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09 September 2009

O Modo Do Medo

Começou, portanto, a corrida para as Europeias. Por serem as primeiras eleições em que iria votar, como um édipo, ceguei-me voluntariamente, esqueci o passado todo, como uma alma platónica que tropeçasse do céu das Ideias e, incarnada, não lembrasse nada do outro mundo: decidi-me a, com a ingenuidade possível, julgar com imparcialidade os vários partidos pelas suas propostas, ignorando tudo o mais que soubesse deles e, sobretudo, a sua actuação política nacional. Quando os candidatos dos cinco principais partidos acorreram ao Prós & Contras, fiquei, mau grado a minha falta de tempo, a ver – só para rapidamente, findo o primeiro intervalo, me ir embora.
Esperara ouvir as opiniões dos vários cabeças-de-lista dos partidos sobre o Tratado de Lisboa, a possível entrada da Turquia na UE, o problema da imigração ilegal ou as questões mais prementes de política externa. Sobre isto, porém, nada se falou (só da recondução de Durão Barroso). Vai-se de resto aos sites dos partidos principais e não se acha sobre isto um programa, um manifesto, uma declaração de ideias, propostas, uma visão sobre a Europa, em suma. As Europeias estão a mostrar-se, uma vez mais, um mau ensaio para as Legislativas.
Para o confirmar, basta ver como Vital Moreira, já por várias vezes, pediu uma maioria para Sócrates, assegurando que, caso o eleitorado não lha conceda, compromete seriamente a estabilidade do país. O candidato do PS já afirmou mesmo que, caso Sócrates não reuna a maioria dos votos, é possível que apresente a sua demissão. Eis, pois, o PS insistindo na estratégia que lhe é própria, a do medo, a qual tem consistentemente definido a sua legislatura pelo menos desde o caso Charrua, provando-o como inimigo da liberdade, que comparece no 25 de Abril, todavia, que é uma festa bonita que se faz todos os anos a celebrar uma coisa que aconteceu e dizem todos ao mesmo tempo não estar cumprida, sem que ninguém note o paradoxo parvo (mas celebre-se, que o povo gosta é de festa, nem que a ocasião seja a inauguração da Praça Salazar a 25 de Abril – oxímoro!: o importante é haver os foguetes e a comida – nisso somos como os hobbits, gente pequena para um país pequeno).
Exemplo recente: a Ordem dos Notários pediu aos seus membros que recolhessem todas as escrituras em que Sócrates interveio para as disponibilizar a uma jornalista que as havia solicitado. Este trata-se, diga-se, de um serviço normal prestado pela Ordem a qualquer cidadão. O governo, porém, veio já considerar tudo isto “muito grave”, algo que “põe em causa os direitos fundamentais” e “não é admissível num Estado de direito” – apenas, claro, porque o primeiro-ministro é visado. Sócrates, aparentemente, é, para o PS, como um corpo de grande massa no universo einsteiniano: junto a ele, o tecido do espaço-tempo – as regras da «festa da democracia» – curva-se particularmente, deforma-se. Assim só se entendem os apelos de Vital Moreira. É que já aconteceu partidos ganharem as eleições sem, contudo, terem maioria absoluta: o governo eleito não deixou de governar. Sócrates, porém, enquanto the special one, por quem toda a ordem das coisas se altera, necessita mesmo da maioria.
Entendo que o PS comece a insistir nesta mensagem. A forma calorosa como Vital Moreira foi recebido pelos populares no 1 de Maio revela obscenamente a um primeiro-ministro na terra das fadas como o seu país maravilha ferve de indignação. O desemprego, que teve agora a maior subida das últimas três décadas, alastra como a gripe suína. A crise, agravando-se, é, de facto, a única coisa que poderá evitar a vitória de Sócrates. E Sócrates tem um medo genuíno disso. Eis, pois, aqui, a farsa a descoberto: aqueles que usam a arma do medo são, precisamente, aqueles que mais medo têm.

