23 September 2009

Consenso, Projecto & Utopia

A poucos dias das eleições, continuo sem saber em quem votar. Sigo com uma atenção desmesurada a campanha: vi praticamente todos os debates, acompanho o Gato Fedorento Esmiúça os Sufrágios, não perco os tempos de antena e encontro-me agora a ler os programas, mesmo o dos pequenos. Em cada um, encontro propostas que me parecem viáveis e, possivelmente, de bons resultados. Os partidos, porém, parecem recusar-se por princípio a admitir que outro possa ter um contributo válido para o debate. Manuela Ferreira Leite tem, neste particular, uma virtude: sabe admitir a razão alheia, talvez por ingenuidade política. Alguns comentadores não deixaram de a criticar pelas concessões, por exemplo, que fez durante o debate com Louçã, tantas vezes admitindo estar de acordo com o líder do Bloco; isso, porém, a meu ver, revela apenas uma honestidade invulgar, tanto mais perigosa – mas também por isso mais positivamente desconcertante – nestas eleições, em que cada partido se procura demarcar dos seus vizinhos violentamente.
A lógica de qualquer sufrágico democrático força, claro, a esse jogo, em que se agigantam as diferenças e se calam pontos em comum: não se quer o eleitor indeciso. Isto, porém, é absolutamente pernicioso, ao ignorar que o que quer se construa de duradouro, há-de sê-lo com base num consenso alargado, caso contrário, inevitavelmente, finda a legislatura, reemergerá, pronto, o calão do rasganço e Portugal, assim, como Penélope, tece a sua teia e desfaz tudo, a intervalos ritmados de cinco anos, enquanto espera Ulisses-Sebastião que venha salvar Ítaca e expulsar do palácio os pretendes que dissipam a fortuna da casa. O apoio às PMEs, por exemplo, reúne o consenso dos principais partidos, mas cada um se quer afirmar o seu campeão por excelência e, ocupados nessa tarefa, evitam aprofundar essa matéria, acabando, por isso, por serem insuficientes nas suas propostas, como o bem demonstrava Nuno Canilho no editorial há umas semanas atrás.
O discurso sobre a governabilidade do país num cenário de maioria relativa é mais uma prova de que o consenso é um impropério no jargão político nacional. É curioso contrastar estas eleições quer com as americanas, quer com as alemãs; estas últimas terão inclusive lugar no mesmo dia que as nossas. Os politólogos consideram que serão talvez as últimas em que será possível uma coligação a dois, sendo provável que, no futuro, sejam necessários pelo menos três partidos para constituir uma maioria parlamentar. Obama, esse, fez do bipartidarismo uma das apostas fortes da sua campanha, prometendo amainar o conflito entre republicanos e democratas. Por uma série de razões, esta tem sido uma missão assaz difícil. Os nosso partidos, pelo contrário, apenas cripticamente falam em coligações. Todos terão o seu contributo para dar, mas, ao invés de promoverem um debate partilhado, cada um, num gesto de alguma arrogância, apresenta, como tantas vezes se vê na Assembleia, um projecto-de-lei diferente sobre um mesmo tema, apenas para o ver chumbado por todos os outros.
Subjacente a esta incapacidade de diálogo, jaz um mal maior. Cada partido a concurso propõe muitas medidas nas mais diversas áreas, mas falta a todos um projecto para o país que enquadre e dê sentido a essas medidas, que assim não são senão uma forma de confrontar o real imediato, desprovidas de qualquer perspectiva de futuro. Com o déscredito das grandes utopias, abandonou-se de todo a utopia como forma de fazer política, melhor, como pré-requisito justificativo de toda a acção política. Assim, dão-se muitos passos, mas ninguém sabe já para onde se caminha.

09 September 2009

A Integridade Como Problema

No final de Agosto, foi revelado na íntegra um relatório da CIA, datado de 2004, em que, com um pormenor ausente dos memorandos que a Administração Obama havia tornado públicos há já alguns meses atrás, se ilustram alguns dos métodos de tortura – ou «técnicas avançadas de interrogatório», na novilíngua da era Bush – usados contra presumíveis terroristas. Os jornais e as televisões encarregaram-se de revelar os pormenores mais sórdidos, desde um suspeito cuja mãe os soldados ameaçaram violar à sua frente até outro a quem foi apontado um berbequim ligado. As opiniões dividem-se quanto à questão de saber se os agentes da CIA devem ou não ser julgados, havendo quem considere, inclusive Obama (em parte, por estratégia política), que estes devem permanecer impunes, tanto mais que, argumentam outros, eles se limitaram a acatar ordens. Dick Cheney, o infame ex-vice-presidente, monstro-mor da velha administração, espécie louca de Átila, veio já, com os seus acólitos, defender a justeza de tudo isto, pois considera que sem os métodos usados não se teria conseguido obter a informação que, em última análise, diz, preveniu novos ataques em solo americano.
Se não houvesse sinais (porque todas as coisas se anunciam e o inesperado é uma espécie de desatenção), esta polémica, naquela que é a mais antiga democracia do mundo, teria de necessariamente nos surpreender, havendo de ser entendida como um atavismo. A ficção, porém, prenunciava-o (cumprindo a profecia de Wilde de que vida, ela sim imita a arte), no facto de a série 24 ser um das mais vistas e Jack Bauer, o protagonista, se ter tornado num ícone republicano, evocado como exemplo de quem, perante uma América em perigo, não hesita em recorrer a meios mais «heterodoxos» para proteger o país (declarações de um dos candidatos nas primárias republicanas). Nem todos os americanos, claro, pensam assim, mas o simples facto de haver quem, em cargos políticos significativos, mesmo se sob o espectro ainda do 11 de Setembro, o faça, tem necessariamente de ser preocupante (Palin, lembre-se, gozou com Obama por este defender que os suspeitos de terrorismo deviam ser informados dos seus direitos).
A um dado momento no Munique de Spielberg, Golda Meir avisa: “Todas as civilizações sentem a necessidade de negociar compromissos com os seus próprios valores”: será isto um truísmo, sob a égide do medo e da socbrevivência? Somos capazes do acto paradoxal de hipotecar os nossos valores para os salvaguardarmos? A pergunta ganha particular pertinência agora que recordámos o início da II Guerra Mundial, no passado dia um, pois que foi com o seu fim que a Europa, esventrada, optou pela paz, antes improvável, hoje necessária, nem que seja como hipérbole da segurança, o valor, não declarado, mais importante para a maioria das pessoas. Tornámo-nos demasiado morais ou, simplesmente, demasiado cínicos, para que possamos crer na guerra como solução. Veja-se: sabemos, por exemplo, que parte fundamental do nosso futuro se joga no Afeganistão. A consciência dessa verdade geopolítica, porém, em nada altera o nosso sentimento: os ingleses continuam a exigir, de forma peremptória, o rápido regresso das suas tropas. Obama, pelo contrário, envia mais soldados.
A questão tremenda a que temos de responder é: não assenta a possibilidade do nosso pacifismo europeu no belicismo americano? Não haverá uma profunda hipocrisia subjacente a todo o orgulho com que nos arvoramos em guarda avançada da civilização & democracia? A II Guerra Mundial, que evocamos e cuja importância e justeza, penso, ninguém questiona, consistiu, no fim de contas, também numa espécie de pornografia moral, em que os Aliados, para esmagarem um totalitarismo juntaram-se a outro, em que, para triunfar, tiveram de – por relutantemente que o tenham feito – servir-se das mesmas técnicas de intimidação e terror que aqueles que combatiam usavam: pense-se nas duas bombas atómicas ou na destruição de Dresden, talvez só semelhante à de Cartago. Falta uma interrogação sincera pela força das nossas convicções – e até mesmo pela sua possibilidade.

