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09 September 2009

Concurso «Componha Uma Campanha»

Durante a campanha de Obama, certo cronista do Público, cujo nome não lembro (Laurence Peter definiu originalidade precisamente como esta habilidade de nos recordarmos das coisas, mas não dos seus autores), escreveu a propósito de como os políticos na Europa estavam a tentar aproveitar o fenómeno Obama para renovar a sua imagem, explicando que, mais do que ser Obama, havia que parecer Obama. A campanha do presidente americano apresentou de facto um novo modo de estar e sobretudo fazer política, inevitavelmente clonado sem gosto, como um pechisbeque, agora que entramos em ano eleitoral.
O PSD foi, de todos os partidos, o que mais abertamente explicitou o seu desejo de abandonar o modo velho de política, afirmando – e até com razão – o carácter eminentemente passadista dos comícios. Seguindo Obama, os sociais-democratas lançaram uma forte ofensiva na internet. Mas porque quanto Portugal importa, traduz em calão (Eça dixit), os candidatos laranja às Europeias chegam alguns deles, na sua ânsia de mostrar modernidade, a ter links para o seu Hi5, a rede social de putos e adolescentes. Faz lembrar aquele conferencista da anedota que, convidado para uma sessão solene, procurando infundir um tom elevado ao discurso, em vez de dizer, com simplicidade, «as folhas da couve», acabou a louvar «as pétalas» do vegetal.
Também o PS procura tirar dividendos do fenómeno Obama: num dos seus tempos de antena, são exibidas várias fotos de Sócrates com o presidente americano, não se percebe bem porquê. Se bem me recordo, o candidato do PS é Vital Moreira, não o primeiro-ministro (antes fora: sinal que nos deixava!). Quiçá as imagens sejam uma referência à contratação para as Legislativas, por parte de Sócrates, da empresa que preparou o lado multimédia da campanha de Obama. Na impossibilidade de imitar o conteúdo, imita-se o estilo. Falta ao PS – e à nossa política em geral – o discurso de verdade sobre o qual Obama ergueu a sua vitória.
Estude-se o que aconteceu entre nós com a sugestão de criação de um imposto europeu, avançada por Vital Moreira. Pouco me importa aqui a ideia em si, antes a tomo como exemplum da construção da mensagem política. Vital Moreira, servente fiel de Sócrates, é, apesar de tudo, inteligente demais para não ter opiniões próprias: ei-lo pois a sugerir a criação de um imposto europeu. As hostes rosa perceberam rápidas o erro da coisa e, no dia seguinte, depois de todas as críticas de que fora alvo, Vital Moreira, em obediência aos estrategos de campanha, calou o que pensava e remeteu explicações para quando fosse eleito (belo pensamento: colhe o voto, explica depois). Mais tarde, porém, pôde retomar o assunto, fazendo notar que o PSD já antes havia aprovado a ideia. A máquina socialista não dormiu enquanto não conseguiu tornar o deslize do seu candidato em arma de arremesso, dando-lhe, depois disso, autorização para falar de novo.
Vê-se bem nisto que o discurso do poder é todo ele imagem, uma coisa fabricada que, quando interrompida pela honestidade, se acanha e panica. Vital, o candidato «independente», enquanto títere do governo, é, sem dúvida, o mais constrangido de todos os cabeças-de-lista (está claramente proibido de dizer o que pensa de Durão Barroso, por exemplo). Entende-se, face a esta sensação de farsa, porque razão a abstenção prevista é tão grande. Confrontados com a proposta de tornar o voto obrigatório, os partidos manifestaram-se unanimemente contra. É fácil desmanchar a aparente contradição entre este seu repúdio e o cerrado combate que têm travado contra a prevista abstenção. Com o voto obrigatório, a abstenção de hoje redundaria num gigantesco número de votos nulos/em branco, vexame ingrato de toda a classe. Os políticos estão apenas a proteger-se a si próprios – é a sobrevivência da espécie: pois não é este o ano Darwin?