Sobre Fobias (Da Tecnologia & Da Democracia)

A Assembleia da República fez-se nova. Não mudaram, (par)lamentavelmente, os inquilinos, mas tão somente a sala das sessões, que foi submetida a uma extensa remodelação com vista à sua modernização: cada deputado, por exemplo, dispõe agora de um computador individual (um Magalhães?) e pode, doravante, fazer uso de materiais audiovisuais nas suas intervenções, graças ao novíssimo sistema de projecção digital. Trata-se de um Parlamento para o século XXI, como o definiu a secretária-geral da Assembleia.
O choque tecnológico chegava enfim à política. Os Verdes já se haviam anunciado prontos a dar pleno uso ao novo equipamento a partir do próximo 25 de Abril. Os deputados, porém, assustaram-se e correram para a mamã, a tratarem de se precaver do choque com airbags vários. Sossegou a mãe toda a gente: devido a “problemas deontológicos”, porque a AR “não é um estúdio de televisão”, as geringonças informáticas serão introduzidas com “pequenos passos”, explicou Jaime Gama, presidente da Assembleia. A projecção de sons, vídeos, imagens e fotografias foi adiada sine die, e a medida, na falta de bom senso, recolheu consenso.
Gastou-se, portanto, cerca de quatro milhões e meio de euros do dinheiro dos contribuintes na remodelação da AR para os deputados terem um moderníssimo sistema de projecção digital que não utilizam, como uma daquelas bugigangas africanas que se compram nos mercados de artesanato, que servem para não servir para nada, com efeito estético apenas. Se essa era a intenção do Parlamento, teria ganho mais em adquirir, pelo mesmo preço, um qualquer quadro menor de Picasso e um bom Gauguin.
Justificam os deputados a sua precaução no usarem as inovações digitais com o facto de não serem conhecidas experiências análogas no estrangeiro. Entendamo-nos, pois: Portugal tem uma vez num século a oportunidade de estar à frente dos demais países – e recusa-se! Se algo não foi primeiro feito lá fora, nós, portanto, não o sabemos fazer, devemos concluir. Se calhar tinham razão aqueles que entendiam haver raças inferiores: a portuguesa!, ou assim pensam os nossos deputados (talvez baseados no juízo que fazem de si próprios).
A mesa da AR está já a trabalhar num esboço de regras para a utilização do sistema de projecção – e neste assunto urgentíssimo se entretêm os nossos representantes. Eis um dilema: ou os deputados são naturalmente sensatos no uso de materiais audiovisuais, e, assim sendo, o conjunto de regras para a sua utilização em que agora se trabalha é desnecessário de todo (mas faz-se, todavia!); ou, pelo contrário, os deputados precisam efectivamente dele, revelando-se como um bando de miúdos entusiasmados por um brinquedo de novo: a quantidade de legislação é inversamente proporcional ao bom senso daqueles que ela governa.
E interrogava-me eu sobre o porquê de tudo isto, do absurdo, quando, relendo a notícia no jornal, vejo que, juntamente com vídeos, sons e afins, foram também expressamente proibidas as “campanhas negativas”. Eis, enfim, o estranho caso explicado, a causa verdadeira de toda a cautela: certamente esta será apenas mais uma das medidas para que o PS se possa proteger das infames campanhas negras que estão a ser movidas contra o seu líder. Segue a AR o mesmo caminho que a câmara da Guarda, que apelou agora para o Tribunal Constitucional para evitar o acesso dos jornalistas à documentação nos seus arquivos referente a Sócrates. Também a Entidade Reguladora para a Comunicação Social afia os dentes contra a TVI, permanecendo calada face à RTP, concubina da agenda política do poder.
Modernizar o Parlamento, quando metade dos deputados são robôs das suas bancadas (tecnologia de pontíssima)? Modernize-se antes a nossa democracia: reganhemos-lhe liberdade.

14 February 2008

E Pur Si Muove!

No meu último ano do secundário, a Filosofia, a propósito dos Princípios da Filosofia de Descartes, que então estudávamos para o exame de final de ano, vi Galileo, adaptação cinematográfica da peça homónima de Brecht. O filme, preservado numa velha e corrompida cassete do professor, que o gravara quando fora exibido, gordos anos antes, no quarto canal, figura na lista das mais insossas películas que a minha cinefilia aturou (confesso-vos: aquele coro de garotos que, volta e meia, irrompe filme adentro, ainda hoje me atormenta os sonhos). Quando era miúdo, ria-me com o nome trava-línguas do “velho pisano”, como lhe chamou António Gedeão. O tempo cresceu, e eu com ele, e fui aprendendo a coragem de Galileu e amando o homem, tanto mais que, em pequeno, desejava ser, como ele, astrónomo, na impossibilidade de ser astronauta. O bom cientista, cego pelo Sol, morreu no século XVII.

