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09 September 2009

A Integridade Como Problema

No final de Agosto, foi revelado na íntegra um relatório da CIA, datado de 2004, em que, com um pormenor ausente dos memorandos que a Administração Obama havia tornado públicos há já alguns meses atrás, se ilustram alguns dos métodos de tortura – ou «técnicas avançadas de interrogatório», na novilíngua da era Bush – usados contra presumíveis terroristas. Os jornais e as televisões encarregaram-se de revelar os pormenores mais sórdidos, desde um suspeito cuja mãe os soldados ameaçaram violar à sua frente até outro a quem foi apontado um berbequim ligado. As opiniões dividem-se quanto à questão de saber se os agentes da CIA devem ou não ser julgados, havendo quem considere, inclusive Obama (em parte, por estratégia política), que estes devem permanecer impunes, tanto mais que, argumentam outros, eles se limitaram a acatar ordens. Dick Cheney, o infame ex-vice-presidente, monstro-mor da velha administração, espécie louca de Átila, veio já, com os seus acólitos, defender a justeza de tudo isto, pois considera que sem os métodos usados não se teria conseguido obter a informação que, em última análise, diz, preveniu novos ataques em solo americano.
Se não houvesse sinais (porque todas as coisas se anunciam e o inesperado é uma espécie de desatenção), esta polémica, naquela que é a mais antiga democracia do mundo, teria de necessariamente nos surpreender, havendo de ser entendida como um atavismo. A ficção, porém, prenunciava-o (cumprindo a profecia de Wilde de que vida, ela sim imita a arte), no facto de a série 24 ser um das mais vistas e Jack Bauer, o protagonista, se ter tornado num ícone republicano, evocado como exemplo de quem, perante uma América em perigo, não hesita em recorrer a meios mais «heterodoxos» para proteger o país (declarações de um dos candidatos nas primárias republicanas). Nem todos os americanos, claro, pensam assim, mas o simples facto de haver quem, em cargos políticos significativos, mesmo se sob o espectro ainda do 11 de Setembro, o faça, tem necessariamente de ser preocupante (Palin, lembre-se, gozou com Obama por este defender que os suspeitos de terrorismo deviam ser informados dos seus direitos).
A um dado momento no Munique de Spielberg, Golda Meir avisa: “Todas as civilizações sentem a necessidade de negociar compromissos com os seus próprios valores”: será isto um truísmo, sob a égide do medo e da socbrevivência? Somos capazes do acto paradoxal de hipotecar os nossos valores para os salvaguardarmos? A pergunta ganha particular pertinência agora que recordámos o início da II Guerra Mundial, no passado dia um, pois que foi com o seu fim que a Europa, esventrada, optou pela paz, antes improvável, hoje necessária, nem que seja como hipérbole da segurança, o valor, não declarado, mais importante para a maioria das pessoas. Tornámo-nos demasiado morais ou, simplesmente, demasiado cínicos, para que possamos crer na guerra como solução. Veja-se: sabemos, por exemplo, que parte fundamental do nosso futuro se joga no Afeganistão. A consciência dessa verdade geopolítica, porém, em nada altera o nosso sentimento: os ingleses continuam a exigir, de forma peremptória, o rápido regresso das suas tropas. Obama, pelo contrário, envia mais soldados.
A questão tremenda a que temos de responder é: não assenta a possibilidade do nosso pacifismo europeu no belicismo americano? Não haverá uma profunda hipocrisia subjacente a todo o orgulho com que nos arvoramos em guarda avançada da civilização & democracia? A II Guerra Mundial, que evocamos e cuja importância e justeza, penso, ninguém questiona, consistiu, no fim de contas, também numa espécie de pornografia moral, em que os Aliados, para esmagarem um totalitarismo juntaram-se a outro, em que, para triunfar, tiveram de – por relutantemente que o tenham feito – servir-se das mesmas técnicas de intimidação e terror que aqueles que combatiam usavam: pense-se nas duas bombas atómicas ou na destruição de Dresden, talvez só semelhante à de Cartago. Falta uma interrogação sincera pela força das nossas convicções – e até mesmo pela sua possibilidade.