Sobre Fobias (Da Tecnologia & Da Democracia)

A Assembleia da República fez-se nova. Não mudaram, (par)lamentavelmente, os inquilinos, mas tão somente a sala das sessões, que foi submetida a uma extensa remodelação com vista à sua modernização: cada deputado, por exemplo, dispõe agora de um computador individual (um Magalhães?) e pode, doravante, fazer uso de materiais audiovisuais nas suas intervenções, graças ao novíssimo sistema de projecção digital. Trata-se de um Parlamento para o século XXI, como o definiu a secretária-geral da Assembleia.
O choque tecnológico chegava enfim à política. Os Verdes já se haviam anunciado prontos a dar pleno uso ao novo equipamento a partir do próximo 25 de Abril. Os deputados, porém, assustaram-se e correram para a mamã, a tratarem de se precaver do choque com airbags vários. Sossegou a mãe toda a gente: devido a “problemas deontológicos”, porque a AR “não é um estúdio de televisão”, as geringonças informáticas serão introduzidas com “pequenos passos”, explicou Jaime Gama, presidente da Assembleia. A projecção de sons, vídeos, imagens e fotografias foi adiada sine die, e a medida, na falta de bom senso, recolheu consenso.
Gastou-se, portanto, cerca de quatro milhões e meio de euros do dinheiro dos contribuintes na remodelação da AR para os deputados terem um moderníssimo sistema de projecção digital que não utilizam, como uma daquelas bugigangas africanas que se compram nos mercados de artesanato, que servem para não servir para nada, com efeito estético apenas. Se essa era a intenção do Parlamento, teria ganho mais em adquirir, pelo mesmo preço, um qualquer quadro menor de Picasso e um bom Gauguin.
Justificam os deputados a sua precaução no usarem as inovações digitais com o facto de não serem conhecidas experiências análogas no estrangeiro. Entendamo-nos, pois: Portugal tem uma vez num século a oportunidade de estar à frente dos demais países – e recusa-se! Se algo não foi primeiro feito lá fora, nós, portanto, não o sabemos fazer, devemos concluir. Se calhar tinham razão aqueles que entendiam haver raças inferiores: a portuguesa!, ou assim pensam os nossos deputados (talvez baseados no juízo que fazem de si próprios).
A mesa da AR está já a trabalhar num esboço de regras para a utilização do sistema de projecção – e neste assunto urgentíssimo se entretêm os nossos representantes. Eis um dilema: ou os deputados são naturalmente sensatos no uso de materiais audiovisuais, e, assim sendo, o conjunto de regras para a sua utilização em que agora se trabalha é desnecessário de todo (mas faz-se, todavia!); ou, pelo contrário, os deputados precisam efectivamente dele, revelando-se como um bando de miúdos entusiasmados por um brinquedo de novo: a quantidade de legislação é inversamente proporcional ao bom senso daqueles que ela governa.
E interrogava-me eu sobre o porquê de tudo isto, do absurdo, quando, relendo a notícia no jornal, vejo que, juntamente com vídeos, sons e afins, foram também expressamente proibidas as “campanhas negativas”. Eis, enfim, o estranho caso explicado, a causa verdadeira de toda a cautela: certamente esta será apenas mais uma das medidas para que o PS se possa proteger das infames campanhas negras que estão a ser movidas contra o seu líder. Segue a AR o mesmo caminho que a câmara da Guarda, que apelou agora para o Tribunal Constitucional para evitar o acesso dos jornalistas à documentação nos seus arquivos referente a Sócrates. Também a Entidade Reguladora para a Comunicação Social afia os dentes contra a TVI, permanecendo calada face à RTP, concubina da agenda política do poder.
Modernizar o Parlamento, quando metade dos deputados são robôs das suas bancadas (tecnologia de pontíssima)? Modernize-se antes a nossa democracia: reganhemos-lhe liberdade.

