10 July 2007

Anedota Triste

Há, entre a democracia e a ditadura, um amplo espectro político que aceita desvios a alguns traços-base de cada um desses dois regimes sem que, por isso, um se transforme no outro. Assim, a efémera primavera marcelista, não obstante certas liberdades arriscadas, era, ainda, um autoritarismo. Do mesmo modo, o regime de Putin, na Rússia, permanecendo uma democracia, contempla, porém, com vertigens (que induzem a queda), o precipício da ditadura. Ora, se Moscovo está já no final desse nebuloso espectro que separa os dois regimes, Portugal, longe ainda, inicia-se nessa travessia obscura, timidamente – ou não.

Muitos indícios têm vindo a acumular-se que confirmam esta suspeita, porém, nenhum tão vergonhosamente explícito como a recente suspensão de um funcionário da DREN (Direcção Regional de Educação do Norte): Fernando Charrua, professor de inglês (sinto-me tentado a um “comentário jocoso” envolvendo o termo “inglês” e uma alusão sub-reptícia à licenciatura do primeiro-ministro: o exemplo alheio cala-me as palavras), ex-deputado do PSD. Este, em conversa privada com um colega, terá feito um piada sobre o curso de Sócrates. Um outro funcionário, contudo, tendo ouvido a observação satírica, relatou a anedota à directora do serviço, Margarida Moreira. Esta tomou as medidas “adequadas”. No dia seguinte, chegado ao emprego, o professor tinha o computador bloqueado, o e-mail fora lido e ele estava suspenso.

Há um pormenor, em todo este caso, que me choca quase tanto quanto a suspensão em si de que foi vítima o professor, a saber, o facto de o e-mail de Charrua ter sido devassado. Isto é próprio de regimes totalitários. Quando se atinge estes extremos, é porque eles já não existem – tudo é válido. Declaro aqui, solenemente, que já não confio no Estado. O seu longo nariz (de pinóquio, de tanto mentir) intromete-se em todo o lado. Bem-vindos à “claustrofobia democrática” que Paulo Rangel denunciava no 25 de Abril.

Margarida Moreira justificou a suspensão por “poder haver perturbação do funcionamento do serviço”. Gostava, sinceramente, de perceber esta última afirmação, pois não consigo (e já puxei muito pela cabeça, ao ponto de a ter arrancado) entender como pode uma piada rápida perturbar a DREN. Ai, que maquilhagens da verdade inventam! E, clarifique-se, é aqui irrelevante para o caso se se tratou mesmo de um “comentário jocoso” ou de um insulto: se alguém, de resto, tinha de apresentar queixa, era o visado, o próprio primeiro-ministro.

Este, para “serenizar” os portugueses, veio dizer – cinco dias depois! – que ninguém será sancionado pelo exercício da liberdade de expressão. Comentava Constança Cunha e Sá no Público que um primeiro-ministro ter de vir dizer isto transparece muito do actual clima. A ministra da educação, que recusa ir ao Parlamento, e o seu ministério têm procurado fugir à polémica. Maria Lurdes Rodrigues confessa não ter “nenhum sinal ou motivo para duvidar do [...] correcto funcionamento [...] da DREN e dos seus serviços”. Porém, o ministério está também envolto no escândalo. A 26 de Abril, o secretário-geral da educação assinou o despacho de suspensão de Fernando Charrua. Ao contrário da ministra, eu tenho razões para duvidar não só do funcionamento da DREN, mas da 5 de Outubro.

O outro Sócrates, o verdadeiro, morreu por falta de liberdade de expressão; o regime do novo, asfixia-a: a sua popularidade continua, porém, em alta. Ficaremos calados a assistir? É nosso dever reflectir no que, democraticamente, está ao nosso alcance fazer. A Declaração da Independência dos EUA diz que as pessoas estão dispostas a aceitar os erros de um governo enquanto estes forem suportáveis, mas que, atingido um certo ponto, revoltam-se. Questiono-me se faltará muito, por este caminho, para aí chegarmos... ■ o corvo

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