Para Uma Análise Literária Dos Cartazes Políticos

A propaganda política é coisa velha: já em Roma os latinos grafitavam as paredes da Urbe com apelos ao voto neste ou naquele candidato (ou então com insultos ao adversário, técnica não menos eficaz). Com a emergência do Império, o hábito esmoreceu e como que hibernou até ao início do século XX, altura em que o cartaz irrompeu na cena política e artística, tornando-se na arma ideal de endoutrinação dos regimes totalitaristas, ao mesmo tempo que se afirmava como nova forma de arte, o equivalente gráfico do manifesto berrado, género tão querido aos futuristas. Não sem razão o Museu de Design e Moda, em Lisboa, tem patente uma exposição de cerca de duas centenas e meia de cartazes políticos, pois estes existem também enquanto objectos estéticos – pense-se, por exemplo, no icónico poster de Obama, de Shepard Fairey, que acabou mesmo leiloado.
Agora que se aproximam as legislativas e as autárquicas, as estradas, mas sobretudo as rotundas, pululam com cartazes promovendo os respectivos partidos e candidatos. A maioria dos outdoors dos políticos portugueses, porém, a entrarem num museu, só à laia de provocação (Duchamp também exibiu um urinol): não há neles uma única ideia estética e, o mais das vezes, limitam-se a repetir o mesmo modelo com slogans diferentes e, claro, uma cara outra. Gastei a semana passada a cirandar pelo Minho: vi uma boa meia centena de cartazes e registei com o afinco de um estenógrafo as várias palavras de ordem inscritas neles. Os candidatos às câmaras e às juntas conhecem quatro/cinco palavras e duas/três formas de as articularem: com isso fabricam toda uma gama de motes em que um apenas com dificuldade se distingue do outro.
A oposição, como um mantra, repete nos cartazes mudança, mudar ou qualquer palavra da mesma família (e isto é uma constante). Os actuais presidentes contra-atacam insistindo na justeza do rumo, palavra apaparicada pelo marketing do poder, que invoca a obra feita. Depois aparecem meia dúzia de cartazes a apelar ao colectivo, normalmente num de dois modelos, o Juntos por... ou o parónimo Todos por.... Há quem peça ou prometa mais ou melhor para terra, mas acima de tudo remete-se para o futuro, indubitavelmente o lema mais popular da campanha. Resta ao eleitor guardar a fé: acreditar, confiar, confiança (e outras variantes) são palavras que abundam. E pronto: a isto se resumem cinco sextos dos cartazes que engalanam o Norte.
Os cartazes na nossa cidade também não se destacam de sobremaneira. O de César Carvalheira faz o erro básico de cortar em dois a frase do candidato, intrigando quem veja só uma das partes: «depois as ideias, os projectos e as obras». Depois do quê?, perguntar-se-ia o eleitor incauto, do meu voto? De novo, pois, discurso da fé. Só vendo o outro cartaz, que antecede este, mas está sem grande inteligência virado precisamente para o outro lado da estrada, se entende: «As pessoas e o concelho primeiro». Não se pode pedir aos eleitores tão grande esforço mental, mas sobretudo do pescoço. Quanto a Carlos Cabral, repete ipsis verbis o lema do candidato de Conde, por sua vez o mesmo do de Lordelo, ambos socialistas também. Estranho que num partido cujo líder permanentemente fantasia com outro Portugal, querendo fazê-lo passar pelo real, falte tanta imaginação, afinal.
Ninguém arrisca uma proposta concreta, uma ideia que seja, que possa alimentar o debate: os cartazes têm um nível de informação zero e pouco mais servem que para feiosamente marcar presença. Fala-se em mudança e futuro, mas sem que se especifique a direcção dessa mudança ou a forma desse futuro. As eleições autárquicas, que seriam, por excelência, uma ocasião para promessas assaz concretas e palpáveis, ao encontro de necessidades muito específicas dos eleitores, acabam afinal por resvalar para um discurso vazio. «Palavras, palavras, palavras», lamentava-se Hamlet – e lamentamo-nos nós.

Não Há Pobres Em Portugal E Todos Temos Contas Na Suíça

Quando me sento para escrever a crónica, tenho sempre ao meu lado a pilha dos jornais da semana, que vou recuperando, um a um, e desfigurando armado da tesoura, recortando as notícias mais interessantes ou simplesmente caricatas, esperando depois nelas achar a inspiração para o texto. Escrita a crónica, a maioria dos recortes vai para o caixote do lixo, mas salvo sempre uns quantos para memória futura, guardando-os num dossier para o efeito. Todos os anos, chegado o Verão e o tempo livre, aproveito para reorganizar a colecção, eliminando um ou outro artigo cuja relevância que primeiro lhe vi se mostrou afinal efémera (no meu arquivo quero apenas aquilo que importa, até porque a minha mãe não gosta nada de jornais). Quando faço este meu exercício anual, é sempre engraçado verificar como o tempo acabou por desmentir tantos medos (guardo ainda notícias de há vários anos que davam por certo um ataque ao Irão na estação seguinte). Não deixa, porém, de ser assustador ver como há tantas coisas que, na altura, dominavam as conversas, mas, um ano volvido, quando evocadas, não despertam mais que uma memória distante, a custo desenterrada. Há, ainda, uma última vantagem, enquanto jornalista, em manter esta Torre do Tombo privada: tenho sempre perto a memória, para que não esqueça e, fresco do passado, melhor julgue o que se discute no presente.
No final do mês de Julho, Manuela Ferreira Leite afirmou rejeitar a «dicotomia ricos-pobres», confessando mesmo, num tom bem-disposto: «Em relação aos ricos, há apenas um sentimento que tenho e que é: tenho pena de não o ser». Face à negação do óbvio (sempre o tipo favorito de coisas para se negar em política) – o profundo fosso entre ricos e pobres no nosso país – pareceu-me que seria educativo recuperar do meu arquivo alguns cabeçalhos e notícias dos últimos dois anos:
Dados divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística em Outubro de 2007 calculavam em dois milhões o número de pobres em Portugal, o que equivale a um terço da população entre os 16 e os 64 anos”. (Maio de 2008, Público).
Em 2007, o rendimento monetário líquido equivalente dos 20 por cento da população com maiores recursos correspondia a 6,1 vezes o rendimento dos 20 por cento da população com mais baixos recursos”. (Julho de 2009, Público).
As disparidades na repartição dos rendimentos em Portugal têm sido ligeiramente atenuadas mas, em 2006, o país ainda tinha a segunda pior classificação da União Europeia, segundo dados do Eurostat”. (Maio de 2008, Público).
Uma em cada cinco crianças portuguesas está exposta ao risco de pobreza, o que faz de Portugal o país da União Europeia, a seguir à Polónia, onde as crianças são mais pobres ou correm maior risco de cair nessa situação”. (Fevereiro de 2008, Diário de Notícias).
A líder do PSD ignora alegremente todos estes factos e louva os ricos e fica contente que dêem festas e que comprem muitas coisas e que tenham iates (é que tudo isto «dá postos de trabalho a dezenas de pessoas», mesmo se o desemprego é de centenas de milhares). Há algo de profundamente perverso nestas afirmações que revelam uma incapacidade de entender o que está de errado com a riqueza nos nossos tempos. É toda a lógica do luxo e do consumismo acéfalo que é simultaneamente imoral e anti-ecológica. Sei o quão estranho é hoje falar em moralidade, pelas conotações religiosas da palavra, num tempo em que até a FIFA quer agora proibir os jogadores de se ajoelharem quando marcam (porque não se pode confundir futebol com religião, dizem, mas o mais certo é ser uma estratégia para esmagar os outros operadores no ramo). Sejamos, pois, modernos e mandemos a moral bugiar e esqueçamos os recursos limitados da Terra e isso. Sabem: a coisa boa de ser corvo é que posso ir a todas as festas dos ricos sem ser convidado (têm sempre as janelas abertas!).