E pur si muove! E, porém, move-se! Quando se imaginava o processo que a Inquisição lhe moveu já definitivamente enterrado – tão enterrado quanto o próprio Galileu –, eis que um grupo de professores da mais conceituada universidade italiana, La Sapienza, em Roma, resolveu ressuscitar a polémica, enviando uma carta ao reitor da instituição onde se declaravam contra o convite que este havia dirigido a Bento XVI para discursar na inauguração do ano lectivo. Os signatários justificavam a sua posição relembrando a laicidade da universidade, acusando o Papa de se ter pronunciado a favor do julgamento de Galileu num discurso em 1990.

O caso Sapienza permite duas linhas de reflexão: uma, mais geral, sobre a liberdade de expressão; outra, mais particular, sobre o regurgitado confronto entre ciência e fé. A liberdade de opinião está hoje – já o crocitámos repetidas vezes neste espaço – bastante ameaçada. Quem tenha dispensado alguns minutos a ler o discurso de 1990 de Bento XVI terá verificado que o Papa não defende o julgamento de Galileu, antes cita, em contexto próprio, um filósofo que o faz. Porém, ainda que o Bispo de Roma fosse, de facto, favorável à condenação de Galileu (não é), deveria ser livre de exprimir essa sua opinião. A liberdade de expressão comporta também a liberdade de ser idiota. Urge combater o império do politicamente correcto: relembre-se, no ano passado, o caso de James Watson, enxovalhado pela comunidade científica por ter avançado a hipótese de que raça e inteligência podem estar relacionadas. A ideia parece-nos absurda, mas isso não pode justificar a activação imediata de um sistema de censura pública: algumas instituições chegaram, imagine-se!, a retirar a Watson galardões com que o haviam premiado.

Por outro lado, no caso Sapienza, houve uma nítida tentativa de recuperar a antinomia ciência/fé. Nos EUA, este conflito está na ordem do dia, por um lado, devido ao 11 de Setembro, cujas motivações religiosas obrigaram muitos a repensar a natureza das religiões, por outro, por causa da cada vez maior expressão do fundamentalismo cristão americano, trazido para a ribalta com a questão do ensino do criacionismo nas escolas e com a reeleição de Bush. As religiões deparam-se hoje em dia com um grave cenário. Ameaça-as o indiferentismo, fenómeno muito próprio desta chamada pós-modernidade. Esta atitude leva parte dos crentes, como resposta, a procurar exprimir mais radicalmente a sua opção de vida, fermentando os fundamentalismos. Estes, por sua vez, originam nalguns ateus e agnósticos um forte sentimento de indignação, que os convence a extremar as suas posições, assumindo uma postura de crítica aberta ao fenómeno religioso. Indiferentismo, fundamentalismo e ateísmo radical (o «laicismo» dos professores da Sapienza): neste triângulo das Bermudas, a religião vai desaparecendo.

Desaparece – e pur si muove! É que, no fim de contas, a ciência não substitui a religião (Comte tentou fazer isso, e criou essa doutrina abjecta que foi o positivismo: obviamente, nunca tinha lido Fausto, para perceber que a ciência não pode satisfazer o homem). A história, porém, trata sempre de repor a justiça das coisas, com a sua ironia amarga: a Sapienza, riamo-nos!, foi fundada por um papa, Bonifácio VIII. Lá se vai o «laicismo»!

28 October 2007

Sobre O Uso de Máscaras

No dia sete de Outubro, tendo-se deslocado a Montemor-o-Velho para assistir ao lançamento de um qualquer projecto, o primeiro-ministro foi recebido por alguns manifestantes. Nitidamente arreliado, acusou o PCP de ser o responsável pelos protestos: “Onde quer que eu vá [os comunistas] fazem manifestações, utilizando os seus dirigentes sindicais. A polícia, com a alegação de a manifestação não se encontrar autorizada, procedeu à identificação de alguns sindicalistas, isolou o grupo com fitas e apreendeu uma faixa. A “festa da democracia” – expressão cunhada por Sócrates – parece já não ser, afinal, assim tão engraçada. O fascinante neste episódio é o desmascaramento de Sócrates, mesmo se este se disse não ofendido. Subitamente, revela-se a sua incapacidade de lidar com as críticas de que é alvo, bem como o seu profundo orgulho, exposto a nu o artificialismo da sua persona pública e o seu sorriso falso.

