente, não fazem uso daquilo que estes lhes proporcionaram?

Entretanto, Mariano Gago veio avisar que já no próximo ano lectivo, os cursos universitários que não tiverem 20 matrículas no primeiro ano deixarão de ser financiados pelo Estado. Obviamente, várias universidades expressaram já o seu desagrado, considerando que existem cursos nucleares – técnicos e artísticos, entre outros – que não podem ser dispensados. (Estranho as Associações Académicas permanecerem passivas ante toda a situação –compreendo!, não falamos de propinas...). Pessoalmente, não fora a Universidade de Coimbra ter afirmado que financiaria o curso que pretendo, deixaria de poder candidatar-me ao ensino superior no próximo ano. Não só deixámos de ter emprego, deixámos de ter ensino; não só não podemos trabalhar, não podemos estudar.

Acena, no Sena, a angústia juvenil... Paris, faz-te universal! ■ o corvo

Publicado a 12 de Abril de 2006

03 April 2006

Regresso À Cidade...

1. O governo anunciou, pela secretária de Estado dos Transportes, no início do mês que se esquece, que tenciona expandir a rede do sebastianista – porque se espera e não vem – Metro Mondego através da criação de um eixo Norte-Sul que una Mealhada a Condeixa, com um possível alargamento até à Figueira da Foz. O sistema do tram – como se designa este tipo particular de carruagem que pode servir-se quer das tradicionais linhas de comboio quer das linhas próprias de metro, saltando entre os dois sistemas sem entraves – ligaria, deste modo, uma vastíssima área do centro litoral, da qual a Mealhada seria a fronteira. Porém, o Presidente da nossa Câmara apressou-se a esclarecer, ao Público, que «Estamos em condições de dispensar o metro»; mais, «Ainda seríamos mais mal servidos pelo eléctrico».

Estamos «razoavelmente servido[s]» pela CP e pelos autocarros, mas porque não superar a mediocridade de um “razoavelmente”? Encontramo-nos perante uma oportunidade única de reforçar a nossa união á área metropolitana de Coimbra – da qual, de resto, já fazemos parte. A possibilidade de, apanhando o metro na Mealhada e, sem o abandonar, circular por toda a Coimbra, e, em dia de Verão, estender a viagem até à Figueira, é cenário quase futurista não fosse a iminência da sua muito plausível concretização nos tempos próximos. A sua construção não invalida a do troço da EN1/IC2, entre Sargento-Mor e a Anadia, essa prioridade pela qual o Presidente não troca o tram. A recusa do metro não pode servir como pressão para tal variante – que jeito estranho de negociar politicamente! Estaremos tram-ados?

2. Baixo agora a pena crítica e descanso a postura de corvo irritante que bica os transeuntes para me sentar num ramo da árvore e, arrisco!, cantar até (efeitos, talvez, da Primavera). Guardo o dedo indicador e, mãos abertas, ovaciono. Como noticiado no número anterior do jornal, esteve entre nós Mário Augusto em mais “Um Café Com...”. Pude participar na conversa com o entrevistador e isso recordou-me a significância cultural do Cine-Teatro Messias no panorama cultural do concelho.

A temática de todo o serão – o cinema – ainda mais fortemente me fez meditar no papel do espaço onde me encontrava. Senti que fazia um regresso a casa. Há uns cinco anos atrás, pouco ou nenhum seria o meu interesse em participar em tal sessão: ia duas vezes ao cinema, quando estava de férias, emigrado na praia – e todo o mais ano era um deserto. Foi, em 2001, a recuperação do Cine-Teatro, que me fez mergulhar, irrecuperavelmente, nesse mundo. A proximidade inédita aos bens culturais que gerou, permitiu uma mudança qualificativa dos meus gostos – e dos de tantos outros mealhadenses.

