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14 December 2007

Ensaio Sobre a (Má-)Criação

Coisa estranha, a criação artística: ninguém adivinha os favores com que conquistar a caprichosa inspiração – o seu orgulho não se deixa dobrar com preces. Como em peregrinação ao santuário dela, vagueava, perseguindo-me, em círculos pelo quarto, sem que com isso procurasse aquecer-me contra o novo frio (como Garrett insinua na abertura das Viagens), antes buscando assunto para a crónica, como o movimento procriasse ideias. Hábito caricato. Herdámo-lo, quiçá, dos alunos peripatéticos de Aristóteles, que caminhavam em diálogo com o mestre pelos pórticos jardinados do Liceu. A divagar, dizem, se vai ao longe – literalmente, se os pés acompanharem a cabeça. Nem no espaço, nem na imaginação, porém, eu avançava, enquanto circum-navegava os cantos do meu quarto. Índios americanos, esperamos que a nossa dança circular nos traga a chuva da inspiração. Perante a aparente esterilidade da técnica, recordei em desespero as palavras de um amigo meu, que proclamava ser necessário violar a musa, talvez inspirado por um conto dessa seminal série da banda desenhada que é Sandman.

Não é, vê-se, coisa simples, a criação. Que o diga João Botelho ou Alexandre Valente, os protagonistas do escândalo que rebentou em torno de Corrupção, filme que estreia amanhã no nosso Cine-Teatro. O produtor, Alexandre Valente, descontente com a montagem final de João Botelho, o realizador, arrogou-se o direito de proceder a uma nova montagem, mais curta. Face a isto, o realizador exigiu que o seu nome não fosse creditado. O produtor, esse, alegre, tem vindo defender-se descomplexado para a televisão, sem entender o profundo ridículo de que se vai cobrindo aos olhos da comunidade cinéfila: receio mesmo que não encontre nenhum realizador para um próximo projecto. Alexandre Valente gaba-se de ter tornado o cinema numa mera mercadoria, como a arte fosse plasticina ou uma wikipedia, moldável por quaisquer mãos.

O que, contudo, mais me entristece é o facto de as pessoas pactuarem com esta fraude. É bem possível que o arrogante produtor alcance o seu objectivo: que Corrupção seja o filme português mais visto de sempre. Se, suponhamos, um vendedor de arte modificasse uma tela, de imediato esta ficaria excluída de qualquer leilão. É pois caso para repetir a recente pergunta do realizador Pedro Costa: “Porque não exiges do cinema o mesmo que exiges à pintura ou à arquitectura?”. Ninguém admira um Siza Vieira para relaxar – continuamos, porém, a teimar ver o cinema como mero entretenimento e não como arte. Tenho sempre o hábito de ficar até ao final do genérico do filme na sala de cinema, quando já as luzes se acenderam e as senhoras da limpeza arrumam as pipocas mortas no chão: de alguma forma sinto que, permanecendo ali, olhando o desfile dos nomes de quantos participaram na construção da obra, lhes presto homenagem. Ai!, tempo triste, este, em que as pessoas, bem pelo contrário, indiferentes a isso, acorrem até às salas para ver um filme sem assinatura.

A prepotente atitude de Alexandre Valente é um gesto óbvio de má-criação, no duplo sentido da palavra: por um lado, manifesta um desrespeito enorme pelo realizador e pela Arte; por outro, porque é, muito literalmente, uma má criação, um péssimo produto, que alicerça o seu sucesso na polémica em torno do livro que lhe deu origem e nas cenas de sexo, essenciais hoje a qualquer filme português que procure o sucesso comercial: nisto descamba o capitalismo artístico. Nisto e na justa greve que os argumentistas americanos iniciaram na semana passada contra os grandes estúdios e cadeias de televisão e que põe em risco, por exemplo, séries tão bem-amadas como Lost ou 24. Entre outras coisas, exigem os argumentistas – e bem – que as empresas partilhem com eles os lucros resultantes das vendas de DVDs.