Procurando evitar desagrado igual quando o primeiro-ministro, dois dias depois, fosse à Covilhã, alguém, vigilante (e anónimo), mandou, na manhã seguinte, dois polícias visitarem a sede do Sindicato dos Professores da Região Centro, donde levaram algum material de divulgação da acção de protesto prevista e autorizada para o dia seguinte. A governadora civil de Castelo Branco veio logo esclarecer que esta se trata de “uma actividade rotineira da PSP”. Julgava eu – erradamente, vejo – que a função normal das forças da autoridade era não tanto controlar o exercício da liberdade, mas antes garantir a segurança dos cidadãos. Oficialmente, essa foi, de facto, a justificação: a diligência foi destinada a averiguar situações com “significado para a segurança” do primeiro-ministro, e o próprio Corpo de Segurança Pessoal deste foi contactado. Calculo que pouco importará o facto de a manifestação nem sequer ter sido convocada pelo sindicato dos professores mas sim pela União dos Sindicatos de Castelo Branco.

Em parte, estes ataques aos sindicatos de professores já tinham sido anunciados pelo primeiro-ministro, a 5 de Outubro, quando sublinhou que “o governo não ataca os professores”, afirmando ser necessário não confundir “professores com sindicatos”. Daqui se subentende que quem é então atacado são os sindicatos. Aparentemente, o problema é estes confundirem “o direito à manifestação com o insulto”, como acusou Sócrates em Montemor. O Ministro da Administração Interna, Rui Pereira, veio já esclarecer que “é preciso ter cuidado com o tipo de palavras que se colocam nas faixas”, porque “não se pode insultar as pessoas”. Toda esta insistência no insulto recorda-me demasiado o caso Charrua: lembram-se?

Questionado sobre o caso Covilhã, o secretário de Estado adjunto da Administração Interna afirmou que “se começamos a sustentar que na aplicação da lei, em relação a quaisquer manifestações ou expressões críticas ou de aplauso, há uma margem para se extravasar a lei [...] abre-se a porta para situações que podem ser melindrosas e depois exigirão medidas de correcção de intensidade maior”. Assusta-me imaginar o que possam ser estas “medidas”. Por sua vez, interrogado sobre o sucedido na Covilhã, Sócrates aconselhou a “esperar pelos resultados” do inquérito. A espera foi curta: menos de uma semana depois, o caso foi convenientemente arquivado sem resposta e sem vergonha. Tudo indica que a acção dos polícias não foi ilegal. Não sei como reagir: se fique descansado, por tudo ser conforme a lei; se fique inquieto, por a “lei” o permitir.

Recordo aqui uma estória grega, para explicar a origem do género cómico, segundo a qual certos camponeses atenienses, cansados da exploração de que eram alvo por parte dos habitantes da cidade, se dirigiram a Atenas e, aí, insultaram abertamente aqueles que os oprimiam. Contudo, temendo retaliações futuras, prudentes!, mascararam-se, para não serem identificados. Talvez seja tempo de os manifestantes portugueses, como os gregos, começarem, neste jogo de máscaras e hipocrisias, também eles, para sua segurança, a mascararem-se...

25 August 2007

A Sociedade Aberta e Seus Inimigos - Parte III

Concluímos nesta crónica a enumeração das figuras que representam, pelas suas acções, uma ameaça para a sociedade aberta. Os seus dois detractores que aqui apresentamos têm em comum a tentativa – inédita entre os demais que aqui temos vindo a indicar, cujos poderes, escassos, tanto não permitiam – de controlar/silenciar os media, o dito “quarto poder”.

4) Rui Rio, Presidente da Câmara do Porto. Reconhecemos ser estranho, num jornal local, criticar a actuação do presidente de uma câmara que nem pertence ao nosso distrito. Perdoe-nos o leitor esta pequena heresia, mas sentimos que, na lista que temos vindo a fabricar, a omissão de Rui Rio descredibilizá-la-ia, porquanto isso equivaleria a encobrir alguém que, pelo seu comportamento, provou já repetidamente não aceitar com especial agrado o exercício da liberdade. Alguns, dotados de memória – um bem cada vez mais raro e subestimado hoje –, lembrar-se-ão de quando o presidente da câmara do Porto atribuiu subsídios aos agentes culturais da cidade mediante a condição expressa de estes não criticarem o executivo camarário: ei-la!, a lealdade, de novo, tão querida aos inimigos da sociedade aberta! Também antigo é o diferendo mantido com o Jornal de Notícias e o Público: contra-ataca o primeiro no site oficial da câmara e o segundo nos “direitos de resposta” que, ao abrigo da lei, faz publicar; ambos em termos tão aguerridos que devem, ao observador atento, causar desconfiança. Esta não disfarçada “oposição à oposição” ganhou atenção mediática, porém, quando, no dia seguinte ao da manifestação “silenciosa” frente ao Rivoli, o site da câmara publicou um texto, onde noticiava, em tom nitidamente crítico, a participação de David Pontes, director adjunto do JN, no dito cujo protesto. O facto de um munícipe, no exercício legal dos seus direitos de cidadania, ser denunciado no site camarário – uma aberração numa sociedade aberta – parece, contudo, inteiramente justificável a Rui Rio, porque «pode ajudar a explicar muita coisa». Certamente que sim: explica toda a razão que o JN tem nas críticas que tece a este executivo. Porém, mais revoltante é que, sem consentimento do próprio, David Pontes foi filmado a participar na “manif” e o vídeo foi colocado online, a acompanhar a notícia que registava o caso no site. Este gesto representa um atropelo inominável de um dos mais básicos direitos do sujeito: o direito à imagem. Há algo de Big Brother na atitude. Note-se, por fim, que, apesar de o site da câmara criticar o director adjunto do JN pela participação na manifestação, não se faz qualquer referência à realização desse mesmo protesto, que contou com mais de mil pessoas. Confusos? Nós, pela nossa parte, estamos bastante elucidados.