27 July 2008

A Palavra & O Poder / O Poder das Palavras

Logo na primeiríssima crónica deste ano escrevi que as eleições americanas seriam o acontecimento mais importante de dois mil e oito. As políticas dos EUA atingem-nos a todos (o Iraque tem alguma responsabilidade no preço do petróleo que nos inflaciona a gasolina). Contudo, mantive-me calado sobre o assunto. Eis, porém, que agora Obama veio à Europa. Esteve na semana passada em Berlim, onde foi recebido por mais de duzentas mil pessoas. Muitos lhe louvaram o discurso; outros, contudo, repetem que são apenas palavras bonitas.
Quando se fala de Obama, o seu exímio manejo da palavra é apresentado como fraqueza. O discurso político actual, de facto, fundamenta-se não tanto na palavra, mas muito mais no número. A estatística foi a ciência que triunfou e essa matemática corrompida despejou as palavras do seu significado, só pelo pecado delas não serem números também. No império da imagem, a própria palavra foi reduzida a esse estatuto superficial. A política, em última análise, destruiu a língua, de tanto ter escavado às palavras o seu significado real, para, vazias, as usar a seu capricho e sem que implicassem um compromisso. Por isso, ninguém acredita no que dizem os políticos, porque não há nada ali para acreditar: as palavras estão ocas.
O milagre de Obama foi ter reinventado a língua, como se cada palavra nascesse quando ele a pronuncia. Em Obama, as palavras são o que são, com todo o seu peso. O homem moderno esqueceu-se que o poder da palavra é infindo: Deus criou o mundo falando. Obama voltou a ancorar a palavra na realidade, devolvendo-lhe a sua essência, o seu significado. Daí o sucesso da sua campanha: já não nos recordávamos do que era a verdade a palpitar debaixo da pele das palavras. “Palavras, palavras, palavras”, assim resmungam os detractores de Obama. Este é um mundo mais pobre, este a que chegámos, este, dos ateus da palavra. Percebe-se. Vai-se a uma livraria e os romances, na sua maioria, não dizem nada, são fracos, mas volumosos, todavia. A palavra enquanto processo de enunciação e revelação da verdade oculta das coisas e da vida tornou-se uma arte pouco praticada. Políticos prometem o que nunca quiseram cumprir.
E eis que chega alguém que nos recorda a função primordial do verbo e nos convence do poder verdadeiro das palavras verdadeiras de mudarem o mundo. Change: mudança – é essa a palavra em que Obama permanentemente insiste. Quando se repete muitas vezes uma mesma palavra, duas coisas podem acontecer: ela fica descalça de todo e qualquer significado que possa ter, como sucedeu na política moderna, ou concretiza-se, porque a palavra é mágica (é nisso que acreditam as crianças, como dizia possivelmente Proust). Só quem odeia a poesia pode não gostar dos discursos de Obama e, rancoroso, criticá-los pela sua força. Obama recolocou a palavra, inteira e concreta, no centro da política, onde ela antes era só uma muleta.
“We are a people of improbable hope”, “Somos o povo de uma esperança improvável”, confessou o candidato democrata, em Berlim, na semana passada, naquele que nem foi um dos seus discursos mais brilhantes, mas onde, porém, pululavam pequenas pérolas como esta. Tudo é improvável na campanha deste homem: até a sua vitória está longe de ser certa. É improvável também que Obama consiga levar a bom porto todas as suas propostas ou que cumpra com sucesso tudo quando promete: quando, porém, fala, o que diz, di-lo convicto e sem disfarces. Quando Obama diz emprego diz emprego e não diz votos. E isto é uma revolução. Qualquer que seja o resultado das eleições em Novembro, Obama conseguiu já o que eu teria considerado impossível para os homens de hoje: restaurar a fé perdida nas palavras. Obrigado.

22 December 2006

Fotografia


As crianças vão, levadas num jipe quasi-militar, cinzento. O rapaz, mudo, com a sombra que lhe lança o chapéu de palha maior que a cabeça, esconde os olhos, fixo no que deixa enquanto o veículo arranca. O nariz é a parte mais visível e distinta, estreita, sulcando o rosto. Do lado esquerdo, a rapariga, com a sua toca vetusta, curiosa criminologista, concentrava-se na cena, incompreendendo. E, ao centro, escondida dentro, a garota, assustada, comprimida, com os dedos de fora segurando ferozmente a janela traseira do transporte, observando, receando e receosa, de olhos muito azuis. Há um certo verde de campo como pano de fundo baço.

É a fotografia – que ilustra a notícia.