E, porque o Cine-Teatro fez-se por justaposição, no seu segundo termo revela, explícita, a sua segunda força. Com um recinto à altura, a Mealhada começou a acolher grandes representações teatrais e criou as bases para o posterior desenvolvimento de grupos teatrais, como a Oficina de Teatro do Cértoma. A título de exemplo, só este mês de Março que se fina, o Messias assistiu a um monólogo de Sofia Alves e ao clássico Felizmente Há Luar! – que, nem a propósito, eu comecei, nessa semana, a estudar a Português.

E porque um palco não serve apenas à dramaturgia, como esquecer os concertos que já proximamente preenchem de novo a nossa sala de espectáculos? E quantas pequenas – mas nem por isso menos belas ou significativas – exposições não cruzaram já aquele recinto? Indubitavelmente, a recuperação do edifício e da área envolvente foi a maior benesse com que a população da cidade se viu agraciada nos últimos anos (e o tram pode vir a ser a próxima...) – que ela saiba continuar a fazer justo e saudável uso dela.

Publicado a 29 de Março de 2006

Munique-Mealhada


Já aqui o referimos, ainda ele não tinha atingido – pedra no charco – as salas portuguesas. Agora que escrevemos, bate, pesado, às portas da nossa cidade. Munique, de Steven Spielberg, está em exibição no Cine-Teatro Messias a partir de amanhã. Tendo já visto a película, não posso evitar tecer sobre ela alguns juízos, não tanto do ponto de vista cinematográfico, mas mais sobre o seu conteúdo, ainda que, no que respeita ao primeiro, como seria mais do que expectável, ela venha, mais uma vez, justificar a razão do prestígio do seu realizador – apresenta-se como verdadeira obra de arte.

O sentimento mais instantâneo com que abandonei a sala de cinema foi o de uma profunda impotência: o filme revela bem – àqueles de nós mais cegos, ou inocentes (qual, dos dois, o meu caso, desconheço) – como as grandes decisões neste plano (o militar) estão completamente fora do âmbito de acção do cidadão comum, cuja opinião é irrelevante nesta matéria. Assim o verificámos, por exemplo, aquando da guerra do Iraque, em que, não obstante a mobilização mundial contra o conflito, este foi desencadeado – para ainda hoje se arrastar.

Sendo uma apresentação equilibrada dos dois lados (palestiniano e israelita), a fita revela, nuamente, como as razões de ambas as partes são as mesmas, logo, inconciliáveis: tanto uns como outros recorrem ao argumento do sangue, da família, da terra. Num dos diálogos do guião mais reveladores a esse respeito, um palestiniano comenta que o seu povo está disposto a esperar milhares de anos para recuperar a sua terra, tal como os israelitas, desde a destruição de Jerusalém, também esperaram, vendo só concretizado o sonho do regresso à pátria. Perante argumentos desta natureza, era inevitável que o filme se fechasse com uma triste mensagem de desesperança: a fita não prega moral, apenas constata a impossibilidade de paz.

A única, mas grande, diferença nos métodos entre palestinianos e israelitas é o facto de, pelo menos intencionalmente, os últimos não assassinarem inocentes, ou, sendo mais precisos, civis: pois nem sempre a culpabilidade dos alvos a abater pelos israelitas está suficientemente bem provada, deixando espaço à dúvida – e ao consequente abatimento de inocentes. Pelo menos, a informação, dentro dos seus limites que comportam a inexactidão que acabámos de referir, não era deliberadamente fabricada: como aconteceu na Guerra do Iraque, com a CIA e as “provas” das armas de destruição maciça.

Ainda assim, esta política de eliminação selectiva – como lhe chama Israel, que já avisou que prosseguirá com ela, pondo na lista inclusive o recém-eleito primeiro-ministro do governo Hamas – tem verdadeiros efeitos práticos? A película é, garanto, profundamente deprimente. A resposta que nos dá é um redondo não, ainda que, em defesa de tal estratégia, um dos personagens argumente que não deixamos de cortar as unhas só porque elas voltam a nascer, para explicar porque, a seu ver, se deve continuar com tal política, ainda que o terrorismo surja, claramente, como uma Hidra, em que uma cabeça cortada dá logo lugar a duas. Avner, o protagonista, não aceita a explicação, resignando-se à vanidade das suas acções.