5) José Sócrates, Primeiro-ministro. Sócrates figura nesta lista por demérito próprio e não apenas pela complacência para com os “erros” dos seus ministros que demonstrou no último sábado no Parlamento: o debate foi profundamente revelador ao não revelar nada. O engenheiro sem Ordem pôs ainda em tribunal, recentemente, o autor do blogue Do Portugal Profundo, aparentemente por difamação e denúncia caluniosa. O assunto da licenciatura de Sócrates, continuando nebuloso, mostrou, porém, um primeiro-ministro que, na ânsia de afastar de si as suspeitas, acabou por se contradizer (logo quando mandou retirar, do site do Governo, o título de engenheiro) e contradizer também documentos que depois vieram a público, falhando em esclarecer o caso completamente. Porém, eis agora António Caldeira, que sempre deu a cara – ao contrário de tantos outros –, processado, por ter, com a questão da licenciatura, destruído, definitivamente, o estado de graça do primeiro-ministro. Que Sócrates procura refrear os media vê-se, por exemplo, no novo Estatuto dos Jornalistas. Nesta «festa da democracia», espero eu, agora, não levar também com um processo em cima! ■ o corvo

10 July 2007

A Sociedade Aberta e Seus Inimigos - Parte II

Continuamos a listagem não exaustiva já iniciada na crónica anterior das figuras mais proeminentes que, de alguma forma, ameaçam a sociedade aberta e livre como a conhecemos.

3) António Fernando Correia de Campos, Ministro da Saúde. O afastamento da ex-directora do Centro de Saúde de Vieira do Minho, Maria Cardoso, é mais uma manifestação da acentuada sensibilidade do actual executivo. De acordo com o despacho da exoneração, Maria Cardoso foi demitida “por não ter tomado medidas relativas à afixação [...] de um cartaz que utilizava declarações do Ministro da Saúde em termos jocosos, procurando atingi-lo”. Não se acrescenta, contudo, que, por sua vez, essas “declarações do Ministro da Saúde” ofendiam os profissionais daquele serviço. O cartaz em questão reproduzia uma entrevista concedida por Correia de Campos ao Jornal de Notícias, a 6 de Agosto de 2006, onde este declarava: “Nunca vou ao SAP, nem nunca irei! [...] Porque não têm condições de qualidade. Têm um médico e um enfermeiro e conferem uma falsa sensação de segurança.”. As bases devem respeitar as chefias; estas, porém, podem livremente desdenhar do trabalho dos seus dependentes.

A lealdade – conceito importante em que os adversários da sociedade aberta baseiam as suas invectivas – funciona num só sentido. Não se espante, considerando os traços que vimos serem próprios dos inimigos da liberdade, que Maria Cardoso tenha sido acusada pelo ministro precisamente de “deslealdade”, por não ter prontamente mandado retirar a entrevista. Por outro lado, num exercício de obstinada lealdade, um membro da Juventude Socialista denunciou o caso aos seus superiores, que, depois, fizeram chegar a notícia às cúpulas. É caso para relembrar as palavras avisadas de Jorge Coelho: “Quem se mete com o PS, leva!”.