As crianças fazem parte da comunidade amish, onde a semana passada um homem, aparentemente comum, assassinou meticulosamente várias alunas que tomara como reféns na escola local. O massacre foi o terceiro em menos de uma semana nos EUA, estes ainda precedidos do mediático tiroteio numa escola no Canadá. Há um qualquer absurdo em todos estes cenários. Há um mal, puro e inteiro. Podemos invocar causas psiquiátricas que justifiquem este acto que firmemente pretendemos rotular de irracional. Porém, quanto mais remetemos a explicação destes comportamentos para a área da loucura, menos nos consciencializamos da horrorosa verdade da sua lucidez. Todos estes ataques não resultaram de um delírio momentâneo do criminoso, mas de profunda preparação e cuidado.

O ser humano lida mal com a sua faceta obscura, crendo-se civilizado e racional. Veja-se o caso de Hitler, sistematicamente achincalhado com problemas psicológicos na busca das pessoas de uma explicação para a ditadura: o ditador era, na verdade, bastante normal – e parte do «pecado» do excelente filme A Queda foi tê-lo retratado assim. O Mal é, verdadeiramente, uma escolha, feita com a mesma dose de consciência com que, alternativamente, uma pessoa pode alinhar por um comportamento dito concordante com as normas sociais. A bondade, a correcção, não são essências, fixas; mas estados. Entrar numa escola a disparar é algo que pode acontecer a qualquer um de nós, sem qualquer razão justificativa (até porque não a pode haver). Em comentários ao seu cru Elephant, uma reconstituição parcial do massacre de Columbine, o realizador Gus Van Sant, que nunca, ao longo da película, indica uma causa concreta para o que aconteceu, explicou que a primeira cena, em que se filmam, longamente, nuvens, era uma forma metafórica de levantar a hipótese de o móbil dos assassinos não ser outro que o tempo nublado. De facto, tudo serve de justificação – porque a não há, senão o capricho.

Repito, porque é essencial a compreensão desta verdade: não estamos perante psicopatas. Um jogo gratuito na net permite ao utilizador tomar o lugar dos assassinos de Columbine e reproduzir a matança. Este RPG teve 40.000 downloads: vamos acreditar que todos os utilizadores que o descarregaram sofrem de terríveis e ominosos distúrbios psicológicos? Contudo, não caiamos na falácia de julgar então estes jogos como os responsáveis pelos instintos violentos dos jovens: eles vêm-lhes responder, o que é diferente. A forma fácil como se desliza para o «lado negro da força», para usar a gíria da Guerra das Estrelas, é ilustrado brilhantemente em obras como o aterrador O Deus das Moscas, do nobel Golding.

Aceitar, parafraseando Hannah Arendt, a banalidade do mal é custoso – e mais fácil de não ser feito. Filosoficamente errado, o povo associa ao normal o correcto – e o que difere olha de soslaio e condena. Mas não há qualquer relação de causalidade, menos ainda de sinonímia, entre os dois conceitos. O Mal pode ser banal – mas não menos absurdo, não menos horroso, não menos destruidor – e, ai!, há esse lado que não escolhe: o lado da vítima inocente. «...as crianças, Senhor,/Porque lhes dais tanta dor?!...» Deixai o jipe levá-las, deixai...e elas não vejam o horror!

O Cedro (Ardendo)


A actual situação do Líbano sitiado sentou-se connosco às refeições. As televisões passam os desenvolvimentos da crise do Médio Oriente, intermitente entre uma novidade desportiva e uma politiquice nacional. Entre os que vêem, há os que ignoram – como ignoramos todos já, pacificamente, os mortos iraquianos; há os que lucidamente compreendem as implicações do conflito – como a subida dos preços do petróleo; e os que, como eu, olham ineditamente, preocupados pela presença de um amigo no epicentro do combate.

O frustrante na guerra que neste momento sacode o Líbano é o estado de inocência e impotência do país em causa, massacrado numa guerra que não é a dele. Num blogue libanês chamava-se a atenção para as declarações de Bush «De forma a poder lidar com esta crise, o mundo tem de lidar com o Hezbollah, com a Síria e continuar a trabalhar para isolar o Irão.» O autor do blogue interrogava-se, chocado, onde, neste discurso, aparece a palavra Líbano. Semelhantemente, deparando-me com um artigo de Pacheco Pereira, notei que, em três quartos de uma página A3, só uma vez o Líbano é referido, sem ser sequer, na alusão, o objecto da mesma. A pergunta que emerge é, de facto, porquê o Líbano.

