Coisa estranha, a criação artística: ninguém adivinha os favores com que conquistar a caprichosa inspiração – o seu orgulho não se deixa dobrar com preces. Como em peregrinação ao santuário dela, vagueava, perseguindo-me, em círculos pelo quarto, sem que com isso procurasse aquecer-me contra o novo frio (como Garrett insinua na abertura das Viagens), antes buscando assunto para a crónica, como o movimento procriasse ideias. Hábito caricato. Herdámo-lo, quiçá, dos alunos peripatéticos de Aristóteles, que caminhavam em diálogo com o mestre pelos pórticos jardinados do Liceu. A divagar, dizem, se vai ao longe – literalmente, se os pés acompanharem a cabeça. Nem no espaço, nem na imaginação, porém, eu avançava, enquanto circum-navegava os cantos do meu quarto. Índios americanos, esperamos que a nossa dança circular nos traga a chuva da inspiração. Perante a aparente esterilidade da técnica, recordei em desespero as palavras de um amigo meu, que proclamava ser necessário violar a musa, talvez inspirado por um conto dessa seminal série da banda desenhada que é Sandman.
Não é, vê-se, coisa simples, a criação. Que o diga João Botelho ou Alexandre Valente, os protagonistas do escândalo que rebentou em torno de Corrupção, filme que estreia amanhã no nosso Cine-Teatro. O produtor, Alexandre Valente, descontente com a montagem final de João Botelho, o realizador, arrogou-se o direito de proceder a uma nova montagem, mais curta. Face a isto, o realizador exigiu que o seu nome não fosse creditado. O produtor, esse, alegre, tem vindo defender-se descomplexado para a televisão, sem entender o profundo ridículo de que se vai cobrindo aos olhos da comunidade cinéfila: receio mesmo que não encontre nenhum realizador para um próximo projecto. Alexandre Valente gaba-se de ter tornado o cinema numa mera mercadoria, como a arte fosse plasticina ou uma wikipedia, moldável por quaisquer mãos.
O que, contudo, mais me entristece é o facto de as pessoas pactuarem com esta fraude. É bem possível que o arrogante produtor alcance o seu objectivo: que Corrupção seja o filme português mais visto de sempre. Se, suponhamos, um vendedor de arte modificasse uma tela, de imediato esta ficaria excluída de qualquer leilão. É pois caso para repetir a recente pergunta do realizador Pedro Costa: “Porque não exiges do cinema o mesmo que exiges à pintura ou à arquitectura?”. Ninguém admira um Siza Vieira para relaxar – continuamos, porém, a teimar ver o cinema como mero entretenimento e não como arte. Tenho sempre o hábito de ficar até ao final do genérico do filme na sala de cinema, quando já as luzes se acenderam e as senhoras da limpeza arrumam as pipocas mortas no chão: de alguma forma sinto que, permanecendo ali, olhando o desfile dos nomes de quantos participaram na construção da obra, lhes presto homenagem. Ai!, tempo triste, este, em que as pessoas, bem pelo contrário, indiferentes a isso, acorrem até às salas para ver um filme sem assinatura.
A prepotente atitude de Alexandre Valente é um gesto óbvio de má-criação, no duplo sentido da palavra: por um lado, manifesta um desrespeito enorme pelo realizador e pela Arte; por outro, porque é, muito literalmente, uma má criação, um péssimo produto, que alicerça o seu sucesso na polémica em torno do livro que lhe deu origem e nas cenas de sexo, essenciais hoje a qualquer filme português que procure o sucesso comercial: nisto descamba o capitalismo artístico. Nisto e na justa greve que os argumentistas americanos iniciaram na semana passada contra os grandes estúdios e cadeias de televisão e que põe em risco, por exemplo, séries tão bem-amadas como Lost ou 24. Entre outras coisas, exigem os argumentistas – e bem – que as empresas partilhem com eles os lucros resultantes das vendas de DVDs.
Com filmes como Corrupção, para quando a greve dos espectadores?
0 comments:
Post a Comment