Eunomia

A sociologia é hoje uma das ciências humanas mais fascinantes. Grandes sociólogos, como Lipovetsky, Boaventura Santos ou Baudrillard, figuram entre os pensadores maiores do nosso tempo. A estatística enquanto disciplina matemática (de uma credibilidade anoréctica, resultado da sua instrumentalização pelo poder político) só na sociologia recupera o seu crédito original. Por isso gosto tanto de ler os estudos que regularmente vão sendo publicados, auscultações científicas da vox populi, que nos permitem não raro rever nos números o que, a bem dizer, já vínhamos antes sentindo das conversas de café e das escutas de comboio.
As conclusões do recentíssimo estudo da SEDES, por isso, não surpreendem – mas impressionam, pela certeza que trazem às constatações empíricas. Parafraseando Hamlet, algo está podre no reino de Portugal (e a ASAE não o confisca). Quatro em cada cinco portugueses pensa que a Justiça não trata ricos e pobres de forma igual, nem os cidadãos comuns do mesmo modo que os políticos. Metade afirma, aliás, que é inútil recorrer à Justiça. O portugueses ficaram-se a roer de inveja vendo Madoff, em pouco mais de seis meses, julgado e condenado, quando, por cá, casos como, por exemplo, o do BPN se vão arrastando e dilatando (talvez pelo calor próprio da época estival, como um metal). Pouco serve comentar que os quadros jurídicos dos dois países são substancialmente diferentes, pois para tantas outras coisas cuscamos sempre o estrangeiro – quase acriticamente julgando que, só por ser importada, a coisa há-de ser boa.
Falar de um descrédito da Justiça, como algumas manchetes de jornais a propósito do estudo do SEDES, é não compreender a real dimensão da coisa: mais que um descrédito, encontramo-nos perante uma real ineficácia, a tal ponto que, como revelava uma notícia do mês passado, em Portugal as queixas por violação desceram um terço (única descida entre todos os países estudados) e isto não tanto, claro, porque o número de violações se tenha, de facto, reduzido, mas antes porque as vítimas não vêm qualquer vantagem em recorrer aos tribunais: a taxa de condenação por violação desceu (!) nos últimos anos, inclusivamente.
Poderão alguns argumentar que, não obstante tudo, o certo é que a Justiça começa, finalmente, a ousar afrontar os poderosos. O mais das vezes, porém, nunca chega a vias de facto e, quando acaso tal sucede, sucede tarde. A grande injustiça no tratamento entre ricos e pobres, cidadãos e políticos, será, porventura, não tanto a maior imunidade dos primeiros mas sobretudo a demora dos processos que os envolvem. Não é pois de estranhar que um terço dos portugueses considere que o poder judicial não é independente do político.
Reconheço: pode haver algo de injusto nesta avaliação, tanto mais que nos encontramos perante um dilema. Se a Justiça é eficaz, confirma-se oficialmente a ideia feita de que muitos dos políticos são corruptos (Pacheco Pereira, no sábado, na sua crónica no Público, defendia que os partidos políticos deviam ser responsabilizados pelos crimes dos seus membros). Por outro lado, se a Justiça não condena qualquer político é imediatamente rotulada de ineficaz. Qualquer que seja a solução, pois, uma qualquer instituição vai ver a sua imagem profundamente denegrida, quando não mesmo as duas, de qualquer modo.
Face a isto, preocupa-me que nas faculdades de Direito não se esteja activamente a pensar em soluções para reformar o sistema jurídico, tarefa que está longe de ser exclusiva da Assembleia ou do Governo. Como, de resto, é comum entre nós, o ensino resume-se a uma transmissão de conhecimentos, sem que se exercite a crítica desse mesmíssimo conhecimento. A Universidade continua alheia aos problemas da sociedade: os docentes universitários não se solidarizam com os professores mal-amados da ministra e as associações académicas perseveram no seu autismo que, desatento aos problemas do país, repete o discurso anti-propinas sem originalidade. Falta à Universidade elevar-se a centro de pensamento do país. Por ora, é tão somente uma colecção de departamentos entretidos nos seus legítimos afãs privados. Ao contrário do que dizia Almada, e é este o nosso maior mal, não há Portugal, há portugueses.

Contra O Esquecimento

O jornalismo, hoje, é um exercício de epilepsia: convulsões súbitas, pasmos violentos, ataques breves. Os acontecimentos, pára-quedistas, surgem ex nihilo; uma profunda desatenção à pulsação dos povos e das coisas faz com que tudo pareça, ante os olhos do leitor/espectador comum, irromper abruptamente. Quanto se noticia, é violento, extravagante, extra-ordinário, rompe o ser normal das coisas (e com que força!), move paixões & logomaquias: os telejornais abrem com isso, os editoriais abordam o assunto e Marcelo Rebelo de Sousa comenta. Depois, muito rapidamente, como um Obikwelu, a coisa é esquecida, desaparece, e isto ao fim de meia dúzia de dias (salvo o caso Maddie). O século é futurista: reclama movimento. As notícias consomem-se como chicletes: mastiga e deita fora. Mas algumas insistem em não ir embora – e colam-se à sola do sapato e são uma pedra no sapato e são um peso na consciência.
Progressivamente, as notícias sobre o Irão, que ainda chegaram a fazer a capa de alguns jornais, foram esmorecendo: nos telejornais, agora, aparecem lá para o fim, como um carro-vassoura, e duram menos de um minuto. O petróleo não sofreu com a instabilidade no terreno (a greve geral acabou por não se realizar), e o Irão, convenhamos, fica longe. As imagens, carvão essencial da sociedade do espectáculo, começam a escassear, o que faz mais facilmente mentirmo-nos que tudo está bem. E entretanto Michael Jackson morreu e Cavaco anunciou finalmente a data das legislativas. É tão fácil distrairmo-nos – e, com isso, trairmos: esquecer aqueles que nos pediam que fôssemos testemunhas, que não esquecêssemos.
Os jovens que, feitos repórteres amadores pela necessidade, nos têm transmitido imagens, vídeos e notícias através da Internet, fazem-no para nós, para que saibamos, para que não se perca a memória. Todo o material que nos tem chegado pouco serve directamente à causa; ele é, fundamentalmente, para consumo externo: a TV oficial iraniana não reproduzirá o vídeo de uma rapariga abatida a tiro, como um cavalo, antes, pelo contrário, multiplicou, nestes dias, os filmes americanos na sua programação: contra a realidade, a fantasia (ainda esta semana emitiram toda a trilogia d’ O Senhor dos Anéis). As autoridades, nas manifestações, têm visado particularmente quantos empunham telemóveis, máquinas fotográficas ou câmaras. Esta é uma guerra de informação e ignorar os esforços dos que, a risco da própria vida, graças a toda a parafernália da Web 2.0 (Twitter, Facebook & Lda.), nos têm continuamente mantido informados é com-firmar a vitória de Ahmadinejad e do regime.
Por isso não podemos esquecer, menos ainda negar, como o faz o PCP na última edição do Avante, em que reproduz o discurso oficial do regime, acusando os EUA de ingerência nos assuntos internos do país (esquecendo-se que Obama foi duramente criticado por não ter tomado uma posição mais forte em relação ao Irão). Acreditava, antigamente, que o PCP tinha pelo menos uma virtude: era ideologicamente coerente. Que dizer, porém, agora, quando manifesta a sua simpatia por um regime que ilegalizou o partido comunista iraniano e prendeu milhares dos seus membros? Outros regimes ditatoriais, como China, Cuba ou Venezuela, têm limitado fortemente toda a informação sobre o Irão nos seus órgãos de comunicação: pressentem o medo (Tiananmen foi só há vinte anos).
Paira, por ora, em Teerão, um silêncio de morte [escrevo esta crónica no sábado]. Ontem, à noite, os estudantes sobreviventes juntaram-se na Universidade para uma vigília em memória das vítimas e de quantos tinham sido presos. Não façamos nós, agachados em casa, o erro de esquecer, achar já acabado o que ninguém pode ainda adivinhar como vai acabar:
الله أكبر. Allahu Akbar. Deus é Grande.