Ninguém concebe que um país, que tão recentemente passou por uma revolução política – a Revolução dos Cedros – possa ter um governo suficientemente forte para expulsar uma organização essencialmente terrorista do Sul do seu território – sobre os problemas enfrentados por estes novos governos, basta olhar a crise que a Revolução Laranja atravessa na Ucrânia. É utópico responsabilizar o governo do Líbano pelas acções do Hezbollah – porém, é isso que Israel já afirmou procurar.

No jogo da política de que todos, meros cidadãos, somos somente peões, o Líbano aqui é só um bode expiatório, o palco de embate de potências alheias. Quem está por detrás do Hezbollah é a Síria. A prova de que é este, verdadeiramente, o país que deveria ser responsabilizado é a confissão de Bush, na cimeira dos G8, julgando os micros desligados: «O que eles precisam é de fazer com que a Síria convença o Hezbollah a parar de fazer esta merda, e acabou». A Síria, não o Líbano. Julgava os israelitas mais cultos que Bush em Geografia.

Pode-se argumentar que é no Líbano que está alojado o Hezbollah. Porém, o país que Israel, em sua defesa, possivelmente deveria legitimamente bombardear seria a Síria (ou o Irão – o único que, verdadeiramente, está a ganhar com tudo isto, com as atenções a serem desviadas do seu programa nuclear). É certo que os campos de treino do Hezbollah estão no Líbano – mas tal não justifica a necessidade de destruir um país fénix que, pela abundância de guerras que o trespassam, continuamente se vê forçado a reconstruir-se. De facto, de que servem campos sem dinheiro (Síria)? De que servem campos sem instrutores (Irão)? A acção mais espectacular do Hezbollah até agora, segundo Israel, deve-se à presença de Guardas da Revolução iranianos no terreno.

Uma sondagem estranhamente equilibrada no site da Al-Jazira procurava determinar o responsável pela crise – só um país aparecia absolvido, com 0% dos votos: o Líbano. Não que uma guerra contra a Síria ou o Irão deixasse de ser preocupante. Uma guerra é sempre um acto lamentável: pode ou não ser reprovável – e, tendo em conta o alvo e o género de ataques, esta é, indubitavelmente, uma das que encaixa na segunda categoria.

22 February 2006

Munique-Teerão

Amanhã estreia Munique, o novo filme de Spielberg, sobre a retaliação israelita após o sequestro, por palestinianos, da sua comitiva olímpica em Munique, em 1972. O espectro da vingança perpetrada por democracias ocidentais é tanto mais válido como tema de discussão se atentarmos nas recentes declarações de Chirac, defendendo o uso de armas nucleares para "a segurança dos nossos abastecimentos estratégicos" e como meio de dissuasão para “os dirigentes de Estados que utilizem meios terroristas, assim como aqueles que tencionem usar armas de destruição maciça”.

Se a proposta francesa força as fronteiras da razão, entrando no delírio, levanta, contudo, a mesma questão da fita de Spielberg: haverá um dever do bem de aniquilar, violentamente se preciso, o mal? Maniqueísta, a pergunta é dúbia, pois implica sempre uma definição de herói e de vilão. E se para o Ocidente o inimigo é o fanatismo muçulmano, para este, o Grande Satã é América e Israel. Elucidativas a este propósito são as afirmações de Ahmadinejad, presidente do Irão, que considera o Estado judaico “tumor maligno a riscar do mapa”, congratula-se pelo coma de Sharon, apelida de “mito” o Holocausto e sugere a transferência de Israel para a Europa.

Estas opiniões ganham tanta mais relevância quando o programa de enriquecimento de urânio foi, aquando da eleição de Ahmadinejad, retomado. A actual crise iraniana começa a atingir cumes insuportáveis, com o claro desprezo a que o Irão votou a Agência Internacional de Energia Atómica e a própria ONU. O acesso à energia nuclear por um tal fanático não é, por certo, para fins pacíficos, antes com o intuito de agressão ao Ocidente.

