Showing posts with label direitos humanos. Show all posts
Showing posts with label direitos humanos. Show all posts

27 July 2008

Persona

Quando visitei Paris, no Verão passado, recordo-me de, ao passar em frente ao Hôtel de Ville (o cenário em que se beijavam os dois amantes da famosíssima foto de Robert Doisneau), se encontrar aí um poster gigantesco com a imagem de Ingrid Betancourt (a França sempre fez do seu resgate uma causa nacional). Nada me fazia adivinhar que, quase um ano mais tarde, Ingrid conheceria, de facto, a liberdade. No meio do regozijo geral, só uma voz se calou: a do PCP. No seu primeiro comunicado à imprensa, não se encontrava uma única palavra de contentamento pelo fim do cativeiro dos quinze reféns. Na Assembleia, recusou-se a subscrever o voto de congratulação aprovado pelos demais partidos, propondo um outro, da sua lavra, insistindo em não condenar as FARC, em virtude da duvidosa amizade que os comunistas mantêm com a guerrilha colombiana, por ambos partilharem a mesma ideologia marxista.

Não me interessa aqui zurzir no PCP, que assim se descredibiliza e desonra a esquerda, mas antes reflectir sobre a forma como a pessoa saiu do centro da discussão política, para ser suplantada pelo fundamentalismo ideológico ou pelo seu oposto, o relativismo da conveniência (também chamado Realpolitik). O PC cometeu, dos dois, o primeiro pecado. Acima de toda a ideologia está o homem (neste caso concreto que discutimos, a mulher). Nenhum valor é absoluto, porque sujeito à régua da pessoa: “O homem é a medida de todas as coisas”, dizia bem Protágoras. Honra, verdade, justiça: nobres que sejam – e são – estes valores, devem cair aos pés da pessoa, a quem devem servir. Até Deus, neste particular, se inclina ante o homem: a incapacidade de o perceber foi o que esteve na base desse erro colossal que foi a Inquisição, em que se julgou justo matar por crime de lesa-divindade (o mesmo mau juízo o fazem hoje os radicais islâmicos). De igual doença e cegueira morre o capitalismo, que, com a sua tónica no lucro, perdeu a pessoa para ter a máquina (estava tudo na 25ª Hora, de Gheorghiu – urge reler!).

O segundo pecado que apontámos não é, contudo, menos grave que o primeiro. Apagar a pessoa do discurso político em função de conveniências & convivências é igualmente trágico. É a isso que o mundo, por exemplo, tem vindo a assistir no caso do Zimbabwe (e também aqui o PCP foi o único partido do Hemiciclo que se absteve aquando da aprovação de um voto de condenação da situação política daquele país). Dias depois das mais que fraudulentas «eleições» no país, os líderes africanos receberam Mugabe, o «novo» presidente (esse mesmo que Sócrates convidou para a Cimeira EU-África), no Egipto, tendo o presidente do Gabão afirmado que “acolhemos Mugabe como um herói”. Percebe-se a condescendência: o autor da afirmação já se encontra ele mesmo no poder há quarenta e um anos. Entretanto, soube-se que os EUA usaram em Guantánamo técnicas de tortura chinesa e que os guardas tiveram formação específica sobre as mesmas. A UE, há coisa de quinze dias, aprovou a Directiva do Retorno, para controlar a imigração, de uma severidade impensável, para escorraçar aqueles que, mais e mais, contribuem para a sua construção (muito literalmente).

Neste vomitado de notícias, dá vontade de perguntar: e as pessoas? Que silêncio sobre os métodos ilegais de Mugabe pode calar a fome e o sangue dos zimbabwianos (ou o das vítimas do Darfur, cujo governo assassino é apoiado por essa China a que vamos agora todos lamber as botas nos Jogos Olímpicos)? Como é possível que os guardas de Guantánamo vissem à sua frente terroristas, mas não pessoas, impossíveis de serem torturadas? Como não vê o Parlamento Europeu o desespero daqueles que arriscam tudo por uma esperança chamada Europa e os recambia de volta para os seus países, como se tratassem de produtos com defeito que se devolve à fábrica? Perderam-se, na política, as pessoas. Só há já números, palavras, abstracções. Não entendo não entendo não entendo. Como é que chegámos a isto, meu Deus? Como é que saímos disto, meus homens?