Munique é também um magnífico ensaio sobre como a violência altera para sempre um homem. Os membros da Mossad destacados para assassinar os responsáveis pelo planeamento de Setembro Negro começam, gradualmente, a ter dúvidas sobre a justeza moral da sua missão: ou não estarão eles, para todos os efeitos, a assassinar também?

«Uma oração pela paz»: assim chamou Spielberg ao seu filme que divide quantos o vêem. Deixemo-nos também dividir – é o convite que vos lanço.

Publicado a 29 de Março de 2006

Apelo Público

Três acontecimentos distintos precederam esta crónica. Nas últimas semanas antes desta pausa lectiva, alguns colegas meus dos agrupamentos de economia e artes tiveram de fazer um teste para aplicarem os seus conhecimentos gramaticais recentemente adquiridos: assim o obriga a inclusão de tal matéria – não leccionada em anos anteriores – no exame, forçando professores e alunos a verem num ano o que deviam ter visto em três. Se isto fora bastante para suspirarmos de requiem pela organização do país, acontece, porém, que algo mais de grave escondia o estudo dos meus amigos. Olhando para as suas fichas de trabalho, constatei a panóplia de nomes e designações gramaticais várias com que jamais me havia cruzado na minha carreira estudantil. Pedi-lhes que mo explicassem, o que prontamente fizeram, revelando-me que aqueles termos tinham sido difundidos por um qualquer iluminado do Ministério da Educação. Era o disparate cumprido e encarnado – para não mencionar o disparate intrínseco que é aprender gramática no secundário: de todo despropositado, se a Literatura é tão mais apaixonante.

Outro dia, numa amena conversa com outro meu conhecido, ele rejubilava, porque tirara boa nota num teste de português. Perguntei pela matéria da prova e ele respondeu-me: “discurso político”. Fiquei atarantado, sem compreender: não era ele do 11º de Humanidades? Nunca eu, em igual agrupamento, aprendera tal coisa. Esclareceu-me que era uma matéria dada agora em conjunto com o Sermão aos Peixes de P.e António Vieira, uma vez que os programas de português A e B haviam sido fundidos. Mas se era para fundir, que o programa de B se elevasse ao nível do A, nunca este se baixasse ao outro! Inquiri mais, e descobri – quão pouco informado andava! – que Amor de Perdição ou Folhas Caídas deixaram de constar das obras de estudo. Obviamente, algo de podre exalava cronicamente do reino do ensino do Português...

A minha imaginação é que não podia conceber barbárie como a que finalmente se revelou em todo o seu esplendor, há uma semana, num artigo de Maria do Carmo Vieira, aparecido no Público. Aí, denunciam-se Vpps, adjectivos relacionais, nomes epicenos, nomes agentivos. Se o leitor não percebeu, não se preocupe: eu também não. Mas estes são os palavrões inventados por um qualquer linguista que, doravante, devem ser ensinados no básico para classificar aquilo que antes eram adjectivos e substantivos.

Tenho vindo a denunciar sistematicamente nesta coluna atentados à inteligência dos alunos. Se não me engano (era tão bom que me enganasse!), daqui a pouco tempo, de novo me encontrarão vituperando sobre o mesmo assunto. Porém, o que hoje aqui apresento é, de tal forma, visceralmente repugnante ao trucidar a nossa pátria – que a “minha pátria é a língua portuguesa”, como dizia Pessoa – que exige que algo se faça contra tal. Lanço, pois, aqui o meu apelo público. Apelo para ti, aluno, não só porque isto é um claro atentado à tua dignidade e uma tentativa burocratizada de te estupidificar, mas porque desnecessariamente te complicam o que é simples; apelo para ti, professor, a quem esta reforma linguística obriga a que assistas pateticamente a acções de formação e que sabes, lucidamente, o quão errada ela é; apelo para ti, encarregado de educação, porque estão, obviamente, a manipular o teu educando, castrando-lhe a cultura; apelo para ti, cidadão, porque, com um ensino assim, permites que se fabriquem patetas que governarão o país em que vives. Apelo, no fundo, para todos os homens de boa vontade – e, mais que isso, de bom senso, que é o que falta abundantemente à Ministra.

