22 December 2006

Fotografia


As crianças vão, levadas num jipe quasi-militar, cinzento. O rapaz, mudo, com a sombra que lhe lança o chapéu de palha maior que a cabeça, esconde os olhos, fixo no que deixa enquanto o veículo arranca. O nariz é a parte mais visível e distinta, estreita, sulcando o rosto. Do lado esquerdo, a rapariga, com a sua toca vetusta, curiosa criminologista, concentrava-se na cena, incompreendendo. E, ao centro, escondida dentro, a garota, assustada, comprimida, com os dedos de fora segurando ferozmente a janela traseira do transporte, observando, receando e receosa, de olhos muito azuis. Há um certo verde de campo como pano de fundo baço.

É a fotografia – que ilustra a notícia.

As crianças fazem parte da comunidade amish, onde a semana passada um homem, aparentemente comum, assassinou meticulosamente várias alunas que tomara como reféns na escola local. O massacre foi o terceiro em menos de uma semana nos EUA, estes ainda precedidos do mediático tiroteio numa escola no Canadá. Há um qualquer absurdo em todos estes cenários. Há um mal, puro e inteiro. Podemos invocar causas psiquiátricas que justifiquem este acto que firmemente pretendemos rotular de irracional. Porém, quanto mais remetemos a explicação destes comportamentos para a área da loucura, menos nos consciencializamos da horrorosa verdade da sua lucidez. Todos estes ataques não resultaram de um delírio momentâneo do criminoso, mas de profunda preparação e cuidado.

O ser humano lida mal com a sua faceta obscura, crendo-se civilizado e racional. Veja-se o caso de Hitler, sistematicamente achincalhado com problemas psicológicos na busca das pessoas de uma explicação para a ditadura: o ditador era, na verdade, bastante normal – e parte do «pecado» do excelente filme A Queda foi tê-lo retratado assim. O Mal é, verdadeiramente, uma escolha, feita com a mesma dose de consciência com que, alternativamente, uma pessoa pode alinhar por um comportamento dito concordante com as normas sociais. A bondade, a correcção, não são essências, fixas; mas estados. Entrar numa escola a disparar é algo que pode acontecer a qualquer um de nós, sem qualquer razão justificativa (até porque não a pode haver). Em comentários ao seu cru Elephant, uma reconstituição parcial do massacre de Columbine, o realizador Gus Van Sant, que nunca, ao longo da película, indica uma causa concreta para o que aconteceu, explicou que a primeira cena, em que se filmam, longamente, nuvens, era uma forma metafórica de levantar a hipótese de o móbil dos assassinos não ser outro que o tempo nublado. De facto, tudo serve de justificação – porque a não há, senão o capricho.

Repito, porque é essencial a compreensão desta verdade: não estamos perante psicopatas. Um jogo gratuito na net permite ao utilizador tomar o lugar dos assassinos de Columbine e reproduzir a matança. Este RPG teve 40.000 downloads: vamos acreditar que todos os utilizadores que o descarregaram sofrem de terríveis e ominosos distúrbios psicológicos? Contudo, não caiamos na falácia de julgar então estes jogos como os responsáveis pelos instintos violentos dos jovens: eles vêm-lhes responder, o que é diferente. A forma fácil como se desliza para o «lado negro da força», para usar a gíria da Guerra das Estrelas, é ilustrado brilhantemente em obras como o aterrador O Deus das Moscas, do nobel Golding.

Aceitar, parafraseando Hannah Arendt, a banalidade do mal é custoso – e mais fácil de não ser feito. Filosoficamente errado, o povo associa ao normal o correcto – e o que difere olha de soslaio e condena. Mas não há qualquer relação de causalidade, menos ainda de sinonímia, entre os dois conceitos. O Mal pode ser banal – mas não menos absurdo, não menos horroso, não menos destruidor – e, ai!, há esse lado que não escolhe: o lado da vítima inocente. «...as crianças, Senhor,/Porque lhes dais tanta dor?!...» Deixai o jipe levá-las, deixai...e elas não vejam o horror!

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