O Irão terá de/será atacado. Segundo país no «Eixo do Mal» de Bush, o ataque ao Irão é uma possibilidade remota neste momento, não obstante a necessidade que se lhe possa reconhecer. Só há três forças que poderiam comandar uma ofensiva e nenhuma agirá tão rapidamente. Israel encontra-se num clima de incerteza que não se dissolverá senão em finais de Março, quando for eleito um novo governo. Os EUA estão imobilizados: as suas tropas estão demasiado dispersas e as campanhas de recruta angariam cada vez menos jovens. Só com o abandono total do Afeganistão e do Iraque é que uma tal acção militar poderia começar a ser ponderada. Em termos de opinião pública, a América sofre do problema de Pedro e o Lobo: tendo mentido aquando do Iraque, agora, ainda que as razões sejam justas e acertadas, ninguém acreditará. A Europa, essa, nunca avançará sem os EUA, se bem que se coligará efectivamente – não como aquando do Iraque – com eles.

Porém, uma tal intervenção bélica poderia não redundar nos efeitos desejados. Os regimes islâmicos radicalizaram-se, tanto em Agosto com a eleição de Ahmadinejad, como na semana passada com a vitória expressiva do Hamas na Palestina. A violência no Iraque persiste – o plano para o Médio Oriente parece estar redondamente a falhar. Um ataque-relâmpago, o suficiente para resolver a crise a curto prazo, obrigaria a um segundo ataque dos EUA, posteriormente, tal como aconteceu após a incompleta primeira guerra do Golfo. Porém, um mero ataque aéreo às fábricas atómicas poderia desencadear uma resposta violenta, como o confirmou um Guarda da Revolução: “Se formos alvo de um ataque militar, usaremos a nossa muito eficiente defesa de mísseis”. O Irão poderia avançar com uma invasão do Iraque, gozando do apoio da maioria xiita iraquiana – ou, pior, atirar-se a Israel. Eis a nova Guerra Fria: passada nos desertos, quente como eles. ■ o corvo

Publicado a 1 de Fevereiro de 2006

21 July 2005

A Terra, os americanos, nós e eu

O encontro dos G8, que vai ter lugar em Gleneagles, Escócia, aproxima-se. O Reino Unido já estabeleceu quais as prioridades desta cimeira a que preside. Por um lado, o combate à pobreza, que continua a matar 30.000 crianças diariamente, números que justificam acções como o Live8 – oito concertos simultâneos em cidades como Berlim, Londres ou Filadélfia no dia 2 de Julho; palcos onde actuarão artistas de renome pretendendo convocar o maior número de espectadores para assim pressionar os G8 a tomarem medidas drásticas de apoio a África. O segundo grande tema que Tony Blair pretende tratar nesta cimeira é o clima, cujas dramáticas alterações já foram classificadas por ele de “provavelmente, o desafio mais importante que enfrentamos enquanto comunidade global a longo prazo.” Cerca de metade da poluição mundial é produzida por estes países, nomeadamente a América que mantém uma atitude céptica irracional. Esta descrença americana obrigou a que no projecto de declaração final da reunião dos G8, datado de 14 de Junho – como o Público indicava na semana anterior – frases como “o nosso mundo está a aquecer” e “sabemos que o aumento é devido em grande parte à actividade humana” se encontrem entre parêntesis, traduzindo uma discordância dentre os G8.

Mais revoltante ainda é a recente notícia do New York Times de que os relatórios científicos sobre esta temática foram consecutivamente manipulados por um funcionário da Casa Branca que antigamente liderava a luta das empresas petrolíferas contra os limites de emissão de gases. Outros funcionários da Casa Branca prontificaram-se a justificar tal actuação, chegando a afirmar que as alterações feitas aos relatórios científicos eram uma parte natural da revisão efectuada a todos os documentos de igual assunto. Não é descabido lembrar ainda a proibição da administração Bush, aquando da estreia do filme O Dia Depois de Amanhã, de que os cientistas da NASA se pronunciassem sobre a película, que era uma crítica à política anti-ambientalista da sua presidência e que versava sobre os cataclismos que o aquecimento global pode provocar.

Entretanto, enquanto a política de silêncio e inoperância prossegue pomposa, o mundo definha a passos largos. No início deste ano foi divulgado, por parte do Grupo de Trabalho Internacional sobre Mudança do Clima, um relatório onde se afirma que a humanidade tem aproximadamente dez anos para poder reduzir muito substancialmente as emissões de gases poluentes, caso contrário, o risco para ecossistemas e sociedades aumentará significativamente, envolvendo as consequências perdas agrícolas severas e forte escassez de água. O mundo dispõe duma década até atingir o chamado ponto de não retorno. Os estudos científicos mais apocalípticos indicam 2050 como a data em que a vida terrena se terá tornado insustentável.