Publicado a 1 de Março de 2006

Caricato(ura), não?

«Medo é remorso antecipado», confessava-se na peça de José Rodrigues Miguéis, O Passageiro do Expresso, que a Oficina de Teatro do Cértoma já representou entre nós. E o medo de Kåre Bluitgen parecia conter em si já o remorso pelo acto, como que, numa omnisciência estranha, previsse o que se seguiria. Embora poucos o saibam, este é o homem que espoletou toda a controvérsia dos cartoons, ainda que indirectamente. Autor do livro O Corão e a Vida do Profeta Maomé, o escritor teve grandes dificuldades em encontrar ilustradores para a sua obra, publicada este ano, por medo dos desenhadores de represálias de extremistas islâmicos. Foi em sabendo do caso que o director do obscuro jornal dinamarquês resolveu propor a alguns caricaturistas que representassem o Profeta – causando a confusão.
Compreenda-se que, em primeira análise, o que irritou a comunidade muçulmana foi a simples representação de Maomé, que é interdita segundo o Corão. Não podemos limitar a liberdade, num estado laico, a preceitos religiosos: existem hindus em Portugal e, tanto quanto saiba, ainda não houve qualquer petição para interditar o abate de vacas. Em segundo lugar, circularam pelos países árabes caricaturas de cariz sexual explícito, envolvendo o Profeta, que não foram publicadas em qualquer jornal ocidental. Houve, evidentemente, um aproveitamento do caso por parte das comunidades islâmicas. De facto, toda esta questão foi devidamente empolada pelos líderes religiosos dinamarqueses que, não obtendo a reacção tempestuosa que esperavam, elaboraram um dossier de 43 páginas que fizeram circular pelo mundo árabe, procurando assim espicaçar os seus irmãos de fé, para conseguirem a solidariedade que sentiam faltar-lhes. Tal atitude representa uma tentativa descarada de inflamar os ânimos. Registou-se um óbvio aproveitamento político da situação – que está longe de ser meramente religiosa.
Finda a Inquisição cristã, eis que se ergue, violentamente, o Santo Ofício de Alá. Os autos-de-fé não queimam pessoas, mas incendeiam embaixadas – e as fatwas já estão lançadas. Já em 2004, o filme de Theo van Gogh, Submissão, uma curta-metragem de dez minutos sobre a violência nas sociedades islâmicas contra as mulheres, acabou por ser a sentença de morte do realizador. O mesmo recurso à força agora é, para todos os efeitos, e independentemente da opinião que se possa ter sobre a polémica, uma transgressão muito mais gravosa das regras do Estado democrático do que a publicação dos cartoons. Não teria o cartunista que desenhou Maomé com um turbante-bomba, até um certo ponto, dentro dos limites de uma certa facção dos muçulmanos, acertado argutamente na sátira?
Reservando-nos ao direito de, moralmente, concordar ou discordar das caricaturas, não podemos, porém, unilateralmente, proibi-las. Esta caso está a abrir um precedente na opinião pública – tendencialmente favorável aos muçulmanos – que poderá ser hábil e erradamente manipulado. O direito de se exprimir – e com humor, como convém ao cartunista – não pode, não deve, ser interditado. De tal forma que, na mesma Dinamarca, foram publicados outras doze caricaturas satirizando o primeiro-ministro e a o tratamento dado por este ao caso. A partir do momento em que abrimos uma excepção para as religiões (e quantas vezes não foram satirizados cristãos e judeus?), temos de passar a considerar outros grupos como não passíveis de o serem, como ideologias políticas ou correntes filosóficas. E eis que, em nome do convívio saudável entre todos, a civilização da liberdade deixa-a cair, conquistada por uma falsa paz e pelo medo. Caricato(ura), não?