Crónica Económica De Um Ingénuo

Para Garrett, sexta-feira era o dia aziago, em que, n’ As Viagens na Minha Terra, o frade visitava Joaninha e sua avó, no verde vale de Santarém. Para mim, porém, sexta-feira é um dia particularmente caro, e não apenas porque se lhe segue o fim-de-semana. Todas as sextas vou «reunir aos meus amigos», como cantam os Quinta do Bill. Todos do Secundário, que a Universidade separou, fazemos esse esforço de nos vermos semanalmente. As conversas, animadas, oscilam entre os faits divers ou a quase fofoca e assuntos de matéria séria e elevada. No outro dia, por exemplo, falávamos de economia, assunto recorrente quando se junta um curioso ignorante como eu e três raparigas sábias da área.
A lição do dia: como faz uma empresa para não dar tanto dinheiro ao Estado. Dois amigos explicaram-me umas artimanhas simples, completamente dentro da legalidade e, de resto, banais: eu próprio já ouvira falar de coisas semelhantes, simplesmente nunca ninguém, até então, tivera a calma de me explicar com detalhe os trâmites todos da coisa. A lógica era simples: usavam-se os lucros para adquirir bens a bem dizer não essenciais apenas porque o dinheiro, não gasto, seria arrebanhado pelo Estado. Percebi o esquema, mas não deixei, porém, de comentar que era um tanto ao quanto estúpido: consumir sem necessidade parece-me errado, até do ponto de vista ambiental. Para além do mais, não haveria tendencialmente um dever de colaborar com o Estado e, como tal, de contribuir para o erário público? E é apenas justo que os que mais lucram, mais contribuam.
Os meus amigos até concordaram com algumas das objecções, mas, como Guterres, encolheram os ombros e exclamaram ser a vida: o sistema funcionava assim, e com «funcionava» queriam dizer não só que eram essas as regras mas que elas eram, de facto, eficazes. Quanto eu sugeria, eles, condescendentes, com a paciência com que se está com uma criança, mostravam-me ser impraticável – e eu não podia senão concordar com eles. Não contente, perguntei-lhes por sistemas alternativos. Olhava com especial esperança o triunvirato feminino (perdoe-se-me o paradoxo). As três Graças, tristes, porém, baixavam os olhos: não havia, em todo o curso de Economia, uma cadeira em que se pensassem modelos novos. Estudava-se o capitalismo – e como isso era já difícil, que a máquina é cheia de regras!
Eu vim para casa todo preocupado com o caso, buscando, na minha ingenuidade, uma qualquer solução para o problema primeiro: é que, caramba carambíssima! (©Eça, Ilustre Casa de Ramires), mau grado todos os problemas que eu via com isso, não era capaz de censurar sem hesitação, como um inquisidor espanhol, quem preferia comprar novo carro para a empresa (com o velho ainda todo novo) só para não ver parte dos lucros de um ano desaparecer sem retorno. Só uma muito boa vontade, que Kant tomava por ser a coisa mais sagrada do mundo, agiria de modo outro. Mas isso, enfim, moral que fosse, era prejudicial ao sistema: pois não assenta todo o capitalismo no consumismo como o comunismo na privação?
Meditava ainda eu nisto quando se soube que Ronaldo tinha sido vendido, como se faz às coisas, por noventa e quatro milhões. Alimentava-se meia África com aquilo, mas que importa: os adeptos, esquecidos disso, vão na mesma ver os jogos e comprar camisas com Ronaldo estampado aos chineses. De nada valeu a crise e todos os G20 e novas regras: a especulação continua. Tudo teve que mudar, para que tudo ficasse na mesma, como se ensina n’ O Leopardo, de Lampedusa. Mas não sejamos severos no nossos juízo: afinal, talvez Florentino Pérez, comprando Ronaldo, não tenha senão querido não pagar muitos impostos ao Estado.

Concurso «Componha Uma Campanha»

Durante a campanha de Obama, certo cronista do Público, cujo nome não lembro (Laurence Peter definiu originalidade precisamente como esta habilidade de nos recordarmos das coisas, mas não dos seus autores), escreveu a propósito de como os políticos na Europa estavam a tentar aproveitar o fenómeno Obama para renovar a sua imagem, explicando que, mais do que ser Obama, havia que parecer Obama. A campanha do presidente americano apresentou de facto um novo modo de estar e sobretudo fazer política, inevitavelmente clonado sem gosto, como um pechisbeque, agora que entramos em ano eleitoral.
O PSD foi, de todos os partidos, o que mais abertamente explicitou o seu desejo de abandonar o modo velho de política, afirmando – e até com razão – o carácter eminentemente passadista dos comícios. Seguindo Obama, os sociais-democratas lançaram uma forte ofensiva na internet. Mas porque quanto Portugal importa, traduz em calão (Eça dixit), os candidatos laranja às Europeias chegam alguns deles, na sua ânsia de mostrar modernidade, a ter links para o seu Hi5, a rede social de putos e adolescentes. Faz lembrar aquele conferencista da anedota que, convidado para uma sessão solene, procurando infundir um tom elevado ao discurso, em vez de dizer, com simplicidade, «as folhas da couve», acabou a louvar «as pétalas» do vegetal.
Também o PS procura tirar dividendos do fenómeno Obama: num dos seus tempos de antena, são exibidas várias fotos de Sócrates com o presidente americano, não se percebe bem porquê. Se bem me recordo, o candidato do PS é Vital Moreira, não o primeiro-ministro (antes fora: sinal que nos deixava!). Quiçá as imagens sejam uma referência à contratação para as Legislativas, por parte de Sócrates, da empresa que preparou o lado multimédia da campanha de Obama. Na impossibilidade de imitar o conteúdo, imita-se o estilo. Falta ao PS – e à nossa política em geral – o discurso de verdade sobre o qual Obama ergueu a sua vitória.
Estude-se o que aconteceu entre nós com a sugestão de criação de um imposto europeu, avançada por Vital Moreira. Pouco me importa aqui a ideia em si, antes a tomo como exemplum da construção da mensagem política. Vital Moreira, servente fiel de Sócrates, é, apesar de tudo, inteligente demais para não ter opiniões próprias: ei-lo pois a sugerir a criação de um imposto europeu. As hostes rosa perceberam rápidas o erro da coisa e, no dia seguinte, depois de todas as críticas de que fora alvo, Vital Moreira, em obediência aos estrategos de campanha, calou o que pensava e remeteu explicações para quando fosse eleito (belo pensamento: colhe o voto, explica depois). Mais tarde, porém, pôde retomar o assunto, fazendo notar que o PSD já antes havia aprovado a ideia. A máquina socialista não dormiu enquanto não conseguiu tornar o deslize do seu candidato em arma de arremesso, dando-lhe, depois disso, autorização para falar de novo.
Vê-se bem nisto que o discurso do poder é todo ele imagem, uma coisa fabricada que, quando interrompida pela honestidade, se acanha e panica. Vital, o candidato «independente», enquanto títere do governo, é, sem dúvida, o mais constrangido de todos os cabeças-de-lista (está claramente proibido de dizer o que pensa de Durão Barroso, por exemplo). Entende-se, face a esta sensação de farsa, porque razão a abstenção prevista é tão grande. Confrontados com a proposta de tornar o voto obrigatório, os partidos manifestaram-se unanimemente contra. É fácil desmanchar a aparente contradição entre este seu repúdio e o cerrado combate que têm travado contra a prevista abstenção. Com o voto obrigatório, a abstenção de hoje redundaria num gigantesco número de votos nulos/em branco, vexame ingrato de toda a classe. Os políticos estão apenas a proteger-se a si próprios – é a sobrevivência da espécie: pois não é este o ano Darwin?

A Gente Vai Continuar

É raro hoje, entre os jovens, discutir política. O assunto, se é trazido ao barulho, causa um mal-estar pronto, quer-se despachá-lo rápido, como um miúdo que come primeiro os brócolos que a mãe lhe impõe (os vegetais são importantes) para então gozar o resto do seu prato favorito. É simplesmente um tema impróprio, revelador de uma profunda falta de ciência social. Lembra essa cena brilhante d’ O Idiota, de Dostoiévski, em que o protagonista tem de ir a um serão burguês onde será apresentado e a amada, sabendo da tendência dele para as filosofias, o proíbe vivamente disso. Myshkin, porém, descumpre a promessa, começa uma discussão sobre religião, exalta-se, parte por acidente o vaso favorito da dona da casa e tem um ataque de epilepsia, estragando todo o serão. Uma conversa política séria corre o risco de acabar em igual pateticismo. É que a vida social é como patinar no gelo: necessariamente superficial.
Contudo, se acaso sucede essa coisa improvável que é ter-se um debate sério, não raro os meus amigos me têm ouvido dizer, à laia de provocação (como o Ega, n’ Os Maias, que aconselhava a conquista espanhola de todo o Norte), que Portugal será o primeiro país da História a extinguir-se, como os dodos ou os dinossauros. Mais: a coisa acontecerá, se tudo correr bem, lá por volta de 2033, para coincidir com o centenário do Estado Novo. Fiava-me eu na convicção de que o estado actual das coisas era simplesmente insustentável e, portanto, inevitavelmente, como isso fora uma qualquer regra física, teria de acabar (os moldes em que isso aconteceria, se por uma evaporação súbita do país ou uma debandada colectiva, não sabia).
Alguns rotulariam isto de pessimismo e chamar-me-iam Corvo da Tempestade, como se fazia, conta Tolkien n’ O Senhor dos Anéis, em Rohan a Gandalf, por ele apenas trazer notícias más. Descri entretanto, porém, da minha profecia. Diz-se, a um determinado momento da Declaração da Independência dos EUA, que “a humanidade está mais disposta a sofrer, enquanto os males forem suportáveis, do que a desagravar-se abolindo as formas a que se acostumara”. Para meu terror e insónias, percebi enfim que todos os males são suportáveis. O país não se extinguirá só porque chegou a um aparente ponto de colapso, em que a corrupção & as pressões, como Deus, se fizeram omnipresentes e estão no meio de nós. Olhe-se Itália, país do qual nos temos vindo estranhamente a aproximar, e onde todas estas práticas são quotidianas, instituídas e, aliás, necessárias ao funcionamento das instituições.
Não é por as coisas estarem mal que elas vão necessariamente mudar, não importa o quão mau seja esse mal – e temos de beber as consequências desta verdade até ao fim do seu horror. O Estado, de resto, como já notavam Marx e Nietzsche e outros, visa essencialmente conservar-se como é: o poder perpetua-se, garante o status quo, salva a pele. Vejam-se as escandalosas alterações feitas entre nós à lei de financiamento dos partidos, ou pense-se no mais recente caso que agita Inglaterra, onde os deputados usaram dinheiros públicos para ridículas e luxuosas despesas privadas. É normal que confusões destas se instalem, e isso vê-se no próprio discurso político: Elisa Ferreira, em campanha para a câmara do Porto (e para o Parlamento Europeu, mas só para assinar a folha de presenças em Bruxelas) explicou, preto no branco, que o dinheiro do Estado era dinheiro do PS.
Inflicto pois aquele que foi até hoje, aqui e tantas vezes, o meu crocito: o país não está, de forma alguma, à beira do fim ou sequer de uma revolução. Ainda que Sócrates, e muitos dos seus crentes, não o acredite, Portugal sobreviverá sem uma maioria absoluta – tal como uma maioria absoluta do PS, por sua vez, não destruirá o país. E este tudo ser suportável, este nada ter de mudar, este assentimento ao curso das coisas, independentemente dele, é precisamente o nosso drama: vamos andando (resposta tão nossa), continuamos, arrastamo-nos, espojamo-nos.