04 July 2008

Filosofias, Robôs & Companhia

Espantam-se os meus amigos quando eu lhes falo na necessidade de começar a trabalhar activamente na construção de uma filosofia robótica. Estou assaz ciente de que será sempre, em maior ou menor grau, um exercício de especulação – como podemos nós, humanos, saber o que é estar no mundo como robot? – mas, contudo, estou convencido que é altamente necessário. Os meus colegas riem-se, e dizem que o meu amor pelo Matrix, essa obra-mor da ficção científica, me toldou o discernimento. O futuro, porém, é cada vez mais um assunto do presente (1).
Li no Público de sexta passada que cientistas de Pittsburgh, nos EUA, conseguiram que dois macacos comandassem um braço mecânico, ao qual não tinham ligação física, graças a alguns eléctrodos – da largura de um cabelo humano! – instalados no seu cérebro. Dava vontade de falar em telepatia: o rigor científico não o permite, contudo. A equipa de investigadores salientava a importância desta descoberta para as pessoas gravemente paralisadas, mesmo se a tecnologia ainda precisa, naturalmente, de ser aperfeiçoada. A simbiose entre máquina e homem avança a passos cada vez mais largos. O último número da Sábado, curiosamente, trazia precisamente uma entrevista a Kevin Warwick, o primeiro cyborg da história, ele que já teve instalado um chip que lhe permitia automaticamente abrir e fechar portas ou acender e desligar luzes. O ex-homem-máquina pretende em breve fazer novo implante que deverá permitir comunicar directamente entre dois cérebros humanos, descartando assim a fala, que ele rotula de “barulhos estúpidos” e “forma primitiva” de comunicação.
Como escritor e agricultor da palavra, assusta-me – não me assusta mais porque não me convence – esta possibilidade do fim da linguagem que, de resto, só um cientista limitado pela sua matemática pobre poderia conceber ou desejar sequer. O homem, aliás, não se encontra preparado para uma conversa translúcida, sem a mediação da palavra e do silêncio. Esta nova tecnologia a desenvolver por Warwick pretende também explorar a capacidade de o ser humano interagir com aparelhos tecnológicos meramente a um nível mental, como os macacos de Pittsburgh provaram ser possível. Ainda que um pouco exagerada, a previsão do investigador de que em 2050 os cyborgs serão uma realidade comum não é impossível, nem sequer improvável.
Esta possibilidade coloca-nos perante a questão última: o que é o homem? Subitamente, o indivíduo comum vê-se forçado, por força do futuro que espreita, ao exercício da filosofia. As implicações, contudo, estão longe de se resumirem a esse campo. Os cyborgs, por exemplo, serão preferidos naturalmente pelos empregadores para uma série de trabalhos, devido às suas superiores capacidades, filhas dos seus mais diversos implantes tecnológicos: seremos forçados a criar quotas de humanos puros nas empresas? Não pense o leitor que o presenteio aqui gratuitamente com uma visão apocalíptica do futuro: não receio este cenário, apenas insisto na urgência de o começar a pensar e resolver. A verdade é que o ser humano atingiu as portas do palácio da criação e está à beira de as transpor: podemos, enfim, mudar-nos a nós mesmos, ao ponto de nos confundirmos. Há coisa de duas semanas, o Reino Unido legalizou a criação de híbridos humanos, embriões com 0,1% de material genético de origem animal (essencialmente bovinos ou coelhos). Proclamava um bom professor meu que assistimos verdadeiramente ao nascimento de um minotauro: a mitologia faz-se realidade. O que é o homem, pois?
Filosofia robótica? Precisamos dela, sim; mas também, e muito, de uma filosofia do homem: aparentemente, esquecemo-nos do que é isso (ser homem é duro e mais fácil é não pensar).

1. Não posso deixar aqui, a este propósito, de saudar a Câmara da Mealhada pela inauguração da nova zona wi-fi no Jardim Municipal.