Com filmes como Corrupção, para quando a greve dos espectadores?

03 April 2006

Regresso À Cidade...

1. O governo anunciou, pela secretária de Estado dos Transportes, no início do mês que se esquece, que tenciona expandir a rede do sebastianista – porque se espera e não vem – Metro Mondego através da criação de um eixo Norte-Sul que una Mealhada a Condeixa, com um possível alargamento até à Figueira da Foz. O sistema do tram – como se designa este tipo particular de carruagem que pode servir-se quer das tradicionais linhas de comboio quer das linhas próprias de metro, saltando entre os dois sistemas sem entraves – ligaria, deste modo, uma vastíssima área do centro litoral, da qual a Mealhada seria a fronteira. Porém, o Presidente da nossa Câmara apressou-se a esclarecer, ao Público, que «Estamos em condições de dispensar o metro»; mais, «Ainda seríamos mais mal servidos pelo eléctrico».

Estamos «razoavelmente servido[s]» pela CP e pelos autocarros, mas porque não superar a mediocridade de um “razoavelmente”? Encontramo-nos perante uma oportunidade única de reforçar a nossa união á área metropolitana de Coimbra – da qual, de resto, já fazemos parte. A possibilidade de, apanhando o metro na Mealhada e, sem o abandonar, circular por toda a Coimbra, e, em dia de Verão, estender a viagem até à Figueira, é cenário quase futurista não fosse a iminência da sua muito plausível concretização nos tempos próximos. A sua construção não invalida a do troço da EN1/IC2, entre Sargento-Mor e a Anadia, essa prioridade pela qual o Presidente não troca o tram. A recusa do metro não pode servir como pressão para tal variante – que jeito estranho de negociar politicamente! Estaremos tram-ados?

2. Baixo agora a pena crítica e descanso a postura de corvo irritante que bica os transeuntes para me sentar num ramo da árvore e, arrisco!, cantar até (efeitos, talvez, da Primavera). Guardo o dedo indicador e, mãos abertas, ovaciono. Como noticiado no número anterior do jornal, esteve entre nós Mário Augusto em mais “Um Café Com...”. Pude participar na conversa com o entrevistador e isso recordou-me a significância cultural do Cine-Teatro Messias no panorama cultural do concelho.

A temática de todo o serão – o cinema – ainda mais fortemente me fez meditar no papel do espaço onde me encontrava. Senti que fazia um regresso a casa. Há uns cinco anos atrás, pouco ou nenhum seria o meu interesse em participar em tal sessão: ia duas vezes ao cinema, quando estava de férias, emigrado na praia – e todo o mais ano era um deserto. Foi, em 2001, a recuperação do Cine-Teatro, que me fez mergulhar, irrecuperavelmente, nesse mundo. A proximidade inédita aos bens culturais que gerou, permitiu uma mudança qualificativa dos meus gostos – e dos de tantos outros mealhadenses.

E, porque o Cine-Teatro fez-se por justaposição, no seu segundo termo revela, explícita, a sua segunda força. Com um recinto à altura, a Mealhada começou a acolher grandes representações teatrais e criou as bases para o posterior desenvolvimento de grupos teatrais, como a Oficina de Teatro do Cértoma. A título de exemplo, só este mês de Março que se fina, o Messias assistiu a um monólogo de Sofia Alves e ao clássico Felizmente Há Luar! – que, nem a propósito, eu comecei, nessa semana, a estudar a Português.

E porque um palco não serve apenas à dramaturgia, como esquecer os concertos que já proximamente preenchem de novo a nossa sala de espectáculos? E quantas pequenas – mas nem por isso menos belas ou significativas – exposições não cruzaram já aquele recinto? Indubitavelmente, a recuperação do edifício e da área envolvente foi a maior benesse com que a população da cidade se viu agraciada nos últimos anos (e o tram pode vir a ser a próxima...) – que ela saiba continuar a fazer justo e saudável uso dela.