O Modo Do Medo

Começou, portanto, a corrida para as Europeias. Por serem as primeiras eleições em que iria votar, como um édipo, ceguei-me voluntariamente, esqueci o passado todo, como uma alma platónica que tropeçasse do céu das Ideias e, incarnada, não lembrasse nada do outro mundo: decidi-me a, com a ingenuidade possível, julgar com imparcialidade os vários partidos pelas suas propostas, ignorando tudo o mais que soubesse deles e, sobretudo, a sua actuação política nacional. Quando os candidatos dos cinco principais partidos acorreram ao Prós & Contras, fiquei, mau grado a minha falta de tempo, a ver – só para rapidamente, findo o primeiro intervalo, me ir embora.
Esperara ouvir as opiniões dos vários cabeças-de-lista dos partidos sobre o Tratado de Lisboa, a possível entrada da Turquia na UE, o problema da imigração ilegal ou as questões mais prementes de política externa. Sobre isto, porém, nada se falou (só da recondução de Durão Barroso). Vai-se de resto aos sites dos partidos principais e não se acha sobre isto um programa, um manifesto, uma declaração de ideias, propostas, uma visão sobre a Europa, em suma. As Europeias estão a mostrar-se, uma vez mais, um mau ensaio para as Legislativas.
Para o confirmar, basta ver como Vital Moreira, já por várias vezes, pediu uma maioria para Sócrates, assegurando que, caso o eleitorado não lha conceda, compromete seriamente a estabilidade do país. O candidato do PS já afirmou mesmo que, caso Sócrates não reuna a maioria dos votos, é possível que apresente a sua demissão. Eis, pois, o PS insistindo na estratégia que lhe é própria, a do medo, a qual tem consistentemente definido a sua legislatura pelo menos desde o caso Charrua, provando-o como inimigo da liberdade, que comparece no 25 de Abril, todavia, que é uma festa bonita que se faz todos os anos a celebrar uma coisa que aconteceu e dizem todos ao mesmo tempo não estar cumprida, sem que ninguém note o paradoxo parvo (mas celebre-se, que o povo gosta é de festa, nem que a ocasião seja a inauguração da Praça Salazar a 25 de Abril – oxímoro!: o importante é haver os foguetes e a comida – nisso somos como os hobbits, gente pequena para um país pequeno).
Exemplo recente: a Ordem dos Notários pediu aos seus membros que recolhessem todas as escrituras em que Sócrates interveio para as disponibilizar a uma jornalista que as havia solicitado. Este trata-se, diga-se, de um serviço normal prestado pela Ordem a qualquer cidadão. O governo, porém, veio já considerar tudo isto “muito grave”, algo que “põe em causa os direitos fundamentais” e “não é admissível num Estado de direito” – apenas, claro, porque o primeiro-ministro é visado. Sócrates, aparentemente, é, para o PS, como um corpo de grande massa no universo einsteiniano: junto a ele, o tecido do espaço-tempo – as regras da «festa da democracia» – curva-se particularmente, deforma-se. Assim só se entendem os apelos de Vital Moreira. É que já aconteceu partidos ganharem as eleições sem, contudo, terem maioria absoluta: o governo eleito não deixou de governar. Sócrates, porém, enquanto the special one, por quem toda a ordem das coisas se altera, necessita mesmo da maioria.
Entendo que o PS comece a insistir nesta mensagem. A forma calorosa como Vital Moreira foi recebido pelos populares no 1 de Maio revela obscenamente a um primeiro-ministro na terra das fadas como o seu país maravilha ferve de indignação. O desemprego, que teve agora a maior subida das últimas três décadas, alastra como a gripe suína. A crise, agravando-se, é, de facto, a única coisa que poderá evitar a vitória de Sócrates. E Sócrates tem um medo genuíno disso. Eis, pois, aqui, a farsa a descoberto: aqueles que usam a arma do medo são, precisamente, aqueles que mais medo têm.

Sobre Fobias (Da Tecnologia & Da Democracia)

A Assembleia da República fez-se nova. Não mudaram, (par)lamentavelmente, os inquilinos, mas tão somente a sala das sessões, que foi submetida a uma extensa remodelação com vista à sua modernização: cada deputado, por exemplo, dispõe agora de um computador individual (um Magalhães?) e pode, doravante, fazer uso de materiais audiovisuais nas suas intervenções, graças ao novíssimo sistema de projecção digital. Trata-se de um Parlamento para o século XXI, como o definiu a secretária-geral da Assembleia.
O choque tecnológico chegava enfim à política. Os Verdes já se haviam anunciado prontos a dar pleno uso ao novo equipamento a partir do próximo 25 de Abril. Os deputados, porém, assustaram-se e correram para a mamã, a tratarem de se precaver do choque com airbags vários. Sossegou a mãe toda a gente: devido a “problemas deontológicos”, porque a AR “não é um estúdio de televisão”, as geringonças informáticas serão introduzidas com “pequenos passos”, explicou Jaime Gama, presidente da Assembleia. A projecção de sons, vídeos, imagens e fotografias foi adiada sine die, e a medida, na falta de bom senso, recolheu consenso.
Gastou-se, portanto, cerca de quatro milhões e meio de euros do dinheiro dos contribuintes na remodelação da AR para os deputados terem um moderníssimo sistema de projecção digital que não utilizam, como uma daquelas bugigangas africanas que se compram nos mercados de artesanato, que servem para não servir para nada, com efeito estético apenas. Se essa era a intenção do Parlamento, teria ganho mais em adquirir, pelo mesmo preço, um qualquer quadro menor de Picasso e um bom Gauguin.
Justificam os deputados a sua precaução no usarem as inovações digitais com o facto de não serem conhecidas experiências análogas no estrangeiro. Entendamo-nos, pois: Portugal tem uma vez num século a oportunidade de estar à frente dos demais países – e recusa-se! Se algo não foi primeiro feito lá fora, nós, portanto, não o sabemos fazer, devemos concluir. Se calhar tinham razão aqueles que entendiam haver raças inferiores: a portuguesa!, ou assim pensam os nossos deputados (talvez baseados no juízo que fazem de si próprios).
A mesa da AR está já a trabalhar num esboço de regras para a utilização do sistema de projecção – e neste assunto urgentíssimo se entretêm os nossos representantes. Eis um dilema: ou os deputados são naturalmente sensatos no uso de materiais audiovisuais, e, assim sendo, o conjunto de regras para a sua utilização em que agora se trabalha é desnecessário de todo (mas faz-se, todavia!); ou, pelo contrário, os deputados precisam efectivamente dele, revelando-se como um bando de miúdos entusiasmados por um brinquedo de novo: a quantidade de legislação é inversamente proporcional ao bom senso daqueles que ela governa.
E interrogava-me eu sobre o porquê de tudo isto, do absurdo, quando, relendo a notícia no jornal, vejo que, juntamente com vídeos, sons e afins, foram também expressamente proibidas as “campanhas negativas”. Eis, enfim, o estranho caso explicado, a causa verdadeira de toda a cautela: certamente esta será apenas mais uma das medidas para que o PS se possa proteger das infames campanhas negras que estão a ser movidas contra o seu líder. Segue a AR o mesmo caminho que a câmara da Guarda, que apelou agora para o Tribunal Constitucional para evitar o acesso dos jornalistas à documentação nos seus arquivos referente a Sócrates. Também a Entidade Reguladora para a Comunicação Social afia os dentes contra a TVI, permanecendo calada face à RTP, concubina da agenda política do poder.
Modernizar o Parlamento, quando metade dos deputados são robôs das suas bancadas (tecnologia de pontíssima)? Modernize-se antes a nossa democracia: reganhemos-lhe liberdade.

