28 October 2007

O Deserto do Real

Há, no Matrix, essa obra magna da ficção científica, uma cena, ainda no princípio, em que o protagonista abre um livro do filósofo francês Baudrillard, Simulacros e Simulação, em cujo interior guardava alguns materiais informáticos. Porque, como os fãs aprenderam, tudo no filme dos irmãos Wachowski tem um significado, também eu, movido pela curiosidade, procurei saber mais sobre a obra do pensador francês. Esta inicia-se com uma reflexão baseada num conto de Jorge Luis Borges, titã da escrita, que, por sua vez, se inspirou em Lewis Carroll. O argentino imagina um mapa tão perfeito que corresponderia, ponto por ponto, ao próprio território que cartografava. Baudrillard usa a estória como uma metáfora: para o francês, o mapa triunfou sobre a realidade, e hoje a nossa vida desenrola-se no mapa, e não já no mundo real que ele encobre – desse apenas subsistem restos dispersos.

O real tornou-se, a bem dizer, irrelevante. Temos aqui um dos mais crus diagnósticos da nossa sociedade pós-moderna, onde tudo parece; nada, porém, é. Numa sociedade destas, a Estatística adquire particular destaque. Ela é, por excelência, a ciência da imagem, projecção do real que se quer fazer passar por ele. Neste mundo-mapa, em que o real foi soterrado sob o peso das suas variadas representações, transforma-se o retrato na cousa retratada (parafraseando Camões). Como Borges, também o génio de Poe intuiu a verdade do nosso tempo em O Retrato Oval. Nesse conto do mestre do gótico, certo pintor vai desenhando, em toda a graça e detalhe, a sua amada, sem se aperceber, contudo, que, lentamente, a vida dela é transferida para a tela. Quando o artista, por fim, contempla a sua obra, perfeita, olha a mulher – ela estava morta. É este, hoje, o estado das relações entre a realidade e o mundo fictício em que nos movemos.

Vem esta reflexão a propósito do novo Estatuto do Aluno, aprovado, faz hoje uma semana, pela Comissão Parlamentar de Educação, apenas com os votos favoráveis do obediente PS (Partido Sócrates). O diploma, que tem como principais objectivos, supostamente, combater o abandono e insucesso escolares, prevê que, para os alunos que excedam o número de faltas, os professores façam uma “prova de recuperação”. O PS defende a medida com o seu desejo de “uma escola pública inclusiva” que não exclua “por conta, apenas, de um determinado número de faltas”. Este novo Estatuto, na realidade, iliba os absentistas, concedendo-lhes uma possibilidade de recuperação à qual, em virtude do seu ostensivo desleixo, não deveriam ter direito. Torna-se possível a um aluno, teoricamente, faltar o ano inteiro e, ainda assim, passar de ano, bastando para tal ter um resultado positivo na dita “prova de recuperação”. Claro que as reprovações, graças a esta artimanha, vão diminuir: bem sublinhou Vasco Pulido Valente no Público que estas provas “pelo nome já indicam a sua natureza e o seu fim”.

Na prática, portanto, estatisticamente, se estas medidas entrarem em vigor, haverá uma redução assinalável no insucesso escolar. Deste modo, uma vez mais a imagem usurpará o lugar do real – e o mapa triunfará, de novo. É irrelevante que todos esses alunos que vão ser salvos graças às ditas “provas de recuperação” transitem sem quaisquer conhecimentos que lhes permitam enfrentar o ano escolar seguinte. O que interessa é a estatística, o retrato: e esse é positivo – mesmo que artificial. O mais grave, porém, é que, depois, serão sobre estas estatísticas – tão distantes da realidade quanto os funcionários da 5 de Outubro estão do quotidiano escolar – que novas medidas serão tomadas (ou não). O real, sublinhamos, ficou para trás há muito tempo: tudo são construções de imagens sobre imagens. É sobre uma ficção que trabalhamos, numa ficção nos movemos e existimos: eis a hipoteca da realidade. Como diz Morpheus, personagem do Matrix, citando Baudrillard: “Bem-vindos ao deserto do real”.

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