Publicado a 15 de Fevereiro de 2006

22 February 2006

Munique-Teerão

Amanhã estreia Munique, o novo filme de Spielberg, sobre a retaliação israelita após o sequestro, por palestinianos, da sua comitiva olímpica em Munique, em 1972. O espectro da vingança perpetrada por democracias ocidentais é tanto mais válido como tema de discussão se atentarmos nas recentes declarações de Chirac, defendendo o uso de armas nucleares para "a segurança dos nossos abastecimentos estratégicos" e como meio de dissuasão para “os dirigentes de Estados que utilizem meios terroristas, assim como aqueles que tencionem usar armas de destruição maciça”.

Se a proposta francesa força as fronteiras da razão, entrando no delírio, levanta, contudo, a mesma questão da fita de Spielberg: haverá um dever do bem de aniquilar, violentamente se preciso, o mal? Maniqueísta, a pergunta é dúbia, pois implica sempre uma definição de herói e de vilão. E se para o Ocidente o inimigo é o fanatismo muçulmano, para este, o Grande Satã é América e Israel. Elucidativas a este propósito são as afirmações de Ahmadinejad, presidente do Irão, que considera o Estado judaico “tumor maligno a riscar do mapa”, congratula-se pelo coma de Sharon, apelida de “mito” o Holocausto e sugere a transferência de Israel para a Europa.

Estas opiniões ganham tanta mais relevância quando o programa de enriquecimento de urânio foi, aquando da eleição de Ahmadinejad, retomado. A actual crise iraniana começa a atingir cumes insuportáveis, com o claro desprezo a que o Irão votou a Agência Internacional de Energia Atómica e a própria ONU. O acesso à energia nuclear por um tal fanático não é, por certo, para fins pacíficos, antes com o intuito de agressão ao Ocidente.

O Irão terá de/será atacado. Segundo país no «Eixo do Mal» de Bush, o ataque ao Irão é uma possibilidade remota neste momento, não obstante a necessidade que se lhe possa reconhecer. Só há três forças que poderiam comandar uma ofensiva e nenhuma agirá tão rapidamente. Israel encontra-se num clima de incerteza que não se dissolverá senão em finais de Março, quando for eleito um novo governo. Os EUA estão imobilizados: as suas tropas estão demasiado dispersas e as campanhas de recruta angariam cada vez menos jovens. Só com o abandono total do Afeganistão e do Iraque é que uma tal acção militar poderia começar a ser ponderada. Em termos de opinião pública, a América sofre do problema de Pedro e o Lobo: tendo mentido aquando do Iraque, agora, ainda que as razões sejam justas e acertadas, ninguém acreditará. A Europa, essa, nunca avançará sem os EUA, se bem que se coligará efectivamente – não como aquando do Iraque – com eles.

Porém, uma tal intervenção bélica poderia não redundar nos efeitos desejados. Os regimes islâmicos radicalizaram-se, tanto em Agosto com a eleição de Ahmadinejad, como na semana passada com a vitória expressiva do Hamas na Palestina. A violência no Iraque persiste – o plano para o Médio Oriente parece estar redondamente a falhar. Um ataque-relâmpago, o suficiente para resolver a crise a curto prazo, obrigaria a um segundo ataque dos EUA, posteriormente, tal como aconteceu após a incompleta primeira guerra do Golfo. Porém, um mero ataque aéreo às fábricas atómicas poderia desencadear uma resposta violenta, como o confirmou um Guarda da Revolução: “Se formos alvo de um ataque militar, usaremos a nossa muito eficiente defesa de mísseis”. O Irão poderia avançar com uma invasão do Iraque, gozando do apoio da maioria xiita iraquiana – ou, pior, atirar-se a Israel. Eis a nova Guerra Fria: passada nos desertos, quente como eles. ■ o corvo

Publicado a 1 de Fevereiro de 2006