Showing posts with label a ministra. Show all posts
Showing posts with label a ministra. Show all posts

04 July 2008

Os Dias da Ment-ira

Há muito – tenho já saudades! – que não pratico o meu hobby favorito: atacar a excelentíssima Ministra da Educação e a sua trupe iluminada. Perdoe-se-me a crueza dos termos, politicamente incorrectíssimos, mas “a ira tem, porém, seus privilégios”, como escreveu Shakespeare no Rei Lear. Estes, contudo, mais que os dias da ira, são os dias da mentira (e não é abril, sequer). No requiem pela educação, a furiosa secção do dies irae (na cabeça ribombam os acordes de Mozart) foi substituída, parece, pelo dies mendacii, o da mentira.
A política tornou-se, de facto, a arte de bem mentir. A expressão peca por redundância: toda a arte é fingimento (“O poeta é um fingidor”, dizia Pessoa), mas, como explicava a protagonista de V de Vingança, o filme: “Os artistas utilizam mentiras para revelar a verdade enquanto os políticos as utilizam para esconder a verdade”. A grande vantagem da mentira hoje é ser fácil demonstrar cientificamente que é verdadeira. Já Sócrates, esse heterónimo de Platão, dizia no Hípias Menor: “o mesmo homem que mente é o que diz a verdade”. E assim a Ministra proclama: foram reduzidas de maneira extraordinária as negativas nas provas de aferição. E esquece-se: isso está longe de se traduzir num maior domínio da disciplina pelos alunos, antes reflecte uma simplificação excessiva das provas, como critica a Sociedade Portuguesa de Matemática. A Ministra vende-nos uma verdade falsa (só um tempo como o nosso podia ter engendrado este paradoxo lógico). As estatísticas, barro fácil de moldar conforme mais sirva ao oleiro, são apresentadas como espelho do real, quando nem espelho nem real são: são caricatura.
As estatísticas são hoje o bunker do governante, que nele fechado vai ignorando a cidade que se desmorona à sua volta. Hitler, nos seus últimos dias, enterrado debaixo de terra entre paredes e corredores de cimento, movia divisões imaginárias no seu mapa de guerra: assim age o político, armado dos seus números, geografias de uma realidade imaginada, falando de um mundo fantástico, irmão da Terra-Média de Tolkien ou da Nárnia de Lewis. Pouco importa que, na prática, muitos alunos pouco ou nada saibam; o importante é assegurar o seu “direito a ter sucesso”, como lhe chamou Margarida Moreira, Directora Regional de Educação do Norte, a responsável pelo badalado caso Charrua, no ano passado. Por isso, recomenda que se afaste da correcção das provas “aqueles professores que têm repetidamente classificações muito distantes da média”, o que, neste contexto, significa, naturalmente, os mais exigentes.
Creio que tanto esmero não seria necessário: os exames já são, em si mesmos, assaz simples, como várias vozes têm confirmado. Importantes são os resultados, nem que para isso se recorra ao facilitismo. O lema destes novos pedagogos – devo escrever pedabobos? – parece ser o velho “laissez faire, laissez passer” – deixai fazer, deixai passar. É uma política coerente para um governo liderado por um primeiro-ministro que adquiriu a sua licenciatura da forma por todos conhecida. Ao contrário do que muitos então disseram, esta não é uma questão frívola, antes revela uma forma de ser, onde o que conta é o título, o grau, o diploma, o inglês técnico.
Veja-se a mirabolante ideia da Ministra de agora instituir um Dia do Diploma, a saber, dia doze de Setembro, em que se procederá à entrega dos certificados aos alunos que tenham concluído o Secundário no ano anterior. Trata-se da importação de uma tradição americana, bem conhecida de todos por causa dos filmes. Depois das sorridentes e televisivas entregas de computadores, a entrega de diplomas. Há-de ser giro fazer uma festa e gastar mais dinheiros públicos a distribuir papéis aos alunos. A mentira, Deus!, é uma coisa tão alegre.