Lições Darwinistas Sobre A Política Portuguesa

Habita na alma humana uma vontade profunda de ordem: é a nossa forma de estar no mundo. Postos na passadeira-rolante do agora que foge, pensamos o que está para vir sob a forma de planos – em poesia chamados de sonhos – e arrumamos as coisas passadas numa narrativa mais ou menos coerente que responde pelo nome de: memória. Por meio desta, o passado actualiza-se, faz-se uma vez mais, presente; é uma eurídice, amada de orfeu, que os deuses dos infernos, compadecidos, deixam, já depois de morta, regressar à terra. A memória, fluida (estado líquido do Tempo), guarda de tudo apenas as coisas importantes que nos explicam onde estamos. É como uma cábula da nossa personalidade, à qual recorremos para nos lembrarmos de quem somos.
Isto da memória, válido no plano individual, é-o também ao nível do género humano como um todo. Ensinou-nos Darwin, n’ A Origem das Espécies – e celebramos este ano os 150 anos da sua publicação –, que descendemos todos dos macacos. Só à luz desse passado consigo, de facto, explicar as macacadas que vou sabendo. Aparentemente, no país basco, o candidato do partido nacionalista, num comício durante o período do Carnaval, vestiu os seus apoiantes de personagens do Star Trek e fez-se ele mesmo passar (o sujeito, dizem, é parecido) por Mr. Spock, um dos protagonistas da mítica série de TV. Qual o carnaval mais verdadeiro – se o da política, se aquele que serviu de pretexto para a mascarada – é difícil de assegurar.
O estranho comício tinha como objectivo contrariar a perda de pontos do candidato nas últimas sondagens; foi, de algum modo, uma chamada desesperada de atenção, sem resultado, porém: o candidato nacionalista perdeu as eleições. O interessante no fait diver é como expõe a actual prática política: o importante – como uma criança a quem nasceu recentemente um irmão e fica com inveja dos mimos que não recebe – é chamar a atenção, fazer barulho, estridor e estrondo. A política é espectáculo – som e fúria, para usar o título de Faulkner – encravada entre os soundbites e os bitaites. É a “festa da democracia”, de que falou uma vez Sócrates. Pão e circo, ensinavam os romanos: pão, com a crise, começa a faltar – mas o circo continua.
O circo é hoje um elemento tão fundamental dentro da dinâmica política que quem não se lhe submete não tem qualquer oportunidade real de conquistar o poder (chamava Darwin a isto selecção natural). Objectores de consciência perdem: é isso o que vai acontecer a Manuela Ferreira Leite. Sócrates, esse, sabe servir um bom espectáculo, como se viu agora em Espinho. Sócrates é uma espécie de Scolari da política: não tem qualquer estratégia, mas domina na perfeição a psicologia de grupos (o que tende a funcionar). Um exemplo:
Orwell, no 1984 (aparentemente o livro que mais gente diz ter lido sem ter, de acordo com um novíssimo inquérito britânico), fala nos «dois minutos diários de ódio» – instrumento essencial do poder do Grande Irmão – em que eram mostrados aos filiados no Partido os inimigos contra os quais eles deveriam dirigir a sua raiva. Sócrates e os seus, sábios destas coisas, tiveram o cuidado queixinhas de expor os adversário do PS: o BE, o Público e a TVI, promotores da campanha negra contra o líder rosa (isto é sobretudo uma questão cromática).
O congresso em Espinho foi essencialmente um espectáculo para ser televisionado, uma coisa estridente, sem ideias, com Sócrates como o apresentador do circo, que se prolonga agora pelas três eleições próximas. Darwin já o previra, quando explicou que as espécies evoluem de acordo com o seu habitat: numa república das bananas, não era de esperar, a acompanhar, toda a macacada política respectiva? (Fala um corvo, que não entende nada de símios).

22 July 2009

O Estranho Caso de Alfie Patten

Distraídos com o Carnaval, poucos, acredito, terão ido ver ao Messias este fim-de-semana o último opus de Fincher, O Estranho Caso de Benjamin Button, obra de uma beleza sóbria, coroada por essa actriz suprema que é Cate Blanchett. O protagonista do filme, interpretado por Brad Pitt e muitos efeitos especiais, tem a peculiaridade de, em vez de envelhecer, rejuvenescer: tendo nascido velho, morre bebé. Benjamin passa a sua infância num lar de idosos (aceite-se o paradoxo); cedo aprende a conviver com a morte e as coisas adultas. A sua condição invulgar obriga-o a uma maturidade precoce. Nem Benjamin, porém, se vê feito adulto tão à pressa, forçado a enfrentar a paternidade e a tomar nos braços um filho, como Alfie Patten, o miúdo inglês de treze anos que, na semana passada, o Sun, essa coisa abjecta que faz o 24 Horas parecer um jornal de referência, revelou aos súbditos de Sua Majestade.
Conservo ainda da minha estadia em terra alheia o hábito de, no meu jogging diário pela internet, visitar as páginas dos principais jornais ingleses. Grande foi o meu espanto – grande como aquele espanto que, Aristóteles dixit, está no parto da Filosofia – quando encontrei a notícia: Alfie, o puto com cara de nove anos, e a sua namorada teenager de quinze eram pais. Uma coisa destas, obviamente, transbordou e, alguns dias depois, os nossos jornais também já estudavam o caso, vindo a lume na mesma semana em que, curiosamente, por cá, se discutia esse assunto vetusto, de barbas: a introdução de educação sexual nas escolas, projecto que acabou por ser aprovado no Parlamento.
Casos aberrantes, mas reais, como o de Alfie, mostram que as doze horas por ano que, doravante, os alunos forçosamente terão sobre esta matéria são importantes. O busílis da questão está todo no conteúdo das ditas cujas. Exemplo: o governo inglês – isto é outra daquelas notícias que uma pessoa pesca na Rede – vai começar brevemente a distribuir panfletos dirigidos aos pais em que os aconselha a, quando falarem com os filhos sobre sexo, não tentarem convencê-los do que está certo ou errado, porque isso, dizem, pode levar a que eles não sejam “abertos”. Apetecia-me acabar a crónica aqui, deixar o leitor de olhos fechados, como quem percebe que um grande erro acabou de ser feito, a levar a mão com força à testa, como quem se lembra que não jogou no euromilhões (está mal, pois está mal).
Esta incapacidade moderna de dizer sim sim, não não prende-se directamente com a transformação do politicamente correcto no valor moral por excelência dos tempos de hoje. O politicamente correcto não admite as categorias de certo ou errado e faz de tudo uma mixórdia em nome de uma tolerância que, na maioria dos casos, é apenas um eufemismo para a indiferença. Toda a educação sexual que seja, de facto, educação, terá sempre uma concepção comprometida – isto é, não neutra – da sua matéria: não dá para brincar à Suíça.
O que é necessário é pois uma educação para os afectos. As gravidezes adolescentes não resultam, em geral, de um desconhecimento dos métodos contraceptivos ou do kamasutra: os Morangos Com Açúcar encarregam-se dessa pedagogia. O que é preciso é ensinar o significado e o tempo do sexo e a verdadeira natureza do amor. Num tempo do corpo, cultivar a alma: reensinar os miúdos a sentir, a escrever cartas de amor ridículas como as palavras esdrúxulas do Campos (já o professor Keating, no Clube dos Poetas Mortos, dizia, com verdade, que a linguagem se desenvolvera com o objectivo único de cortejar as mulheres). A alma educa-se, os afectos aprendem-se: toda a literatura universal é um manual de amor gigante. Infelizmente, Alfie não parece ser grande adepto dos livros: prefere, como o provam as fotografias do Sun, a Playstation. A vida, para ele, poderá ter sido, até hoje, uma brincadeira. Agora que o seu filho nasceu, sobre um futuro preto, as palavras: game over.

