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09 September 2009

Não Há Pobres Em Portugal E Todos Temos Contas Na Suíça

Quando me sento para escrever a crónica, tenho sempre ao meu lado a pilha dos jornais da semana, que vou recuperando, um a um, e desfigurando armado da tesoura, recortando as notícias mais interessantes ou simplesmente caricatas, esperando depois nelas achar a inspiração para o texto. Escrita a crónica, a maioria dos recortes vai para o caixote do lixo, mas salvo sempre uns quantos para memória futura, guardando-os num dossier para o efeito. Todos os anos, chegado o Verão e o tempo livre, aproveito para reorganizar a colecção, eliminando um ou outro artigo cuja relevância que primeiro lhe vi se mostrou afinal efémera (no meu arquivo quero apenas aquilo que importa, até porque a minha mãe não gosta nada de jornais). Quando faço este meu exercício anual, é sempre engraçado verificar como o tempo acabou por desmentir tantos medos (guardo ainda notícias de há vários anos que davam por certo um ataque ao Irão na estação seguinte). Não deixa, porém, de ser assustador ver como há tantas coisas que, na altura, dominavam as conversas, mas, um ano volvido, quando evocadas, não despertam mais que uma memória distante, a custo desenterrada. Há, ainda, uma última vantagem, enquanto jornalista, em manter esta Torre do Tombo privada: tenho sempre perto a memória, para que não esqueça e, fresco do passado, melhor julgue o que se discute no presente.
No final do mês de Julho, Manuela Ferreira Leite afirmou rejeitar a «dicotomia ricos-pobres», confessando mesmo, num tom bem-disposto: «Em relação aos ricos, há apenas um sentimento que tenho e que é: tenho pena de não o ser». Face à negação do óbvio (sempre o tipo favorito de coisas para se negar em política) – o profundo fosso entre ricos e pobres no nosso país – pareceu-me que seria educativo recuperar do meu arquivo alguns cabeçalhos e notícias dos últimos dois anos:
Dados divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística em Outubro de 2007 calculavam em dois milhões o número de pobres em Portugal, o que equivale a um terço da população entre os 16 e os 64 anos”. (Maio de 2008, Público).
Em 2007, o rendimento monetário líquido equivalente dos 20 por cento da população com maiores recursos correspondia a 6,1 vezes o rendimento dos 20 por cento da população com mais baixos recursos”. (Julho de 2009, Público).
As disparidades na repartição dos rendimentos em Portugal têm sido ligeiramente atenuadas mas, em 2006, o país ainda tinha a segunda pior classificação da União Europeia, segundo dados do Eurostat”. (Maio de 2008, Público).
Uma em cada cinco crianças portuguesas está exposta ao risco de pobreza, o que faz de Portugal o país da União Europeia, a seguir à Polónia, onde as crianças são mais pobres ou correm maior risco de cair nessa situação”. (Fevereiro de 2008, Diário de Notícias).
A líder do PSD ignora alegremente todos estes factos e louva os ricos e fica contente que dêem festas e que comprem muitas coisas e que tenham iates (é que tudo isto «dá postos de trabalho a dezenas de pessoas», mesmo se o desemprego é de centenas de milhares). Há algo de profundamente perverso nestas afirmações que revelam uma incapacidade de entender o que está de errado com a riqueza nos nossos tempos. É toda a lógica do luxo e do consumismo acéfalo que é simultaneamente imoral e anti-ecológica. Sei o quão estranho é hoje falar em moralidade, pelas conotações religiosas da palavra, num tempo em que até a FIFA quer agora proibir os jogadores de se ajoelharem quando marcam (porque não se pode confundir futebol com religião, dizem, mas o mais certo é ser uma estratégia para esmagar os outros operadores no ramo). Sejamos, pois, modernos e mandemos a moral bugiar e esqueçamos os recursos limitados da Terra e isso. Sabem: a coisa boa de ser corvo é que posso ir a todas as festas dos ricos sem ser convidado (têm sempre as janelas abertas!).