Publicado a 29 de Março de 2006

21 July 2005

Realidade e Ficção

O terror repetiu-se há quase uma semana atrás, com os (in)esperados atentados em Londres, mais uma vez com o cunho do islamismo radical. Apesar da contagem dos cadáveres continuar é, por certo, a acção menos mortífera da Al-Quaeda em capitais ocidentais. Tal facto não reduz a sua barbaridade. Foi cuidadosamente escolhida para desviar as atenções da imprensa da cimeira dos G8 – a primeira desde há alguns anos em que o terrorismo não ia dominar a agenda, ocupando-se com questões mais humanitárias e prementes.

Importante para a compreensão do fenómeno foi o rapto e morte, na semana passada, do embaixador egípcio no Iraque. Mais do que questões religiosas, são divergências culturais que animam este combate entre fanáticos e Ocidente. Este assassinato é uma tentativa de deter os outros países árabes que estão a reconhecer o governo democrático iraquiano. Pode ver-se falhas nesse regime, mas, como dizia Churchill «A democracia é a pior forma de governo com excepção de todas as outras que já foram experimentadas.»

No dia seguinte, já os londrinos regressavam às suas rotinas normais, como uma sondagem de Domingo dum canal televisivo britânico confirmava. Contudo, por muito imune que se declare, uma cidade atingida sofre. Os recentes atentados ressentem-se. Tal fenómeno é particularmente visível na América, depois do 11 de Setembro, por exemplo, no cinema. Este sábado foi anunciada a primeira longa-metragem, pela mão de Oliver Stone, sobre o atentado a Nova Iorque.

Veja-se “A Guerra dos Mundos”, que se estreou esta semana em Portugal. Spielberg já o admitiu: este é um filme pós-11 de Setembro, onde mais do que no cataclismo, a câmara se centra na devastação e no sentimento de desorientação dos personagens. Não se podem deixar de estabelecer outros paralelos: os terroristas estão sediados há muito nos países em que perpetuam os atentados, tal como os extraterrestres do filme, cujo lema de campanha é «Eles já estão aqui».

O primeiro filme de Shyamalan após o 9/11, o magnífico “A Vila”, aborda igualmente a ameaça invisível – as criaturas imaginárias que viviam no bosque em torno à aldeia – numa genial parábola sobre a cultura do medo que se vive actualmente em terras americanas. Regressando aos filmes em cartaz, é de notar o clímax de “Batman Begins”: o Homem-morcego tem de deter um comboio suspenso que colidirá com a torre Wayne. Estranhamente familiar, se tomarmos o comboio aéreo como a metáfora dum avião e alterarmos o nome da torre em questão.

É interessante constatar que as adaptações de bandas-desenhadas para o grande ecrã aumentaram exponencialmente após o 9/11. Apesar de outros motivos ligados mais à indústria cinematográfica, a meu ver, tal deve-se igualmente à necessidade de a América procurar um herói e de as pessoas se sentirem seguras porque alguém as protege.

Mas a ficção e a realidade vão mais longe a 4 de Novembro, com a estreia mundial de “V for Vendetta” (também adaptado da BD), que retrata as explosões levadas a cabo por um rebelde que por meio delas pretende opor-se ao governo fascista que domina a Inglaterra totalitarista num futuro imaginário em que os alemães venceram a Segunda Guerra Mundial. Há quem sussurre que o filme deveria ser adiado devido aos recentes acontecimentos, mas nada poderá adiar as questões inquietantes que ele promete levantar sobre a fronteira e a relação entre conceitos como liberdade, segurança, governo, revolução e terrorismo. o corvo

26 February 2005

O Quinto Império do Cinema Português

Alguns dir-me-ão ignorante e um filho da massa. Mas a minha opinião é descendência somente de mim próprio. O que aqui venho anunciar é a decadência do cinema português. O cinema português está morto. E o pior é que na sua urna cerrada vê a casca de noz que era o universo onde Hamlet era rei! E assim cego vai...