14 February 2008

Disparem Sobre O Pianista

Uma amiga minha, estudante de boas notas, abandonou recentemente o curso de Direito para, corajosa, prosseguir o seu sonho de longa data: ser cantora lírica. Marcámos um lanche, para ela me contar a novidade e eu lhe cantar os parabéns. Entre tostas mistas e um sumo, fomos conversando sobre a música e o mundo. Vice-presidente da Associação de Estudantes do Conservatório de Coimbra, L. (guardemos, por ora, o anonimato – em tempo oportuno, daqui por uns anos, talvez descubram, num cartaz do São Carlos, o nome dela) chamou-me a atenção para o ataque que o Ministério da Educação está a (pro)mover contra o ensino da música em Portugal. Eu lera já umas notícias sobre o assunto, e logo na altura achara tudo aquilo muito disparatado (mas essa já é a minha opinião natural sobre várias obras da actual Ministra), mas, após o lanche, resolvi, sherlock holmes, investigar o caso – e o que descobri horrorizou-me.

Depois do ataque ao Sistema Nacional de Saúde, eis o ataque à rede pública de ensino de música, essa arte maior, das artes a maior. De novo, tudo se pratica com boas intenções (o povo e os artistas é que, lá está, são burros, coitados!): desta vez, o alibi é a democratização do ensino da música. Pretende a Ministra que os conservatórios não possam dar aulas (os chamados cursos de iniciação) aos alunos do primeiro ciclo que, doravante, serão iniciados na arte musical na própria escola, no âmbito das actividades de enriquecimento curricular. Uma coisa, porém, não substitui a outra; posso afirmá-lo por experiência própria, eu que tive quer educação musical na primária, quer aulas de piano por fora, numa escola privada. Basta considerarmos que, numa turma, apenas se pode fazer uma sensibilização geral para a música, porque a aprendizagem séria de um instrumento requer um acompanhamento individual: não se pode ensinar piano a uma turma de trinta alunos (vulgarmente, escolhe-se a flauta de bisel, portátil, simples e barata). Para ultrapassar este limitação é que o conservatório oferece uma formação musical especializada, de seis horas por semana, às crianças.

A loucura da Ministra, contudo, não conhece limites, tendo passaporte para todas as fronteiras que pudéssemos conceber. Pretende pois o Ministério extinguir ainda o regime de frequência supletivo do conservatório, o mais comum, que permite ao aluno frequentar paralelamente o ensino normal e o musical, sem que seja obrigado a decidir-se especificamente por um deles. O fim deste modelo traduzir-se-á na perda de 75% dos actuais estudantes do Conservatório de Lisboa. Doravante, apenas o regime integrado estará disponível, o que obriga a que a opção por uma carreira musical de carácter profissional seja feita com somente dez anos. Esta situação – que uma criança, tão nova, seja forçada a decidir o seu futuro – é tão ridícula que, sou-vos franco e aberto, faltam-me palavras para a comentar: não sei que diga – apenas me resta o espanto ante a situação em que naufragámos. Com esta reforma, quem queira aprender um instrumento, sem desejos de fazer da música profissão, não tem mais os conservatórios.

No seminal 1984 de Orwell, todos os ministérios são nomeados pelo seu antónimo: assim, por exemplo, o Ministério da Paz é o responsável por perpetuar a guerra em Oceânia. Da mesma forma, em Portugal, o Ministério da Educação está na verdade encarregue da deseducação geral. Lamento que o novo Ministro da Cultura ainda não se tenha debruçado sobre este problema, contendo a insensatez da sua colega de governo. A música, como toda a arte, exercício humano de transcendência, é uma característica essencial da nossa natureza. Nela se exprime muito da grandeza ou ridículo de uma nação. Mesmo os cépticos e economistas têm de se curvar perante os números: a cultura representa 2,6% do PIB da UE, bem mais que o sector têxtil, a restauração ou o tabaco. Vale a pena investir nela. Estes aspectos financeiros, para mim, porém, são o menos relevante: o importante é a formação de homens, íntegros e integrais.

Contra isso combate o Ministério: contra ele combatemos nós.

imagem: fotograma de Tirez Sur Le Pianiste (1960), de Truffaut.