08 February 2009

Escola de Meio Dia, Erros de Meia-Noite

Regresso: abandonei, enfim, o poleiro inglês. Concluí a minha emigração. Bom tempo para a viagem: depois que deixei aquilo, dizem-me, os ingleses vieram para a rua pedir emprego para os seus, zangados com os portugueses a trabalhar em terra alheia. Numa Londres agora agasalhada em neve, um corvo, preto, seria um alvo fácil da ira dos manifestantes. Bati pois as asas e voei de volta, curioso também de saber as coisas daqui. Recordo bem o meu espanto ao chegar de visita no Natal e descobrir o «novo» candidato do PSD a Lisboa: senti-me tentado a rumar de novo norte e, depois do telejornal da uma, cheguei ainda a pedir ao meu pai que comprasse o bilhete. Entretanto, Obama virou presidente e eu tive esperança que o mundo ficasse melhor e, quiçá, talvez mesmo Portugal. Quatro meses fora mudaram-me muito, certamente – mas continuo irremediavelmente ingénuo.
O país está, afinal, como o deixei e ler o jornal continua a ser aquela actividade cómico-depressiva ideal para os sábados à tarde. Lia há pouco que, pelos vistos, uns mestrandos da Universidade do Porto desenvolveram um programa para telemóvel, o Quizionário, que, dizem, é suposto ajudar os professores nas aulas: os miúdos têm uma pergunta, quatro opções e têm de escolher a certa, somando pontos. A coisa tem até níveis e tudo, para a competição ser mais renhida. Aparentemente o produto já está a ser testado e logo na mais improvável das escolas: a Carolina Michaëlis. Dá-me o telemóvel já, quero estudar – é este o novo grito de ordem.
Sejamos realistas: um aluno com um telemóvel nas mãos tem mais que fazer que jogar ao Quem Quer Ser Milionário?; inevitavelmente usa-lo-á para outra coisa qualquer, mais do seu interesse: sms e afins. Pôr-lhe um telemóvel na mãos é como dar urânio enriquecido ao Irão e esperar que ele o use para fins civis. Duvido, porém, que o projecto vá longe: Sócrates não deve apreciar concorrência ao Magalhães. A ideia, contudo, teria, estou certo, a benção da novíssima pedagogia, contente de converter toda a aprendizagem em algo necessariamente divertido. Antes, tal estratégia era próprio do infantário; aparentemente, agora, é geral.
Louvo este regresso à cultura clássica: em latim, ludus quer dizer tanto escola como brincadeira. Parece ser isto que o Ministério da Educação tem em mente agora que pretende alargar o horário das escolas do primeiro ciclo para doze horas, como anuncia, contente, a Confederação Nacional das Associações de Pais. Na Inglaterra, reparei que os filhos da minha senhoria estavam sempre em casa antes das quatro da tarde, multiplicando-se depois ubiquamente por mil e uma actividades. Aqui, pelo contrário, os próprios pais querem os filhos encarcerados na escola, à qual caberia então entretê-los após o período lectivo propriamente dito. É que, explica o presidente da Confap, «esperar que, em casa, os pais tenham literacia suficiente e computadores para ajudar os filhos a perceber as matérias» é algo que «tem de acabar». Mais valera ser directo e dizer que os pais, simplesmente, não têm pachorra.
Os longos horários de trabalho de hoje levam, de facto, a que para muitos pais seja cómodo, até necessário, os filhos poderem ficar na escola até tarde. Isto, porém, conduz necessariamente a um estranhamento entre pais e filhos, juntos cada vez menos tempo. A solução mais humana, escandalosa para os mais zelosos do lucro, seria a redução dos horários de trabalho. Isto teria ainda a vantagem de, como notava Obama na tomada de posse, combater o desemprego, pois se cada um trabalha menos, são precisos mais para fazer o mesmo trabalho.
O Ministério da Educação, pelo contrário, face ao desemprego que grassa entre a classe docente, pretende agora fazer regressar professores reformados, em regime de voluntariado, para ajudar nas escolas. A medida escandaliza-me quando penso em quantos jovens, sem conseguirem ingressar na carreira docente, trabalham em call centers. Mas este é o país em que estão – perdão, em que estamos: às vezes, ainda me esqueço que estou de volta.

imagem:
Mining Town/ Pa., Alfred Eisenstaedt (1943)

29 October 2008

A Doutrina Vencida dos Vencedores

Sei que fiz voto de silêncio, mas também se pode sair da cartuxa (especialmente quando se tem asas para voar). Pedi ao Einstein uma explicação para o longo tempo entre as crónicas e o linguarudo (foi ele que desenhou o logotipo dos Rolling Stones) explicou-me que o espaço e o tempo eram um contínuo siamês: eu longe, as crónicas tinham que levar um mês.

*
No outro dia o capitalismo esteve aí a estrebuchar. Não fiquei com pena nenhuma do capitalismo (para que quereria eu uma pena feia, a estragar a minha plumagem?). Subitamente, começou-se a falar na necessidade de “moralidade” (assim mesmo: foi esta a palavra usada) no mercado. Depois do “socialismo de rosto humano”, o “capitalismo de rosto humano”, ironizava com humor e verdade um blogger (não recordo quem: li tantos – que me perdoe!). Quanta inocência cabe entre uma gravata e um colarinho!
O capitalismo é, em si mesmo, um sistema absolutamente imoral. Que, regra geral, os partidos de raízes mais ou menos cristãs sejam advogados da liberdade dos mercados – a Juventude Popular, não esqueçamos, propôs, no ano passado, a abolição do salário mínimo, com o argumento de que este era um entrave a essa mesma liberdade do mercado – é um daqueles mistérios políticos absolutos e patetas, tão inexplicáveis como, para a ciência, o facto de o pato ser o único animal que não produz eco. O sistema capitalista, na forma em que o conhecemos desde a II Guerra Mundial, baseia-se essencialmente numa lógica de consumo assente na associação falaciosa entre ter e ser. A primeira geração pós-guerra, cobaias da nova experiência capitalista, acertadamente entenderam a sua mentira: chamou-se a isso anos 60 e hippies. Mas quando crescemos perdemos os sonhos como os velhos perdem os cabelos – e os revolucionários viraram os mercenários do sistema.
O capitalismo nasce do conceito da posse que é, por natureza, individualista (o verbo possuir só tem as três primeiras pessoas do singular: no plural substitui-se por partilhar). O capitalismo é esse sistema em que a palavra bem só existe no plural, material. Empilhamo-nos de coisas com que nos prometeram a felicidade. O objecto das nossas acções, imperceptivelmente, passou da pessoa para a coisa, para a pessoa acabar em coisa (essa é, ainda, a mais válida definição de capitalismo). Uma doutrina centrada no ter tem de arruinar o ser. Falamos de um sistema que assenta na ganância de multiplicar permanentemente (tal como se procriam mil pipocas de uma mão cheia de grãos de milho) o capital, por imenso que seja. Porque é uma sociedade do ter, é também uma sociedade do entre-ter: desse modo apenas se pode esconder o tédio, o absolutíssimo tédio que brota de uma vida mentirosa. Sendo uma doutrina de vencedores, o capitalismo pressupõe automaticamente vencidos: os marginais, os pobres (um quinto da população portuguesa, creio).
A intuição do erro fundamental que é este sistema primata tem naturalmente suscitado reacções. Ridículo seria agitar de novo bandeiras vermelhas (do sangue) e foices (das vidas ceifadas). Algumas alternativas foram sendo desenvolvidas. O “comércio justo” (popularíssimo aqui na Inglaterra, onde a omnipresença divina compete com a ubiquidade do café fairtrade) será talvez um dos casos mais bem sucedidos, mas também digno de nota é o projecto da economia de comunhão, lançado por Chiara Lubich, fundadora do Movimento dos Focolares, que defende uma repartição dos lucros tripartida, em que uma parte substancial destes é directamente aplicada em favor dos mais pobres (a ideia surgiu numa visita às favelas paulistas). Uma revolução mais profunda, mais íntima, é ainda necessária, contudo: a ganância dos especuladores tem a sua contraparte no consumismo do homem normal. Diz-se que Sócrates, um dia, percorrendo o mercado de Atenas, vendo as bancas, comentava com os discípulos: “Tanta coisa que eu não preciso!”. Os nossos centros comerciais multiplicam-se como cogumelos (e são todos venenosos, estes). Quando conseguiremos de-ter esta obsessão de ter?
imagens:
Into the Wild (2007), de Sean Penn