04 July 2008

Crónica Sem Solução

Quem me conhece sabe bem como aspiro a ser cinéfilo e sonho ser realizador. Não foi inocente, na plantação do desejo, a reabertura do Cine-Teatro Messias, que me trouxe o cinema montanha mágica a mim, maomé. O cinema como arte, porém, descobri-o em casa com esse filme de que me tornei pregador: Dogville, de Lars von Trier (2003). Os meus amigos mais próximos, todos eles sofreram o meu apostolado: Dogville, afirmo-lhes, é a prova final que temos todos de atravessar como homens, a esfinge última que guarda a tebas da nossa humanidade e a cujas questões, édipos, temos de responder. A cada espectador a fita assombrará conforme for mais incómodo; para mim, sobre as demais, uma interrogação emerge depois dos créditos: será legítimo ao bem, para triunfar sobre o mal, recorrer precisamente ao mal? Até hoje a pergunta atormenta-me, sem que lhe ache resposta, encravado em insónias morais.
Dogville era uma parábola, mas a realidade encarrega-se de fazer descer as abstracções ao quotidiano, e a especulação filosófica ganha, subitamente, o vestido de dilema político com a situação catastrófica em que o ciclone Nargis amortalhou a Birmânia. Era perturbador interrogarmo-nos, como já o fizemos aqui aquando do tsunami do sudoeste asiático num exercício de teodiceia, sobre o absurdo porquê disto, a razão metafísica de tamanho holocausto: quase metade das vítimas, até agora, são crianças (“Mas as crianças, Senhor,/Porque lhes dais tanta dor?”). Outra catástrofe, porém, se abate agora sobre o país: a tirânica Junta Militar, que apodrece há décadas no poder – a mesma, lembram-se?, que no final do ano passado esmagou a sublevação dos monges budistas, a efémera revolução de açafrão –, está a impedir a entrada no país da ajuda humanitária da comunidade internacional. Há um milhão e meio de sobreviventes que, sem nada para comer e sem cuidados médicos, correm sérios riscos de morrer. Apesar deste cenário, a Junta recusa-se a atender os telefonemas de Ban Ki-Moon, secretário-geral da ONU.
O autismo do regime birmanês imola, a cada dia, novas vítimas. Há navios da União Europeia carregados de alimentos às portas da Birmânia – impossibilitados de prestar ajuda. A questão de Dogville assume agora, pois, uma formulação muito material: deve a ONU obrigar a Junta, ainda que pela força, a aceitar o auxílio da comunidade internacional? Teoricamente, sim. Os países-membros das Nações Unidas consagraram em 2005 a “responsabilidade de proteger” (R2P, abreviam os ingleses), isto é, comprometeram-se a intervir – militarmente, se for preciso – se um Estado, dalguma forma, se revelasse incapaz da sua função primeira: proteger o seu povo. A ideia do R2P é prevenir situações como o genocídio do Ruanda, a que o mundo assistiu calmamente, entre dois cigarros. Como, porém, já alguns vieram argumentar – nomeadamente Bernard Kouchner, ministro francês dos Negócios Estrangeiros e co-fundador dos Médicos Sem Fronteiras –, a presente situação da Birmânia poderia bem justificar a invocação do R2P. A União Europeia e a ONU, contudo, não parecem muito amigas dessa sugestão.
E aqui eis-nos de novo na questão moral fundamental: é justo que se derrube, pela violência, um regime violento para salvar o seu povo da morte? No fundo: os fins justificam os meios? Ou continuaremos a trilhar a muito provavelmente inglória estrada das negociações? Qual o maior crime moral: transvestir os bons de maus, incorrendo em incoerência, ou, à custa de um pacifismo firme, compactuar com um pequeno genocídio? Reconheço a frustração que, para o leitor, deve ser esta crónica: não apresento, de facto, qualquer solução. Muito humildemente, logo no início, reconheci não ter a chave para essa pergunta que me dilacera desde há tanto, águia que me devora o fígado de prometeu. O tempo, porém, não perdoa: milhares de bocas esperam a resposta que lhes daremos. Quem ousa uma decisão?