Há poucas semanas estreou nas salas portuguesas o mais recente filme de Manoel de Oliveira: ‘O Quinto Império – Ontem como Hoje’. E, de facto, eu anseio pelo Quinto Império do cinema nacional, essa utopia tão bela!, porque ontem, como hoje, a sétima arte lusa morre, morre lenta, e não virá mais numa manhã de nevoeiro, que as bilheteiras só abrem à tarde. A fita mais vista no ano passado (‘Shrek II’) teve o quádruplo dos espectadores de todas as películas lusitanas juntas. E, curioso!, anexo ao artigo onde o soube, expressava-se o espanto de incompreensão desta situação, não percebendo ninguém ao certo o sucedido.

Ai, é este argueiro na vista que nos tolda! E com uma trave assim cravada no olho, dificilmente a câmara sonha com beleza na sua imagem, que nunca se viu míopes fazendo fitas, só neste país onde tudo ocorre e decadente o cinema morre. O cinema português está invadido por um complexo de inferioridade, por uma arreigada convicção da existência duma sétima arte própria e lusitana, mas a tal ponto o filmado é típico português que as salas se enchem na sua contemplação. Ah, ironia, quão doce és! E ah, cegueira, quão oportuna!

E falam que é arte o que o ecrã grande revela a meia dúzia de loucos que se aventuram no deserto de Alcácer-Quibir da cinematografia lusa, e afirmam que é genialidade. Não, não é arte nem génio, é mau jeito. Há quem, como a revista francesa Cahiers du Cinéma, exalte João César Monteiro (o homem por detrás da absolutamente negra ‘Branca de Neve’) e Manoel de Oliveira. Mas hei de dar crédito a uma revista elitista, desfasada, que manifesta uma falta absoluta de respeito pelo leitor/espectador? Insultando o público só resta mesmo elogiar o realizador; se não, quem compraria tal publicação?

Não, não é arte nem génio, é mau jeito e é mau gosto. Os filmes portugueses pecam em cada cena que a bobina descobre e ao espectador expõe. Primeiro, em Portugal não há uma classe de actores, mas há muitos actores sem classe. É frustrante saltar de película em película e achar sempre os mesmos actores, eternamente, como se cá dispuséssemos somente desses poucos que se repetem em cada monótono filme português. Segundo, as partes técnicas da fita são descuradas duma forma repugnante. Raras, raríssimas!, são as bandas sonoras; o tratamento de som é nulo; o de imagem, menor; e os argumentos, frequentemente, são inócuos e enfastiadiços.

O cinema português é claustrofóbico. Porém, eficaz é o seu acérrimo esforço para exorcizar os espectadores. A cinematografia portuguesa carece terrivelmente dum sentido de marketing. Eu não posso honrar um morto cuja existência (falarei melhor se escrever não-existência?) desconheço. O nosso cinema é um fantasma que, infelizmente, não assombra nada, muito menos o escuro das salas de cinema– essas são para ele casas abandonadas. «Existir é ser percebido.», dizia Berkeley, e o cinema português não existe porque não é percebido, notado.

Mais grave, porém, é quando isso tenta. Os produtores portugueses não têm noções cinematográficas. E, assim, se parte numa loucura sebástica para a feitura dum trailer. Para o homem de cinema português, um trailer é uma cena tediosa do filme passada a eito. Para além do mais, os filmes circulam nos círculos restritos de Porto e Lisboa, mas como podemos ansiar que eles mais se espalhem pelo país se não são vistos? Este é o nosso ciclo vicioso...

Anseio pelo dia em que alguém tiver a coragem de fazer um filme dito americano (esse conceito vago que define para o invejoso cinema nosso tudo o que tem sucesso) em Portugal. Dito curto, um Filme (escrito com letra capital). Nesse dia os corvos– minha raça!– poderão rejubilar-se com os cadáveres de fitas passadas enfim enterradas (que elas agora ainda se contorcem em convalescença funérea). Nesse dia, terá nascido o Cinema Português: é a aurora do Quinto Império, e o Ontem não será como Hoje. o corvo

Publicado a 16 de Fevereiro de 2005