No final de Agosto, foi revelado na íntegra um relatório da CIA, datado de 2004, em que, com um pormenor ausente dos memorandos que a Administração Obama havia tornado públicos há já alguns meses atrás, se ilustram alguns dos métodos de tortura – ou «técnicas avançadas de interrogatório», na novilíngua da era Bush – usados contra presumíveis terroristas. Os jornais e as televisões encarregaram-se de revelar os pormenores mais sórdidos, desde um suspeito cuja mãe os soldados ameaçaram violar à sua frente até outro a quem foi apontado um berbequim ligado. As opiniões dividem-se quanto à questão de saber se os agentes da CIA devem ou não ser julgados, havendo quem considere, inclusive Obama (em parte, por estratégia política), que estes devem permanecer impunes, tanto mais que, argumentam outros, eles se limitaram a acatar ordens. Dick Cheney, o infame ex-vice-presidente, monstro-mor da velha administração, espécie louca de Átila, veio já, com os seus acólitos, defender a justeza de tudo isto, pois considera que sem os métodos usados não se teria conseguido obter a informação que, em última análise, diz, preveniu novos ataques em solo americano.
Se não houvesse sinais (porque todas as coisas se anunciam e o inesperado é uma espécie de desatenção), esta polémica, naquela que é a mais antiga democracia do mundo, teria de necessariamente nos surpreender, havendo de ser entendida como um atavismo. A ficção, porém, prenunciava-o (cumprindo a profecia de Wilde de que vida, ela sim imita a arte), no facto de a série 24 ser um das mais vistas e Jack Bauer, o protagonista, se ter tornado num ícone republicano, evocado como exemplo de quem, perante uma América em perigo, não hesita em recorrer a meios mais «heterodoxos» para proteger o país (declarações de um dos candidatos nas primárias republicanas). Nem todos os americanos, claro, pensam assim, mas o simples facto de haver quem, em cargos políticos significativos, mesmo se sob o espectro ainda do 11 de Setembro, o faça, tem necessariamente de ser preocupante (Palin, lembre-se, gozou com Obama por este defender que os suspeitos de terrorismo deviam ser informados dos seus direitos).
A um dado momento no Munique de Spielberg, Golda Meir avisa: “Todas as civilizações sentem a necessidade de negociar compromissos com os seus próprios valores”: será isto um truísmo, sob a égide do medo e da socbrevivência? Somos capazes do acto paradoxal de hipotecar os nossos valores para os salvaguardarmos? A pergunta ganha particular pertinência agora que recordámos o início da II Guerra Mundial, no passado dia um, pois que foi com o seu fim que a Europa, esventrada, optou pela paz, antes improvável, hoje necessária, nem que seja como hipérbole da segurança, o valor, não declarado, mais importante para a maioria das pessoas. Tornámo-nos demasiado morais ou, simplesmente, demasiado cínicos, para que possamos crer na guerra como solução. Veja-se: sabemos, por exemplo, que parte fundamental do nosso futuro se joga no Afeganistão. A consciência dessa verdade geopolítica, porém, em nada altera o nosso sentimento: os ingleses continuam a exigir, de forma peremptória, o rápido regresso das suas tropas. Obama, pelo contrário, envia mais soldados.
A questão tremenda a que temos de responder é: não assenta a possibilidade do nosso pacifismo europeu no belicismo americano? Não haverá uma profunda hipocrisia subjacente a todo o orgulho com que nos arvoramos em guarda avançada da civilização & democracia? A II Guerra Mundial, que evocamos e cuja importância e justeza, penso, ninguém questiona, consistiu, no fim de contas, também numa espécie de pornografia moral, em que os Aliados, para esmagarem um totalitarismo juntaram-se a outro, em que, para triunfar, tiveram de – por relutantemente que o tenham feito – servir-se das mesmas técnicas de intimidação e terror que aqueles que combatiam usavam: pense-se nas duas bombas atómicas ou na destruição de Dresden, talvez só semelhante à de Cartago. Falta uma interrogação sincera pela força das nossas convicções – e até mesmo pela sua possibilidade.
A um dado momento no Munique de Spielberg, Golda Meir avisa: “Todas as civilizações sentem a necessidade de negociar compromissos com os seus próprios valores”: será isto um truísmo, sob a égide do medo e da socbrevivência? Somos capazes do acto paradoxal de hipotecar os nossos valores para os salvaguardarmos? A pergunta ganha particular pertinência agora que recordámos o início da II Guerra Mundial, no passado dia um, pois que foi com o seu fim que a Europa, esventrada, optou pela paz, antes improvável, hoje necessária, nem que seja como hipérbole da segurança, o valor, não declarado, mais importante para a maioria das pessoas. Tornámo-nos demasiado morais ou, simplesmente, demasiado cínicos, para que possamos crer na guerra como solução. Veja-se: sabemos, por exemplo, que parte fundamental do nosso futuro se joga no Afeganistão. A consciência dessa verdade geopolítica, porém, em nada altera o nosso sentimento: os ingleses continuam a exigir, de forma peremptória, o rápido regresso das suas tropas. Obama, pelo contrário, envia mais soldados.
A questão tremenda a que temos de responder é: não assenta a possibilidade do nosso pacifismo europeu no belicismo americano? Não haverá uma profunda hipocrisia subjacente a todo o orgulho com que nos arvoramos em guarda avançada da civilização & democracia? A II Guerra Mundial, que evocamos e cuja importância e justeza, penso, ninguém questiona, consistiu, no fim de contas, também numa espécie de pornografia moral, em que os Aliados, para esmagarem um totalitarismo juntaram-se a outro, em que, para triunfar, tiveram de – por relutantemente que o tenham feito – servir-se das mesmas técnicas de intimidação e terror que aqueles que combatiam usavam: pense-se nas duas bombas atómicas ou na destruição de Dresden, talvez só semelhante à de Cartago. Falta uma interrogação sincera pela força das nossas convicções – e até mesmo pela sua possibilidade.
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