26 February 2005

Um terço dos terços

Certo, vivo nesta terra, a única do país em que um turista pode bradar sem ofender os populares que isto é uma terra de porcos. Contudo, em migrações pendulares estou preso, não só as do tempo e as dos pêndulos dos relógios vetustos que ainda se agitam em paredes de casas mais antigas; mas igualmente nas viagens que os estudiosos assim designam, isto é, aquelas, como a minha, que consistem numa diária ida e volta ao posto remoto de trabalho. O meu ofício localiza-se na cidade cuja autarquia está a pensar mudar o nome da urbe para Rainha Santapólis ou Castropólis, o que não deve tardar muito, tal é a velocidade a que tudo é renomeado para corresponder aos apelidos das duas padroeiras. Tudo, até a começar por uma inocente ponte europeia sobre o Mondego que custou mais do dobro do que estava previsto.

Nessa cidade estudo eu, mesmo nas traseiras do consumo do grande Coimbra Shopping, ponto de fuga habitual para os alunos da Escola Secundária Quinta das Flores aquando dos furos. Não que tal hábito agora continue a durar, pois instalou-se um sistema de cartões electrónicos que impedem saídas durante o horário lectivo, exceptuando a hora do almoço. Foi precisamente numa dessas horas de comida que eu fui passear ao colosso da Sonae, depois de saudavelmente ter reabastecido as forças na cantina escolar, que, no entanto, é demasiado pouco chique para metade dos alunos que preferem ir tomar a sua refeição junto das cadeias americanas de comida rápida que pululam o Continente e são três vezes mais caras que uma vulgar senha de liceu. E depois espantam-se que um terço dos americanos seja obeso!

Relatava eu que ia a passear pelo círculo da restauração, num dos extremos da catedral do consumo, quando vejo uma caricata cena, que acabou por inspirar toda esta crónica desta semana. Bizarra é sem dúvida! Como quem passa e não liga, assim eu rondei a parelha de raparigas que se debruçava sobre um estranho objecto e escutei atento a conversa que encetaram, os gestos que encenaram. E como aquele episódio tão menor era o símbolo, a metáfora duma decadência tão maior! Revele-se pois o que visto foi.

Uma das raparigas retirava da sua mochila um pequeno terço de Fátima cintilante, daqueles que brilham luminosos no escuro. A outra agradeceu-lhe, viva e feliz, pela oferta que lhe havia solicitado há umas semanas atrás. De facto, sabendo que a presenteadora iria a Fátima, requisitou-lhe um terço e a outra rapariga cumprira a sua palavra, trazendo-lho. Já isto era anormal, não fora o desapego dos jovens de hoje em dia à religião, por todos notado. Era pois estranho ver semelhante alegria numa adolescente por receber um terço. Atento, continuei a ver.

Qual não foi o meu espanto quando a rapariga a quem fora dado o objecto religioso, o alarga e o faz passar pela cabeça, tal colar, metendo a cruz do terço dentro da camisa. E muito alegre proclama que aquilo é giro, é moda. Realmente, já antes eu assistira a pedidos de compra de terços por parte da juventude feminina, sem nunca perceber plenamente o que elas pretendiam com tal. E eis que enfim me era revelada a hedionda verdade! Um terço dos terços para esta fraude são vendidos, sem que quem os vende saiba para o que os vende. Que lhes interessa também, a eles comerciantes? Só o dinheiro na caixa registadora é importante e a religião é um grande negócio quando sabe ser bem explorada. Pouco importa o que se vende, importa que se venda. Se não fosse este o seu pensar, razão alguma haveria para que eu, nessas lojinhas que medram em torno ao Santuário, encontrasse objectos tão curiosos e com uma tal falta de bom gosto, como, por exemplo, um disco com a imagem da Aparição de Nossa Senhora com os raios do círculo iluminados de múltiplas cores que vão passando para o raio seguinte, dando a impressão de que o disco está a girar.

Sim, não só o distanciamento das gentes face à religião é preocupante, mas igualmente a banalização dos símbolos do culto, não apenas na Igreja, mas em toda a esfera religiosa mundial. O facto de eu não crer em algo não me dá o direito de zombar desse mesmo algo e dos seus mais queridos símbolos. Fazê-lo, é só mais uma prova da crescente intolerância que se vai semeando no nosso mundo. Uma atitude é contestar os símbolos que se julgam errados, outra, é ofendê-los. Contestar é não usar tais objectos porque não se partilha o significado religioso daquelas peças; escarnecer é desvirtuar o objectivo para o qual tais símbolos foram criados. Não caiamos na segunda tentação. o corvo

Crónica Inédita

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