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14 February 2008

E Pur Si Muove!

No meu último ano do secundário, a Filosofia, a propósito dos Princípios da Filosofia de Descartes, que então estudávamos para o exame de final de ano, vi Galileo, adaptação cinematográfica da peça homónima de Brecht. O filme, preservado numa velha e corrompida cassete do professor, que o gravara quando fora exibido, gordos anos antes, no quarto canal, figura na lista das mais insossas películas que a minha cinefilia aturou (confesso-vos: aquele coro de garotos que, volta e meia, irrompe filme adentro, ainda hoje me atormenta os sonhos). Quando era miúdo, ria-me com o nome trava-línguas do “velho pisano”, como lhe chamou António Gedeão. O tempo cresceu, e eu com ele, e fui aprendendo a coragem de Galileu e amando o homem, tanto mais que, em pequeno, desejava ser, como ele, astrónomo, na impossibilidade de ser astronauta. O bom cientista, cego pelo Sol, morreu no século XVII.

E pur si muove! E, porém, move-se! Quando se imaginava o processo que a Inquisição lhe moveu já definitivamente enterrado – tão enterrado quanto o próprio Galileu –, eis que um grupo de professores da mais conceituada universidade italiana, La Sapienza, em Roma, resolveu ressuscitar a polémica, enviando uma carta ao reitor da instituição onde se declaravam contra o convite que este havia dirigido a Bento XVI para discursar na inauguração do ano lectivo. Os signatários justificavam a sua posição relembrando a laicidade da universidade, acusando o Papa de se ter pronunciado a favor do julgamento de Galileu num discurso em 1990.

O caso Sapienza permite duas linhas de reflexão: uma, mais geral, sobre a liberdade de expressão; outra, mais particular, sobre o regurgitado confronto entre ciência e fé. A liberdade de opinião está hoje – já o crocitámos repetidas vezes neste espaço – bastante ameaçada. Quem tenha dispensado alguns minutos a ler o discurso de 1990 de Bento XVI terá verificado que o Papa não defende o julgamento de Galileu, antes cita, em contexto próprio, um filósofo que o faz. Porém, ainda que o Bispo de Roma fosse, de facto, favorável à condenação de Galileu (não é), deveria ser livre de exprimir essa sua opinião. A liberdade de expressão comporta também a liberdade de ser idiota. Urge combater o império do politicamente correcto: relembre-se, no ano passado, o caso de James Watson, enxovalhado pela comunidade científica por ter avançado a hipótese de que raça e inteligência podem estar relacionadas. A ideia parece-nos absurda, mas isso não pode justificar a activação imediata de um sistema de censura pública: algumas instituições chegaram, imagine-se!, a retirar a Watson galardões com que o haviam premiado.

Por outro lado, no caso Sapienza, houve uma nítida tentativa de recuperar a antinomia ciência/fé. Nos EUA, este conflito está na ordem do dia, por um lado, devido ao 11 de Setembro, cujas motivações religiosas obrigaram muitos a repensar a natureza das religiões, por outro, por causa da cada vez maior expressão do fundamentalismo cristão americano, trazido para a ribalta com a questão do ensino do criacionismo nas escolas e com a reeleição de Bush. As religiões deparam-se hoje em dia com um grave cenário. Ameaça-as o indiferentismo, fenómeno muito próprio desta chamada pós-modernidade. Esta atitude leva parte dos crentes, como resposta, a procurar exprimir mais radicalmente a sua opção de vida, fermentando os fundamentalismos. Estes, por sua vez, originam nalguns ateus e agnósticos um forte sentimento de indignação, que os convence a extremar as suas posições, assumindo uma postura de crítica aberta ao fenómeno religioso. Indiferentismo, fundamentalismo e ateísmo radical (o «laicismo» dos professores da Sapienza): neste triângulo das Bermudas, a religião vai desaparecendo.

Desaparece – e pur si muove! É que, no fim de contas, a ciência não substitui a religião (Comte tentou fazer isso, e criou essa doutrina abjecta que foi o positivismo: obviamente, nunca tinha lido Fausto, para perceber que a ciência não pode satisfazer o homem). A história, porém, trata sempre de repor a justiça das coisas, com a sua ironia amarga: a Sapienza, riamo-nos!, foi fundada por um papa, Bonifácio VIII. Lá se vai o «laicismo»!