Crónica Económica De Um Ingénuo

Para Garrett, sexta-feira era o dia aziago, em que, n’ As Viagens na Minha Terra, o frade visitava Joaninha e sua avó, no verde vale de Santarém. Para mim, porém, sexta-feira é um dia particularmente caro, e não apenas porque se lhe segue o fim-de-semana. Todas as sextas vou «reunir aos meus amigos», como cantam os Quinta do Bill. Todos do Secundário, que a Universidade separou, fazemos esse esforço de nos vermos semanalmente. As conversas, animadas, oscilam entre os faits divers ou a quase fofoca e assuntos de matéria séria e elevada. No outro dia, por exemplo, falávamos de economia, assunto recorrente quando se junta um curioso ignorante como eu e três raparigas sábias da área.
A lição do dia: como faz uma empresa para não dar tanto dinheiro ao Estado. Dois amigos explicaram-me umas artimanhas simples, completamente dentro da legalidade e, de resto, banais: eu próprio já ouvira falar de coisas semelhantes, simplesmente nunca ninguém, até então, tivera a calma de me explicar com detalhe os trâmites todos da coisa. A lógica era simples: usavam-se os lucros para adquirir bens a bem dizer não essenciais apenas porque o dinheiro, não gasto, seria arrebanhado pelo Estado. Percebi o esquema, mas não deixei, porém, de comentar que era um tanto ao quanto estúpido: consumir sem necessidade parece-me errado, até do ponto de vista ambiental. Para além do mais, não haveria tendencialmente um dever de colaborar com o Estado e, como tal, de contribuir para o erário público? E é apenas justo que os que mais lucram, mais contribuam.
Os meus amigos até concordaram com algumas das objecções, mas, como Guterres, encolheram os ombros e exclamaram ser a vida: o sistema funcionava assim, e com «funcionava» queriam dizer não só que eram essas as regras mas que elas eram, de facto, eficazes. Quanto eu sugeria, eles, condescendentes, com a paciência com que se está com uma criança, mostravam-me ser impraticável – e eu não podia senão concordar com eles. Não contente, perguntei-lhes por sistemas alternativos. Olhava com especial esperança o triunvirato feminino (perdoe-se-me o paradoxo). As três Graças, tristes, porém, baixavam os olhos: não havia, em todo o curso de Economia, uma cadeira em que se pensassem modelos novos. Estudava-se o capitalismo – e como isso era já difícil, que a máquina é cheia de regras!
Eu vim para casa todo preocupado com o caso, buscando, na minha ingenuidade, uma qualquer solução para o problema primeiro: é que, caramba carambíssima! (©Eça, Ilustre Casa de Ramires), mau grado todos os problemas que eu via com isso, não era capaz de censurar sem hesitação, como um inquisidor espanhol, quem preferia comprar novo carro para a empresa (com o velho ainda todo novo) só para não ver parte dos lucros de um ano desaparecer sem retorno. Só uma muito boa vontade, que Kant tomava por ser a coisa mais sagrada do mundo, agiria de modo outro. Mas isso, enfim, moral que fosse, era prejudicial ao sistema: pois não assenta todo o capitalismo no consumismo como o comunismo na privação?
Meditava ainda eu nisto quando se soube que Ronaldo tinha sido vendido, como se faz às coisas, por noventa e quatro milhões. Alimentava-se meia África com aquilo, mas que importa: os adeptos, esquecidos disso, vão na mesma ver os jogos e comprar camisas com Ronaldo estampado aos chineses. De nada valeu a crise e todos os G20 e novas regras: a especulação continua. Tudo teve que mudar, para que tudo ficasse na mesma, como se ensina n’ O Leopardo, de Lampedusa. Mas não sejamos severos no nossos juízo: afinal, talvez Florentino Pérez, comprando Ronaldo, não tenha senão querido não pagar muitos impostos ao Estado.

29 October 2008

A Doutrina Vencida dos Vencedores

Sei que fiz voto de silêncio, mas também se pode sair da cartuxa (especialmente quando se tem asas para voar). Pedi ao Einstein uma explicação para o longo tempo entre as crónicas e o linguarudo (foi ele que desenhou o logotipo dos Rolling Stones) explicou-me que o espaço e o tempo eram um contínuo siamês: eu longe, as crónicas tinham que levar um mês.