18 March 2008

O Rasganço

Steven Spielberg renunciou, em meados do mês, ao seu cargo de conselheiro artístico dos Jogos Olímpicos de Pequim, acusando a China de pouco fazer para travar o genocídio em curso no Darfur. A propósito do gesto do realizador, o Diário de Notícias conversou com Vicente de Moura, presidente do Comité Olímpico de Portugal, que exprimiu a sua tristeza com a decisão do cineasta americano, alegando que “não compete ao desporto tomar posições políticas”. O entrevistado afirma mesmo que boicotar os Jogos de Pequim “seria um completo disparate”. Parei o jornal (estava também já na última página), e espantei-me (com boca aberta e tudo, em grande teatro).

Dalguma forma, a entrevista é um espelho polido do tempo presente. Nela, com clareza, se mostra a cesura operada na nossa sociedade entre as várias esferas da acção humana: há muito abdicámos do homem completo. “Deixemos a política para os políticos”, proclama Vicente de Moura. Se a política é, de facto, coisa de políticos e políticos apenas, acabem-se as eleições universais. O presidente do Comité Olímpico português defende-se, invocando o artigo 51º da Carta Olímpica, que proíbe o envolvimento de atletas e dirigentes em movimentos de natureza política. Coisa cobarde esta, de ter a lei como toca para hibernar a consciência. Antígona, a doce filha de Édipo, teria muito a ensinar aos homens de hoje (as mulheres, de resto, são por excelência as professoras dos homens).

Estranho mundo este de heterónimos. Questionado sobre o Darfur, Vicente de Moura reconhece que “a minha posição enquanto cidadão é óbvia”, mas logo a seguir, “como presidente do Comité Olímpico de Portugal”, garante não poder responder à pergunta. Quantos homens podem habitar um homem? Ganhámos a peste de Aristóteles: a de tudo arrumar em categorias. Os direitos humanos, aparentemente, são do âmbito da vida cívica; não da profissional: já o devíamos ter aprendido pela análise do capitalismo – o importante é singrar. Falando do boicote aos Jogos de Moscovo, Vicente de Moura reconhece: “Quem não foi perdeu a oportunidade da sua vida e muitos ficaram esquecidos.” Há um genocídio em curso no Darfur, tacitamente apoiado pela China, mas, apesar disso (saibamos relativizar as coisas), é mais importante que os nossos atletas não esbanjem esta oportunidade de subir ao pódio.

Eis o ser humano rasgado, que hipotecou a sua unidade. Noutro tempo, dizia Terêncio: Sou humano, e nada do que é humano me é estranho. Quantos podem hoje afirmar o mesmo, nesta época em que, todos especialistas numa coisa qualquer desinteressante, perdemos a capacidade de comunicação entre a filosofia, a arte, a religião, a ciência, o desporto e a política? A cisão entre estas grandes áreas da expressão humana é um dos maiores entraves ao progresso.

Veja-se: recomecei as aulas na semana passada. Numa cadeira reflectíamos sobre as várias tentativas de definição do mito. O professor, cansado, concluiu pela impossibilidade de assentarmos numa, pela dificuldade em teorizar o fenómeno. Na aula logo a seguir, porém, outro professor, de área diferente (a bela Filosofia), de imediato aponta no quadro os traços essenciais, delineados com precisão, para que uma qualquer narrativa mereça a distinção de mito. Como é possível tal surdez entre saberes?

Por muito que Vicente de Moura queira mentir a si próprio, desporto e política não constituem duas esferas de acção humana irreconciliáveis. Spielberg agiu bem: Pequim 2008 é para a China o que Berlim 1936 foi para Hitler – uma gigantesca operação de propaganda. Leni Riefenstahl produziu para o ditador alemão um documentário dos Jogos em tudo cordato com a ideologia nazi (Olympia, filme de beleza rara, não obstante): era isso que se pedia a Spielberg. A sua atitude mostra que ainda há, afinal, pessoas íntegras. Seguissem outras o seu exemplo.