18 March 2008

Marchas Populares

No primeiro dia do mês, a cidade acolheu o campeonato nacional de marcha, levando ao corte dalgumas das principais artérias da cidade e à abertura de outras improvisadas. Tenho de agradecer a Susana Feitor e João Vieira o terem forçado à inauguração de uma ligação entre a minha escondida rua e a da estação de comboio, pequeno atalho útil que, contudo, um só dia me serviu: a passagem foi já entretanto encerrada. A experiência, porém, por curta que tenha sido, bastou para ouvir – até de desconhecidos, que arriscaram conversa comigo – elogios ao prático e rectilíneo caminho que se abriu, paralelo à linha de comboio.

Isto das marchas parece, de facto, estar hoje na moda. Sábado passado, os professores promoveram a intitulada «Marcha da Indignação», reunindo cem mil manifestantes (avassalador número). Por repetidas vezes crocitei neste espaço o meu desagrado pela actual Ministra e o seu gabinete: não pude, por isso, deixar de rejubilar perante tal manifestação de força dos docentes, a quem, não me podendo unir em corpo, me juntei em espírito e, agora que escrevo, em letras. O PS, amedrontado, em vão quis responder com uma marcha de rua também, mas o beija-mão já foi transferido entretanto para um discreto pavilhão no Porto, entre quatro paredes.

Podia (e isso tenta-me como uma maçã) falar – seria óbvio, é o tema quente – sobre a situação insustentável que se atingiu na educação. Outro, porém, é o fenómeno que me atrai: esta nova vaga de marchas populares (e ainda não estamos no tempo dos santos). Há quem a tema e quem a saúde. Já ouvi rumores de PREC, já li comparações com esse tempo que eu não vivi: os ânimos andam exaltados. A questão, porém, permanece (Pacheco Pereira dedicou-lhe a sua última crónica no Público): porque estão as pessoas a sair à rua? Augusto Santos Silva acusa forças “de natureza anti-democrática” e faz lembrar a irritação de Sócrates quando este, confrontado com as manifestações populares em Montemor-o-Velho em Outubro passado, acusou o PCP e os sindicalistas de as orquestrarem. O governo falha em perceber que nenhuma força de carácter político ou afim poderia, por exemplo, mobilizar o assombroso número de professores que se manifestaram em Lisboa. Na realidade, muitos confessaram às televisões e jornais ser a primeira vez que participavam em acções de rua, e outros tantos sublinharam o seu carácter apolítico: é porque não acreditam nos partidos que as pessoas estão, enfim, a sair à rua.

Falo em nome de uma geração desencantada, a minha. Robert Redford, conhecido actor e cineasta, numa entrevista a um canal britânico a propósito do seu mais recente filme Peões em Jogo, explicava que os jovens se tornaram tão indiferentes à política por nunca terem conhecido uma liderança moral. Porque deixámos de acreditar que os partidos possam resolver os problemas que afectam a sociedade, carregámo-nos nós com essa responsabilidade, independentes. A internet oferece a plataforma ideal para essa contracorrente: veja-se a reportagem que o Público dedicou, aquando da marcha dos professores, aos blogues da autoria destes e ao seu papel na discussão pública dos decisões ministeriais, como o A Educação do Meu Umbigo, um dos mais frequentados (por mim também) de toda a blogosfera portuguesa.

Há, porém, uma fresta de esperança. Veja-se o fenómeno Obama, nos EUA, em que os jovens estão a desempenhar um papel importantíssimo. Estamos famintos de mudança, de ventos novos, que arejem o ar bafiento do establishment político. Não podemos por isso deixar de nos alegrar com o anúncio de um novo partido, por enquanto um movimento apenas. Não cremos nos velhos partidos, mas aos novos estamos talvez dispostos a dar uma chance (veja-se o caso sintomático do BE, que, quando surgiu, procurando vender-se como corpo estranho ao sistema, ganhou uma boa base de apoio juvenil, que fomentou o seu crescimento). Dêem-nos razões para acreditarmos no futuro, esse tempo desempregado, como nós, os jovens.