Também Portugal não está isento. A seca actualmente vivida que tem levado a racionamentos de água como aquele que agora parece também vir a ser aplicado no nosso concelho são consequências directas da instabilidade climática. Um relatório da Agência Europeia para o Ambiente veio revelar, este mês, que fomos o quarto país europeu com concentrações de ozono mais elevadas no Verão de 2004.

Existe um site que propõe que todos saltemos ao mesmo tempo para desviar o planeta do seu eixo, o que supostamente pararia o aquecimento, através do aumento dos dias e da homogeneização do clima. Se nada for feito pelos G8, mais me vale inscrever nessa patética, mas desesperada acção: saltar para salvar o planeta... o corvo

17 June 2005

Ai, que saudades do Faroeste!

Muitos de nós ainda terão presentes na cabeça as imagens do magnífico e chocante documentário Bowling For Columbine, de Michael Moore em que o lobby americano das armas era denunciado em toda a sua crueza, mas sempre num invólucro de corrosivo humor como só este realizador nos sabe oferecer. Muitos contestaram a película, argumentando ser ela parcial e deturpada. Não escrevo para a justificar, mas dos dados que se seguem, cada um tire conclusões.

No dia 11 de Maio do presente ano, a Secretária de Estado norte-americana, Condoleezza Rice, afirmou que a segunda emenda à Constituição (que garante o direito das pessoas guardarem e transportarem armas) é tão importante como a primeira (que salvaguarda a liberdade religiosa, de expressão e de reunião). Rice declarou ainda que “devemos ser muito cuidadosos quando começamos a reduzir direitos que os nossos Pais Fundadores consideravam muito importantes”, criticando, assim, subtilmente as organizações contra a tão fácil obtenção de armas na América.

Na Florida, foi aprovada já em Maio uma nova lei que legalizou ainda mais o uso de força mortal, ao permitir que, inclusivamente em locais públicos, desde que o cidadão se sinta ameaçado, dispare contra o possível atacante. Antes tal direito estava apenas reservado à propriedade fechada (casa e carro, por exemplo) e em espaços públicos o cidadão tinha o dever de primeiramente tentar fugir daquele que o ameaçava. Com a nova lei, esse dever foi abolido e, portanto, à mínima suspeita, somos livres de usar força mortal. Ao assinar a lei, o irmão de George Bush, governador da Florida, declarou, naquele jeito que já vem sendo típico dos Bush, «É do senso comum permitir às pessoas defenderem-se.»

Este recente diploma vem recolocar na ordem do dia aquela que é, a meu ver, uma das maiores discussões com que as nossas sociedades modernas se debatem. Cada vez mais a segurança se torna uma prioridade dos governos e, sob a sua bandeira, numa bandeja entregam os cidadãos a sua liberdade. Ironicamente, quanto maior a obsessão pela segurança física, tanto maior é a insegurança psicológica. Entra-se numa insana paranóia do medo. A nossa liberdade é tanto mais ameaçada se pensarmos no controlo exercido por toda a estrutura da sociedade moderna, que nos obriga a deixar rastos indeléveis das nossas actividades, permitindo a reconstituição delas. Após o 11/9, os serviços secretos americanos chegaram a pesquisar suspeitos baseando-se no registo de livros lidos nas bibliotecas públicas – o medieval Índex regressara. Pela segurança, tudo.

A velha polémica americana das armas é só mais um reflexo desta obsessão pelo inimigo desconhecido que se encarna em cada transeunte com um ar menos simpático. Esta lei, incompreensível para a maioria de nós, distantes da louca realidade dos EUA, resume-se a mais uma manifestação desta deturpada hierarquia de valores, em que a segurança se impõe à liberdade. É necessário realizar, por parte de todas as nações, a escolha entre os dois valores. Eu fiz a minha: a liberdade é o valor mais alto e mais humano que define a pessoa, pelo qual se deve pugnar incessantemente, especialmente num mundo, como o actual, em que ela é tão ameaçada ainda por países que se dizem democráticos, mas continuam a atentar contra ela impiedosamente, só que sob formas mais subtis e delicadas – a perícia da malícia é muita e variada. A cada um de nós cabe a sua escolha e dela deriva a nossa perspectiva sobre o mundo actual. Que ele saiba adequadamente perceber que a segunda emenda não é tão importante como a primeira... o corvo

Publicado a 1 de Junho de 2005