Outro pormenor que merece destaque é o facto de Maria Celeste ter sido pressionada para abrir um processo disciplinar contra o médico que afixara a entrevista e a rematara com um curto comentário irónico. Porém, ao contrário de Margarida Moreira, da DREN, criticada na crónica anterior, Maria Cardoso, numa atitude louvável, recusou-se a fazê-lo, sendo consequentemente demitida. Se seria ainda possível, por parte dalguns, defender que, efectivamente, não era muito correcto uma entrevista assim estar exposta num centro de saúde, é já, contudo, difícil – a partir do momento em que se percebe que a razão da demissão foi a recusa de Maria Cardoso em instaurar um processo contra o médico – não suspeitar que estamos perante um exercício de violência política.



Em defesa do ministro, a Secretária de Estado da Saúde, Carmen Pignatelli – que aqui inscrevemos no rol dos inimigos da sociedade aberta – considerou que a liberdade de expressão deve ser exercida nos “locais apropriados”, a saber, “nas nossas casas, na esquina do café (?), e com os nossos amigos”. Note-se a incorrecção das palavras, porquanto o professor Charrua foi precisamente denunciado por um “amigo”. Muito segura das suas afirmações, sem pudor, exclama: “não tenhamos vergonha de dizer isto”. Não tenhamos nós, de facto, vergonha de dizer isto: a liberdade está a ser, já nem muito veladamente, ameaçada, por comportamentos dos seus opositores como os acima descritos. Ao caso Vieira do Minho, como este já foi apelidado, vem-se juntar o de Fernando Portal, alegadamente afastado, ao fim de dezassete anos, da presidência do hospital de S. João da Madeira por críticas à política de encerramento das urgências do ministério, caso que remonta já a Maio. Pouco a pouco, vai-se revelando a verdadeira natureza deste ministério que de saudável, sinceramente, tem pouco.
o corvo

A Sociedade Aberta e Seus Inimigos - Parte I

O título da nossa crónica remete para o conhecido livro homónimo de Karl Popper, escrito durante a II Guerra Mundial, onde o filósofo procede a uma crítica implacável daqueles que considera serem os ideólogos do totalitarismo e opositores das democracias liberais. Inspirados pelo exemplo, e porque a nossa sociedade livre, filha do 25 de Abril, está hoje sob ataque cerrado, procedemos no seguinte texto a uma identificação dos seus principais inimigos.

1) Margarida Moreira, Directora Regional de Educação do Norte. Nela, traço recorrente dos adversários da sociedade aberta, o ódio à liberdade surge associado à megalomania: José Manuel Fernandes, director do Público, com doce ironia, afirma que a de Margarida Moreira é «proporcional ao seu volume». Assim, a Directora da DREN, como protectora dos oprimidos, na sua importante entrevista ao DN de dia 14, reconhece que quebra o silêncio apenas porque sente ser sua “obrigação” defender a instituição que coordena e os que nela trabalham. O discurso de Margarida Moreira é ainda, como seria expectável, pautado por súbitas, mas coerentes, manifestações de apoio a práticas autoritárias. «Defendo uma liderança forte», confessa. A entrevista tem este duplo mérito de, por um lado, permitir a análise do perfil psicológico do inimigo típico da sociedade aberta, por outro, de fornecer dados relevantes para uma análise mais profunda do “caso Charrua”. Margarida Moreira afirma ter sido avisada do insulto de Charrua, primeiro, por SMS, depois, por meio de uma participação escrita. Quanto mais dados emergem sobre este acto bufão, tanto mais detestável ele se torna a qualquer espírito livre – apenas aos inimigos da sociedade aberta ele não repugna; não transparece, de facto, uma única nota de condenação nas palavras de Margarida Moreira. Pelo contrário, a própria parece sugerir que quem, por exemplo, num contexto desportivo, insulta os árbitros, deve também ele ser punido. Os resultados do processo disciplinar movido contra Fernando Charrua foram entretanto revelados. Este é acusado de «grave desinteresse pelo cumprimento dos deveres gerais de lealdade e correcção». No tempo de Salazar, era também preciso ser-se leal: declarava-se mesmo, por segurança, «activo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas». Sobre este caso, ainda, acrescente-se que é particularmente sintomático que o mesmo insulto (“filho da p...”), quando dirigido ao primeiro-ministro, num ambiente privado, resulte num processo disciplinar; quando dirigido aos jornalistas, frente às televisões, por Alberto João Jardim, seja saudado com a permissividade do costume.