10 September 2008

Kafka em Portugal, Pássaros em Inglaterra (Com Carrossel Literário)

Em finais de Junho/princípios de Julho, fui à secretaria da minha faculdade, com o objectivo modesto de apresentar dois requerimentos para alterar algumas das cadeiras que teria de frequentar no semestre seguinte. Simpática, a funcionária ameaçou-me delicadamente a apresentar a papelada apenas em finais de Agosto, mesmo antes do novo ano lectivo se iniciar. Doutra maneira, acrescentou, teria inclusive de pagar gorduchamente os requerimentos. Deixei-me convencer. Regressado das férias, na data prevista, apresentei-me de novo ao balcão, apenas para que nova funcionária me aconselhasse a escrever os requerimentos só depois de ter completado a matrícula – seria, dizia, mais fácil assim. Mal o mês de Setembro acordou (ainda estava a bocejar e de pijama), eis que me plantei (e levei o regador comigo, pelo sim pelo não) na fila para as matrículas: era o segundo dia que estavam abertas. Pacientemente, esperei uma manhã, despachei o assunto e fui então determinado à secretaria, novamente.
Tinha particular urgência no requerimento: até ao final desta semana precisava de saber se tinha sido deferido ou não. Escrevi em letra bonita as cartas aos presidentes do conselho directivo e do científico e, orgulhoso de, por fim, ter encerrado com sucesso tão épica tarefa, entreguei-as à funcionária, sem deixar de perguntar quando teria uma resposta. «Isto agora pode demorar muito tempo», foi toda a recompensa que tive do meu esforço. Este é o drama absurdo (como uma peça de Brecht com um título de Beckett: à espera do requerimento) de Portugal: um homem pode tentar fazer as coisas com antecedência (ver o futuro com telescópio), mas inevitavelmente é proibido disso, só para ser reconduzido para a última hora que é em cima da hora a cavalo da hora empinada na hora – e, depois de esperar, esperar mais.
Este, porém, foi um dia dos prodígios (plagio Lídia Jorge, que nunca li). Ao longo da minha odisseia de um dia (como a do protagonista do Ulisses de Joyce – este vou ler a seguir), tropecei nos mais fantásticos casos, certamente argumentos perdidos de Kafka. O namorado de uma amiga minha não se conseguia matricular porque a Burocracia (assim mesmo, com maiúscula) insistia que ele tinha propinas em atraso. Descobriu depois que o sistema o acusava de dever uma propina de dois mil e oito cujo prazo máximo de pagamento era... dois mil e sete. Sugeri-lhe que lesse rápido o Em Busca do Tempo Perdido, do Proust: quiçá assim conseguisse recuar no tempo (caso a coisa falhasse, propus-lhe ainda A Máquina do Tempo, de Wells).
Uma outra colega tinha sido também travada na sua matrícula pelo mesmo motivo: devia ainda dinheiro das propinas. A carta que lhe haviam enviado para casa especificava com rigor e com bigode e gravata a quantia em falta: 0,00€ - assim mesmo, com três zeros. Encontrei ainda outra aluna que tinha recebido uma carta avisando-a de que prescrevera, facto que a impedia agora de se inscrever no mestrado que pretendia fazer. Pormenor (quiçá importante): a rapariga, poucos meses antes, recebera o Prémio Feijó, que galardoa os melhores alunos da faculdade. Ao lado dela, um rapaz implorando, em verdadeiro desespero (parecia um quadro de Munch), por um diploma que desde há dois meses mendigava. Tudo está dominado pelo acaso (e pela incompetência), como na Babilónia de Borges, em que tudo era decidido pela lotaria.
Cansado desta overdose de Kafka, resolvi desprezar o exemplo estático do meu irmão (aquele que se esculpiu num busto de Palas em casa de Poe e tem um poema), bati asas e voei. Dizem ser uso dos pássaros fazê-lo, de resto. E a estação é certa e propícia. Resolvi fugir para Bristol, na Inglaterra, numa hibernação de quatro meses (os cientistas que estudam estas coisas chamam-lhe, palavra esquisita, erasmus). Arrumo a pena – recoloco-a na asa, para ajudar ao voo. Estou de partida – e isto não é partida de mau gosto. Vou, muito literalmente, calar o bico, nestes pequenos quatro meses. Até à primeira andorinha (eu venho atrás).

25 August 2008

Sugestão À Imprensa Impressa

Podia mentir – não vale a pena, porém (nem está correcto): não tenho assunto para a crónica. Corrijo-me: não tenho assunto interessante para a crónica. Devo, talvez, ser mais preciso: não tenho assunto relevante para a crónica. Aconteceram certamente coisas: continuaram a imprimir-se jornais e as televisões, à uma hora, pontuais, vinham intrometer-se no nosso almoço, atraídas, quiçá, pelo bom cheiro da comida. Tínhamos, para nos entretermos, os Jogos Olímpicos e a onda de assaltos (os russos, por solidariedade, decidiram-se a assaltar um país inteiro, por exemplo). Desliguei-me do mundo para férias durante coisa de quinze dias, mas quando me devolvi a ele achei-o igual: nada me motivava sequer uma altercação de café (reconheço, contudo: Michael Phelps, o peixe, entusiasmou-me).
Voltei do meu exílio, peguei nos jornais guardados (tinha de escrever uma crónica). Pareciam-me uma acumulação infantil de faits divers, de maior ou menor dimensão. Recordei as palavras de Swann, personagem homónima do primeiro volume do Em Busca do Tempo Perdido, de Proust: “O que eu censuro nos jornais é obrigarem-nos todos os dias a dar atenção a coisas insignificantes, ao passo que lemos três ou quatro vezes na vida os livros em que há coisas essenciais”. Mais: “Já que rasgamos febrilmente todas as manhãs a cinta do jornal, então devíamos mudar as coisas e pôr no jornal, sei lá, os... os Pensamentos de Pascal”. Belíssima ideia: teria assim, facilmente, sem dúvida, matéria para muitas crónicas.
Pelo contrário, os media, nomeadamente as televisões, insistem em reportagens absolutamente irrelevantes, com o único intuito de entreter o espectador – a notícia, coisa séria, antes matéria dos arautos, é agora apregoada por jograis. Não menos intrigante, para mim, é a forma como se conseguem escrever jornais diários inteiramente dedicados ao desporto (por amor à verdade não digo futebol). Como se mantêm os canais noticiosos vinte e quatro horas no ar: acontece na terra tanta coisa? Não deixa de ser curiosa esta nossa bisbilhotice moderna pela novidade, que amanhã é já antiga (pergunta brincalhona: são possíveis novidades de ontem?). As pessoas querem opinar sobre tudo (algumas até escrevem crónicas).
O paradoxo maior é que, no fim, com tanta informação, andamos, regra geral, mal informados (o paradigma desta verdade será talvez o caso Maddie). O incessante fluxo de notícias impede que estas sejam aprofundadas devidamente, quer pelos espectadores, quer pelos próprios media. Proponho fazer-se a seguinte experiência: entre os jornais de dois dias seguidos, deixar passar uma semana. Levar-se uma semana para ler bem e calmo o número de um jornal, conhecer-lhe as notícias e protagonistas a fundo. Rejeitar a descartabilidade do objecto (há uma certa nova, chamada Boa, que se mantém actual, dizem, já há dois mil anos).
Um esquema como o proposto resultaria ainda noutras vantagens. O jornal do dia seguinte, publicado, porém, apenas uma semana depois, guardaria já só as informações fundamentais, resistentes ao teste do tempo como um bom relógio à água; os editores, com o conhecimento do que se tinha entretanto passado, seriam mais criteriosos na escolha dos artigos, privilegiando os mais completos e essenciais. Nada de coisas irrelevantes: teríamos um jornal concentrado como sumo de laranja. O Jornal da Mealhada, por ora, ainda não aderiu a esta ideia revolucionária: já pensou o leitor quanto não teria ganho se não tivesse desperdiçado o seu tempo a ler esta pequena crónica inútil de um escritor sem assunto?