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17 June 2005

Ai, que saudades do Faroeste!

Muitos de nós ainda terão presentes na cabeça as imagens do magnífico e chocante documentário Bowling For Columbine, de Michael Moore em que o lobby americano das armas era denunciado em toda a sua crueza, mas sempre num invólucro de corrosivo humor como só este realizador nos sabe oferecer. Muitos contestaram a película, argumentando ser ela parcial e deturpada. Não escrevo para a justificar, mas dos dados que se seguem, cada um tire conclusões.

No dia 11 de Maio do presente ano, a Secretária de Estado norte-americana, Condoleezza Rice, afirmou que a segunda emenda à Constituição (que garante o direito das pessoas guardarem e transportarem armas) é tão importante como a primeira (que salvaguarda a liberdade religiosa, de expressão e de reunião). Rice declarou ainda que “devemos ser muito cuidadosos quando começamos a reduzir direitos que os nossos Pais Fundadores consideravam muito importantes”, criticando, assim, subtilmente as organizações contra a tão fácil obtenção de armas na América.

Na Florida, foi aprovada já em Maio uma nova lei que legalizou ainda mais o uso de força mortal, ao permitir que, inclusivamente em locais públicos, desde que o cidadão se sinta ameaçado, dispare contra o possível atacante. Antes tal direito estava apenas reservado à propriedade fechada (casa e carro, por exemplo) e em espaços públicos o cidadão tinha o dever de primeiramente tentar fugir daquele que o ameaçava. Com a nova lei, esse dever foi abolido e, portanto, à mínima suspeita, somos livres de usar força mortal. Ao assinar a lei, o irmão de George Bush, governador da Florida, declarou, naquele jeito que já vem sendo típico dos Bush, «É do senso comum permitir às pessoas defenderem-se.»

Este recente diploma vem recolocar na ordem do dia aquela que é, a meu ver, uma das maiores discussões com que as nossas sociedades modernas se debatem. Cada vez mais a segurança se torna uma prioridade dos governos e, sob a sua bandeira, numa bandeja entregam os cidadãos a sua liberdade. Ironicamente, quanto maior a obsessão pela segurança física, tanto maior é a insegurança psicológica. Entra-se numa insana paranóia do medo. A nossa liberdade é tanto mais ameaçada se pensarmos no controlo exercido por toda a estrutura da sociedade moderna, que nos obriga a deixar rastos indeléveis das nossas actividades, permitindo a reconstituição delas. Após o 11/9, os serviços secretos americanos chegaram a pesquisar suspeitos baseando-se no registo de livros lidos nas bibliotecas públicas – o medieval Índex regressara. Pela segurança, tudo.

A velha polémica americana das armas é só mais um reflexo desta obsessão pelo inimigo desconhecido que se encarna em cada transeunte com um ar menos simpático. Esta lei, incompreensível para a maioria de nós, distantes da louca realidade dos EUA, resume-se a mais uma manifestação desta deturpada hierarquia de valores, em que a segurança se impõe à liberdade. É necessário realizar, por parte de todas as nações, a escolha entre os dois valores. Eu fiz a minha: a liberdade é o valor mais alto e mais humano que define a pessoa, pelo qual se deve pugnar incessantemente, especialmente num mundo, como o actual, em que ela é tão ameaçada ainda por países que se dizem democráticos, mas continuam a atentar contra ela impiedosamente, só que sob formas mais subtis e delicadas – a perícia da malícia é muita e variada. A cada um de nós cabe a sua escolha e dela deriva a nossa perspectiva sobre o mundo actual. Que ele saiba adequadamente perceber que a segunda emenda não é tão importante como a primeira... o corvo

Publicado a 1 de Junho de 2005