2) Maria de Lurdes Reis Rodrigues, Ministra da Educação. Esta mostrou a sua clara conivência com a actuação de Margarida Moreira ao reconduzi-la no cargo, em despacho também assinado pelo primeiro-ministro, a 5 de Junho. Ao fazê-lo, incorre em todos os crimes de que a outra é acusada no tribunal da liberdade. A Ministra, enquanto superiora política, terá ainda de se justificar pelo estranho afastamento da Associação de Professores de Matemática (APM) da comissão de acompanhamento do Plano da Matemática. Aparentemente, sob pressão repetida de um seu subordinado, Luís Capucha, a APM viu-se forçada a abandonar a já referida comissão em consequência das críticas que teceu publicamente ao funcionamento desta. Note-se que tropeçamos, de novo, no dever de “lealdade” – já invocado no processo de Charrua – que parece proibir críticas aos órgãos para os quais se trabalha ou com os quais se colabora, sob pena de afastamento dos mesmos. É próprio dos inimigos da sociedade aberta, por um lado, refugiarem-se no silêncio, fugindo às críticas, por outro, incentivarem-no, porquanto assim nem críticas há. Assiste-se à apologia do silêncio quando o exercício da liberdade se faz pelo uso da palavra. A prepotência, que isolámos já enquanto traço distintivo do adversário da liberdade, reencontramo-la na Ministra que, muito recentemente, ao ser confrontada com o acórdão do Tribunal Constitucional que declarou inconstitucional a repetição dos exames no ano passado, afirmou que voltaria a tomar a mesma medida. Em suma, inimiga da liberdade – e da razão.
o corvo

Anedota Triste

Há, entre a democracia e a ditadura, um amplo espectro político que aceita desvios a alguns traços-base de cada um desses dois regimes sem que, por isso, um se transforme no outro. Assim, a efémera primavera marcelista, não obstante certas liberdades arriscadas, era, ainda, um autoritarismo. Do mesmo modo, o regime de Putin, na Rússia, permanecendo uma democracia, contempla, porém, com vertigens (que induzem a queda), o precipício da ditadura. Ora, se Moscovo está já no final desse nebuloso espectro que separa os dois regimes, Portugal, longe ainda, inicia-se nessa travessia obscura, timidamente – ou não.

Muitos indícios têm vindo a acumular-se que confirmam esta suspeita, porém, nenhum tão vergonhosamente explícito como a recente suspensão de um funcionário da DREN (Direcção Regional de Educação do Norte): Fernando Charrua, professor de inglês (sinto-me tentado a um “comentário jocoso” envolvendo o termo “inglês” e uma alusão sub-reptícia à licenciatura do primeiro-ministro: o exemplo alheio cala-me as palavras), ex-deputado do PSD. Este, em conversa privada com um colega, terá feito um piada sobre o curso de Sócrates. Um outro funcionário, contudo, tendo ouvido a observação satírica, relatou a anedota à directora do serviço, Margarida Moreira. Esta tomou as medidas “adequadas”. No dia seguinte, chegado ao emprego, o professor tinha o computador bloqueado, o e-mail fora lido e ele estava suspenso.

Há um pormenor, em todo este caso, que me choca quase tanto quanto a suspensão em si de que foi vítima o professor, a saber, o facto de o e-mail de Charrua ter sido devassado. Isto é próprio de regimes totalitários. Quando se atinge estes extremos, é porque eles já não existem – tudo é válido. Declaro aqui, solenemente, que já não confio no Estado. O seu longo nariz (de pinóquio, de tanto mentir) intromete-se em todo o lado. Bem-vindos à “claustrofobia democrática” que Paulo Rangel denunciava no 25 de Abril.

Margarida Moreira justificou a suspensão por “poder haver perturbação do funcionamento do serviço”. Gostava, sinceramente, de perceber esta última afirmação, pois não consigo (e já puxei muito pela cabeça, ao ponto de a ter arrancado) entender como pode uma piada rápida perturbar a DREN. Ai, que maquilhagens da verdade inventam! E, clarifique-se, é aqui irrelevante para o caso se se tratou mesmo de um “comentário jocoso” ou de um insulto: se alguém, de resto, tinha de apresentar queixa, era o visado, o próprio primeiro-ministro.

Este, para “serenizar” os portugueses, veio dizer – cinco dias depois! – que ninguém será sancionado pelo exercício da liberdade de expressão. Comentava Constança Cunha e Sá no Público que um primeiro-ministro ter de vir dizer isto transparece muito do actual clima. A ministra da educação, que recusa ir ao Parlamento, e o seu ministério têm procurado fugir à polémica. Maria Lurdes Rodrigues confessa não ter “nenhum sinal ou motivo para duvidar do [...] correcto funcionamento [...] da DREN e dos seus serviços”. Porém, o ministério está também envolto no escândalo. A 26 de Abril, o secretário-geral da educação assinou o despacho de suspensão de Fernando Charrua. Ao contrário da ministra, eu tenho razões para duvidar não só do funcionamento da DREN, mas da 5 de Outubro.

