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08 February 2009

Escola de Meio Dia, Erros de Meia-Noite

Regresso: abandonei, enfim, o poleiro inglês. Concluí a minha emigração. Bom tempo para a viagem: depois que deixei aquilo, dizem-me, os ingleses vieram para a rua pedir emprego para os seus, zangados com os portugueses a trabalhar em terra alheia. Numa Londres agora agasalhada em neve, um corvo, preto, seria um alvo fácil da ira dos manifestantes. Bati pois as asas e voei de volta, curioso também de saber as coisas daqui. Recordo bem o meu espanto ao chegar de visita no Natal e descobrir o «novo» candidato do PSD a Lisboa: senti-me tentado a rumar de novo norte e, depois do telejornal da uma, cheguei ainda a pedir ao meu pai que comprasse o bilhete. Entretanto, Obama virou presidente e eu tive esperança que o mundo ficasse melhor e, quiçá, talvez mesmo Portugal. Quatro meses fora mudaram-me muito, certamente – mas continuo irremediavelmente ingénuo.
O país está, afinal, como o deixei e ler o jornal continua a ser aquela actividade cómico-depressiva ideal para os sábados à tarde. Lia há pouco que, pelos vistos, uns mestrandos da Universidade do Porto desenvolveram um programa para telemóvel, o Quizionário, que, dizem, é suposto ajudar os professores nas aulas: os miúdos têm uma pergunta, quatro opções e têm de escolher a certa, somando pontos. A coisa tem até níveis e tudo, para a competição ser mais renhida. Aparentemente o produto já está a ser testado e logo na mais improvável das escolas: a Carolina Michaëlis. Dá-me o telemóvel já, quero estudar – é este o novo grito de ordem.
Sejamos realistas: um aluno com um telemóvel nas mãos tem mais que fazer que jogar ao Quem Quer Ser Milionário?; inevitavelmente usa-lo-á para outra coisa qualquer, mais do seu interesse: sms e afins. Pôr-lhe um telemóvel na mãos é como dar urânio enriquecido ao Irão e esperar que ele o use para fins civis. Duvido, porém, que o projecto vá longe: Sócrates não deve apreciar concorrência ao Magalhães. A ideia, contudo, teria, estou certo, a benção da novíssima pedagogia, contente de converter toda a aprendizagem em algo necessariamente divertido. Antes, tal estratégia era próprio do infantário; aparentemente, agora, é geral.
Louvo este regresso à cultura clássica: em latim, ludus quer dizer tanto escola como brincadeira. Parece ser isto que o Ministério da Educação tem em mente agora que pretende alargar o horário das escolas do primeiro ciclo para doze horas, como anuncia, contente, a Confederação Nacional das Associações de Pais. Na Inglaterra, reparei que os filhos da minha senhoria estavam sempre em casa antes das quatro da tarde, multiplicando-se depois ubiquamente por mil e uma actividades. Aqui, pelo contrário, os próprios pais querem os filhos encarcerados na escola, à qual caberia então entretê-los após o período lectivo propriamente dito. É que, explica o presidente da Confap, «esperar que, em casa, os pais tenham literacia suficiente e computadores para ajudar os filhos a perceber as matérias» é algo que «tem de acabar». Mais valera ser directo e dizer que os pais, simplesmente, não têm pachorra.
Os longos horários de trabalho de hoje levam, de facto, a que para muitos pais seja cómodo, até necessário, os filhos poderem ficar na escola até tarde. Isto, porém, conduz necessariamente a um estranhamento entre pais e filhos, juntos cada vez menos tempo. A solução mais humana, escandalosa para os mais zelosos do lucro, seria a redução dos horários de trabalho. Isto teria ainda a vantagem de, como notava Obama na tomada de posse, combater o desemprego, pois se cada um trabalha menos, são precisos mais para fazer o mesmo trabalho.
O Ministério da Educação, pelo contrário, face ao desemprego que grassa entre a classe docente, pretende agora fazer regressar professores reformados, em regime de voluntariado, para ajudar nas escolas. A medida escandaliza-me quando penso em quantos jovens, sem conseguirem ingressar na carreira docente, trabalham em call centers. Mas este é o país em que estão – perdão, em que estamos: às vezes, ainda me esqueço que estou de volta.

imagem:
Mining Town/ Pa., Alfred Eisenstaedt (1943)