26 February 2005

Um terço dos terços

Certo, vivo nesta terra, a única do país em que um turista pode bradar sem ofender os populares que isto é uma terra de porcos. Contudo, em migrações pendulares estou preso, não só as do tempo e as dos pêndulos dos relógios vetustos que ainda se agitam em paredes de casas mais antigas; mas igualmente nas viagens que os estudiosos assim designam, isto é, aquelas, como a minha, que consistem numa diária ida e volta ao posto remoto de trabalho. O meu ofício localiza-se na cidade cuja autarquia está a pensar mudar o nome da urbe para Rainha Santapólis ou Castropólis, o que não deve tardar muito, tal é a velocidade a que tudo é renomeado para corresponder aos apelidos das duas padroeiras. Tudo, até a começar por uma inocente ponte europeia sobre o Mondego que custou mais do dobro do que estava previsto.

Nessa cidade estudo eu, mesmo nas traseiras do consumo do grande Coimbra Shopping, ponto de fuga habitual para os alunos da Escola Secundária Quinta das Flores aquando dos furos. Não que tal hábito agora continue a durar, pois instalou-se um sistema de cartões electrónicos que impedem saídas durante o horário lectivo, exceptuando a hora do almoço. Foi precisamente numa dessas horas de comida que eu fui passear ao colosso da Sonae, depois de saudavelmente ter reabastecido as forças na cantina escolar, que, no entanto, é demasiado pouco chique para metade dos alunos que preferem ir tomar a sua refeição junto das cadeias americanas de comida rápida que pululam o Continente e são três vezes mais caras que uma vulgar senha de liceu. E depois espantam-se que um terço dos americanos seja obeso!

Relatava eu que ia a passear pelo círculo da restauração, num dos extremos da catedral do consumo, quando vejo uma caricata cena, que acabou por inspirar toda esta crónica desta semana. Bizarra é sem dúvida! Como quem passa e não liga, assim eu rondei a parelha de raparigas que se debruçava sobre um estranho objecto e escutei atento a conversa que encetaram, os gestos que encenaram. E como aquele episódio tão menor era o símbolo, a metáfora duma decadência tão maior! Revele-se pois o que visto foi.

Uma das raparigas retirava da sua mochila um pequeno terço de Fátima cintilante, daqueles que brilham luminosos no escuro. A outra agradeceu-lhe, viva e feliz, pela oferta que lhe havia solicitado há umas semanas atrás. De facto, sabendo que a presenteadora iria a Fátima, requisitou-lhe um terço e a outra rapariga cumprira a sua palavra, trazendo-lho. Já isto era anormal, não fora o desapego dos jovens de hoje em dia à religião, por todos notado. Era pois estranho ver semelhante alegria numa adolescente por receber um terço. Atento, continuei a ver.

Qual não foi o meu espanto quando a rapariga a quem fora dado o objecto religioso, o alarga e o faz passar pela cabeça, tal colar, metendo a cruz do terço dentro da camisa. E muito alegre proclama que aquilo é giro, é moda. Realmente, já antes eu assistira a pedidos de compra de terços por parte da juventude feminina, sem nunca perceber plenamente o que elas pretendiam com tal. E eis que enfim me era revelada a hedionda verdade! Um terço dos terços para esta fraude são vendidos, sem que quem os vende saiba para o que os vende. Que lhes interessa também, a eles comerciantes? Só o dinheiro na caixa registadora é importante e a religião é um grande negócio quando sabe ser bem explorada. Pouco importa o que se vende, importa que se venda. Se não fosse este o seu pensar, razão alguma haveria para que eu, nessas lojinhas que medram em torno ao Santuário, encontrasse objectos tão curiosos e com uma tal falta de bom gosto, como, por exemplo, um disco com a imagem da Aparição de Nossa Senhora com os raios do círculo iluminados de múltiplas cores que vão passando para o raio seguinte, dando a impressão de que o disco está a girar.

Sim, não só o distanciamento das gentes face à religião é preocupante, mas igualmente a banalização dos símbolos do culto, não apenas na Igreja, mas em toda a esfera religiosa mundial. O facto de eu não crer em algo não me dá o direito de zombar desse mesmo algo e dos seus mais queridos símbolos. Fazê-lo, é só mais uma prova da crescente intolerância que se vai semeando no nosso mundo. Uma atitude é contestar os símbolos que se julgam errados, outra, é ofendê-los. Contestar é não usar tais objectos porque não se partilha o significado religioso daquelas peças; escarnecer é desvirtuar o objectivo para o qual tais símbolos foram criados. Não caiamos na segunda tentação. o corvo

Crónica Inédita