O outro Sócrates, o verdadeiro, morreu por falta de liberdade de expressão; o regime do novo, asfixia-a: a sua popularidade continua, porém, em alta. Ficaremos calados a assistir? É nosso dever reflectir no que, democraticamente, está ao nosso alcance fazer. A Declaração da Independência dos EUA diz que as pessoas estão dispostas a aceitar os erros de um governo enquanto estes forem suportáveis, mas que, atingido um certo ponto, revoltam-se. Questiono-me se faltará muito, por este caminho, para aí chegarmos... ■ o corvo

03 April 2006

Caricato(ura), não?

«Medo é remorso antecipado», confessava-se na peça de José Rodrigues Miguéis, O Passageiro do Expresso, que a Oficina de Teatro do Cértoma já representou entre nós. E o medo de Kåre Bluitgen parecia conter em si já o remorso pelo acto, como que, numa omnisciência estranha, previsse o que se seguiria. Embora poucos o saibam, este é o homem que espoletou toda a controvérsia dos cartoons, ainda que indirectamente. Autor do livro O Corão e a Vida do Profeta Maomé, o escritor teve grandes dificuldades em encontrar ilustradores para a sua obra, publicada este ano, por medo dos desenhadores de represálias de extremistas islâmicos. Foi em sabendo do caso que o director do obscuro jornal dinamarquês resolveu propor a alguns caricaturistas que representassem o Profeta – causando a confusão.
Compreenda-se que, em primeira análise, o que irritou a comunidade muçulmana foi a simples representação de Maomé, que é interdita segundo o Corão. Não podemos limitar a liberdade, num estado laico, a preceitos religiosos: existem hindus em Portugal e, tanto quanto saiba, ainda não houve qualquer petição para interditar o abate de vacas. Em segundo lugar, circularam pelos países árabes caricaturas de cariz sexual explícito, envolvendo o Profeta, que não foram publicadas em qualquer jornal ocidental. Houve, evidentemente, um aproveitamento do caso por parte das comunidades islâmicas. De facto, toda esta questão foi devidamente empolada pelos líderes religiosos dinamarqueses que, não obtendo a reacção tempestuosa que esperavam, elaboraram um dossier de 43 páginas que fizeram circular pelo mundo árabe, procurando assim espicaçar os seus irmãos de fé, para conseguirem a solidariedade que sentiam faltar-lhes. Tal atitude representa uma tentativa descarada de inflamar os ânimos. Registou-se um óbvio aproveitamento político da situação – que está longe de ser meramente religiosa.
Finda a Inquisição cristã, eis que se ergue, violentamente, o Santo Ofício de Alá. Os autos-de-fé não queimam pessoas, mas incendeiam embaixadas – e as fatwas já estão lançadas. Já em 2004, o filme de Theo van Gogh, Submissão, uma curta-metragem de dez minutos sobre a violência nas sociedades islâmicas contra as mulheres, acabou por ser a sentença de morte do realizador. O mesmo recurso à força agora é, para todos os efeitos, e independentemente da opinião que se possa ter sobre a polémica, uma transgressão muito mais gravosa das regras do Estado democrático do que a publicação dos cartoons. Não teria o cartunista que desenhou Maomé com um turbante-bomba, até um certo ponto, dentro dos limites de uma certa facção dos muçulmanos, acertado argutamente na sátira?
Reservando-nos ao direito de, moralmente, concordar ou discordar das caricaturas, não podemos, porém, unilateralmente, proibi-las. Esta caso está a abrir um precedente na opinião pública – tendencialmente favorável aos muçulmanos – que poderá ser hábil e erradamente manipulado. O direito de se exprimir – e com humor, como convém ao cartunista – não pode, não deve, ser interditado. De tal forma que, na mesma Dinamarca, foram publicados outras doze caricaturas satirizando o primeiro-ministro e a o tratamento dado por este ao caso. A partir do momento em que abrimos uma excepção para as religiões (e quantas vezes não foram satirizados cristãos e judeus?), temos de passar a considerar outros grupos como não passíveis de o serem, como ideologias políticas ou correntes filosóficas. E eis que, em nome do convívio saudável entre todos, a civilização da liberdade deixa-a cair, conquistada por uma falsa paz e pelo medo. Caricato(ura), não?

Publicado a 15 de Fevereiro de 2006