14 October 2007

Do Budismo

Retomei na semana passada um conto em que trabalhei durante as férias. Ao descrever um particular movimento de alma da personagem principal, veio-me à lembrança, como recta ilustração dele, uma velha parábola budista. Não me recordo onde a li pela primeira vez (quiçá, no bom Siddharta, de Herman Hesse?). A estória revolve em torno de um homem que, atingido por uma seta embebida em veneno, se recusa a ser tratado sem antes saber quem o feriu – perecendo antes que tal informação consiga ser averiguada. Pretende a parábola ensinar que o homem não deve ocupar-se com especulações filosóficas bizantinas; antes, face à realidade do sofrimento, superá-la. Curioso que a minha mente tenha regurgitado esta memória agora que se fechou o mês de Setembro, em que tanto se falou do budismo.
Tudo começou com a vinda do Dalai Lama a Portugal. O acontecimento acabou abafado pela polémica em torno dele, degradante espectáculo da diplomacia portuguesa. O governo português, “como é óbvio”, recusou-se a receber o Prémio Nobel da Paz. E, como é óbvio, o governo provou-se ridiculamente patético com essa sua atitude. Submisso como um cão, Portugal curvou-se (é esse o costume oriental de saudação) perante a China. Eis que somos governados por quem valoriza o dinheiro acima do homem. Não me devia ter surpreendido, porém, com essa apóstata inversão de valores: este é o mesmo governo que sempre assim os ordenou e dessa forma justificou o encerramento de vários serviços públicos pelo país. Da mesma maneira – vergonhosa, esperada – o PCP veio servilmente em defesa da madrasta China. É revoltante, como um ultimato inglês, esta submissão a uma das maiores ditaduras do mundo. Pelo contrário, Angela Merkel, a chanceler alemã, recebeu, uma semana depois, o Dalai Lama, como é obvio. Convenientemente para o governo, o telejornal da estação pública ignorou por completo o acontecimento, como nota Eduardo Cintra Torres no Público de sábado. Porém, já em Dezembro, mês em que se comemora a Declaração Universal dos Direitos Humanos, Portugal, coerente e contente com a sua hipocrisia, deverá abrir as suas fronteiras a outro ditador: Robert Mugabe, presidente do Zimbabwe. Causa-me impressão que um país destes esteja à frente da presidência da UE – causa-me impressão que eu seja um cidadão desse país.
Os monges budistas têm também chamado a si as atenções pelo papel proeminente que estão a desempenhar na chamada “Revolução de Açafrão”, na Birmânia. Subitamente, os media começaram a falar desse país, do longo lento e mudo sofrimento de uma ditadura de quarenta e cinco anos. “Todos somos responsáveis por tudo perante todos.” – esta frase de Dostoievsky, que conheci via Simone Beauvoir (O Sangue dos Outros), hoje, num mundo globalizado, em que, à imitação de Deus, tudo sabemos, e cada canto do mundo é uma casa vizinha, é mais do que nunca verdadeira, carregando-nos de uma responsabilidade de que não nos podemos, sem prejuízo moral próprio, escudar. Várias campanhas têm sido lançadas estes últimos dias e petições diversas, por exemplo, correm apressadas pela Internet. Também a comunidade internacional tem vivamente repudiado a repressão de que estão a ser alvo os manifestantes. O futuro, porém, está longe de estar seguro – e tudo pode ainda terminar num imperdoável massacre, do qual seríamos todos culpados. A acção urge. Contudo, a China é possivelmente o único país capaz de forçar efectivamente a Junta Militar a abrir o regime, devido à importância das relações económicas entre os dois países. Infelizmente, Pequim não preza particularmente a democracia ou a liberdade dos povos. Triste mundo este em que os direitos humanos são negociados com base em questões económicas. Como na China. Como em Portugal. Parece-me que não precisamos de criar, como insensatamente sugeriu Maria José Nogueira Pinto, uma Chinatown: Portugal é já, neste campo, um Chinacountry.