*
No outro dia o capitalismo esteve aí a estrebuchar. Não fiquei com pena nenhuma do capitalismo (para que quereria eu uma pena feia, a estragar a minha plumagem?). Subitamente, começou-se a falar na necessidade de “moralidade” (assim mesmo: foi esta a palavra usada) no mercado. Depois do “socialismo de rosto humano”, o “capitalismo de rosto humano”, ironizava com humor e verdade um blogger (não recordo quem: li tantos – que me perdoe!). Quanta inocência cabe entre uma gravata e um colarinho!
O capitalismo é, em si mesmo, um sistema absolutamente imoral. Que, regra geral, os partidos de raízes mais ou menos cristãs sejam advogados da liberdade dos mercados – a Juventude Popular, não esqueçamos, propôs, no ano passado, a abolição do salário mínimo, com o argumento de que este era um entrave a essa mesma liberdade do mercado – é um daqueles mistérios políticos absolutos e patetas, tão inexplicáveis como, para a ciência, o facto de o pato ser o único animal que não produz eco. O sistema capitalista, na forma em que o conhecemos desde a II Guerra Mundial, baseia-se essencialmente numa lógica de consumo assente na associação falaciosa entre ter e ser. A primeira geração pós-guerra, cobaias da nova experiência capitalista, acertadamente entenderam a sua mentira: chamou-se a isso anos 60 e hippies. Mas quando crescemos perdemos os sonhos como os velhos perdem os cabelos – e os revolucionários viraram os mercenários do sistema.
O capitalismo nasce do conceito da posse que é, por natureza, individualista (o verbo possuir só tem as três primeiras pessoas do singular: no plural substitui-se por partilhar). O capitalismo é esse sistema em que a palavra bem só existe no plural, material. Empilhamo-nos de coisas com que nos prometeram a felicidade. O objecto das nossas acções, imperceptivelmente, passou da pessoa para a coisa, para a pessoa acabar em coisa (essa é, ainda, a mais válida definição de capitalismo). Uma doutrina centrada no ter tem de arruinar o ser. Falamos de um sistema que assenta na ganância de multiplicar permanentemente (tal como se procriam mil pipocas de uma mão cheia de grãos de milho) o capital, por imenso que seja. Porque é uma sociedade do ter, é também uma sociedade do entre-ter: desse modo apenas se pode esconder o tédio, o absolutíssimo tédio que brota de uma vida mentirosa. Sendo uma doutrina de vencedores, o capitalismo pressupõe automaticamente vencidos: os marginais, os pobres (um quinto da população portuguesa, creio).
A intuição do erro fundamental que é este sistema primata tem naturalmente suscitado reacções. Ridículo seria agitar de novo bandeiras vermelhas (do sangue) e foices (das vidas ceifadas). Algumas alternativas foram sendo desenvolvidas. O “comércio justo” (popularíssimo aqui na Inglaterra, onde a omnipresença divina compete com a ubiquidade do café fairtrade) será talvez um dos casos mais bem sucedidos, mas também digno de nota é o projecto da economia de comunhão, lançado por Chiara Lubich, fundadora do Movimento dos Focolares, que defende uma repartição dos lucros tripartida, em que uma parte substancial destes é directamente aplicada em favor dos mais pobres (a ideia surgiu numa visita às favelas paulistas). Uma revolução mais profunda, mais íntima, é ainda necessária, contudo: a ganância dos especuladores tem a sua contraparte no consumismo do homem normal. Diz-se que Sócrates, um dia, percorrendo o mercado de Atenas, vendo as bancas, comentava com os discípulos: “Tanta coisa que eu não preciso!”. Os nossos centros comerciais multiplicam-se como cogumelos (e são todos venenosos, estes). Quando conseguiremos de-ter esta obsessão de ter?
imagens:
Into the Wild (2007), de Sean Penn