10 September 2008

Kafka em Portugal, Pássaros em Inglaterra (Com Carrossel Literário)

Em finais de Junho/princípios de Julho, fui à secretaria da minha faculdade, com o objectivo modesto de apresentar dois requerimentos para alterar algumas das cadeiras que teria de frequentar no semestre seguinte. Simpática, a funcionária ameaçou-me delicadamente a apresentar a papelada apenas em finais de Agosto, mesmo antes do novo ano lectivo se iniciar. Doutra maneira, acrescentou, teria inclusive de pagar gorduchamente os requerimentos. Deixei-me convencer. Regressado das férias, na data prevista, apresentei-me de novo ao balcão, apenas para que nova funcionária me aconselhasse a escrever os requerimentos só depois de ter completado a matrícula – seria, dizia, mais fácil assim. Mal o mês de Setembro acordou (ainda estava a bocejar e de pijama), eis que me plantei (e levei o regador comigo, pelo sim pelo não) na fila para as matrículas: era o segundo dia que estavam abertas. Pacientemente, esperei uma manhã, despachei o assunto e fui então determinado à secretaria, novamente.
Tinha particular urgência no requerimento: até ao final desta semana precisava de saber se tinha sido deferido ou não. Escrevi em letra bonita as cartas aos presidentes do conselho directivo e do científico e, orgulhoso de, por fim, ter encerrado com sucesso tão épica tarefa, entreguei-as à funcionária, sem deixar de perguntar quando teria uma resposta. «Isto agora pode demorar muito tempo», foi toda a recompensa que tive do meu esforço. Este é o drama absurdo (como uma peça de Brecht com um título de Beckett: à espera do requerimento) de Portugal: um homem pode tentar fazer as coisas com antecedência (ver o futuro com telescópio), mas inevitavelmente é proibido disso, só para ser reconduzido para a última hora que é em cima da hora a cavalo da hora empinada na hora – e, depois de esperar, esperar mais.
Este, porém, foi um dia dos prodígios (plagio Lídia Jorge, que nunca li). Ao longo da minha odisseia de um dia (como a do protagonista do Ulisses de Joyce – este vou ler a seguir), tropecei nos mais fantásticos casos, certamente argumentos perdidos de Kafka. O namorado de uma amiga minha não se conseguia matricular porque a Burocracia (assim mesmo, com maiúscula) insistia que ele tinha propinas em atraso. Descobriu depois que o sistema o acusava de dever uma propina de dois mil e oito cujo prazo máximo de pagamento era... dois mil e sete. Sugeri-lhe que lesse rápido o Em Busca do Tempo Perdido, do Proust: quiçá assim conseguisse recuar no tempo (caso a coisa falhasse, propus-lhe ainda A Máquina do Tempo, de Wells).
Uma outra colega tinha sido também travada na sua matrícula pelo mesmo motivo: devia ainda dinheiro das propinas. A carta que lhe haviam enviado para casa especificava com rigor e com bigode e gravata a quantia em falta: 0,00€ - assim mesmo, com três zeros. Encontrei ainda outra aluna que tinha recebido uma carta avisando-a de que prescrevera, facto que a impedia agora de se inscrever no mestrado que pretendia fazer. Pormenor (quiçá importante): a rapariga, poucos meses antes, recebera o Prémio Feijó, que galardoa os melhores alunos da faculdade. Ao lado dela, um rapaz implorando, em verdadeiro desespero (parecia um quadro de Munch), por um diploma que desde há dois meses mendigava. Tudo está dominado pelo acaso (e pela incompetência), como na Babilónia de Borges, em que tudo era decidido pela lotaria.
Cansado desta overdose de Kafka, resolvi desprezar o exemplo estático do meu irmão (aquele que se esculpiu num busto de Palas em casa de Poe e tem um poema), bati asas e voei. Dizem ser uso dos pássaros fazê-lo, de resto. E a estação é certa e propícia. Resolvi fugir para Bristol, na Inglaterra, numa hibernação de quatro meses (os cientistas que estudam estas coisas chamam-lhe, palavra esquisita, erasmus). Arrumo a pena – recoloco-a na asa, para ajudar ao voo. Estou de partida – e isto não é partida de mau gosto. Vou, muito literalmente, calar o bico, nestes pequenos quatro meses. Até à primeira andorinha (eu venho atrás).