14 December 2007

Mulheres Seminuas e Verdades Cruas


A Juventude Socialista (JS) tem um novo outdoor. O objecto, espreguiçado por alguns amargurados metros quadrados, proclama pomposo sobre um fundo azul: “Desde 2005 mais de 54.300 estágios profissionais”. No canto inferior direito, ao lado de uns bonequinhos coloridos e dançantes, lê-se: “O futuro já começou”. A ocupar o lado esquerdo do cartaz, há um rapaz contente, abraçando pela cintura uma loira e uma morena. Dalguma forma, este outdoor é o símbolo final da política moderna. Passo a explicar.

Os partidos, sob recomendação do omnívoro capitalismo, converteram-se em empresas. As declarações de Menezes na semana passada, defendendo que o PSD deve “profissionalizar-se, passando a funcionar como uma empresa”, constituem uma imaculada expressão do tempo presente. Tendo um produto a vender – o programa político –, a empresa-partido recorre ao marketing para o divulgar junto dos clientes e consolidar a sua posição no mercado: assim se explica o outdoor da JS, a meio do mandato do mandão Sócrates, louvando as “vitórias” do executivo rosa. Mesmo aqueles sem qualquer formação na área da publicidade não ignoram que, numa sociedade infantilmente sexual como a nossa, a presença de uma figura feminina atractiva num anúncio é um artifício popular para promover o produto – exemplo disso é a última e parva campanha da TV Cabo, em que os serviços oferecidos pela empresa surgem encarnados em três raparigas que se querem de boas formas curvas. No outro dia, de resto, indo às compras com um amigo meu, até nas embalagens de queijo encontrámos uma imagem de uma mulher em biquini. Seguindo pois os mais eficazes métodos da publicidade, a JS, como boa empresa, resolveu colorir o cartaz com a já mencionada imagem do rapaz feliz em dupla companhia feminina. O partido que foi responsável pela criação, no tempo de Guterres, de um Ministério para a Igualdade, cola pelo país outdoors de um explícito machismo, denegrindo a mulher à condição de produto físico. Graças a Deus que os partidos não têm vergonha.

Empresas que são, necessitadas de vender, os partidos recorrem, para alargar a sua quota de mercado, a par e par com as mulheres seminuas, às semi-verdades, quando não mesmo à mentira. Isso, de resto, é uma prática comum nesse habitat: Durão Barroso veio ainda recentemente declarar sobre a famigerada Guerra do Iraque que “houve informações que me foram dadas, a mim e aos outros, que não corresponderam à verdade” – antes que Durão o tivesse reconhecido, já a realidade o confirmara há muito, infelizmente. O cartaz da JS obedece a estas técnicas de ocultação da verdade, amigas da publicidade. Eufóricos, os pupilos socialistas rejubilam com as medidas em prol dos jovens (dizem no seu site), com os 54.300 estágios (!) profissionais do cartaz. Esquecem deliberadamente os dados recentemente revelados pelo Instituto Nacional de Estatística. Segundo este, a taxa de desemprego – que se situa já nos 7,9% - subiu entre aqueles com menos de 35 anos. De acordo com a mesma fonte, a grande maioria dos 106 mil empregos que o governo reclama ter criado, por exemplo, só foram possíveis graças ao acentuado crescimento dos contratos a prazo: os contratos sem termo, pelo contrário, reduziram-se. Seria contudo estranho pedir aos jovens outro comportamento, quando o governo do seu próprio partido envereda pelas mesmas tácticas. Ainda na sexta, o Tribunal de Contas veio denunciar como, através de uma metodologia manhosa, o Ministério da Saúde apresentou resultados assaz positivos, quando, na realidade, a situação do Serviço Nacional de Saúde se deteriorou. E estas são verdades cruas que nenhum cartaz consegue disfarçar.

P.S.: Na impossibilidade de se encontrar o cartaz da JS para ilustrar este post, servimo-nos, em homenagem ao título, do anúncio da Channel com a nossa amada Keira Knightley -perdoem-nos.

25 August 2007

O Despertar da Mente

Entre os leitores deste texto, algum porventura mais cinéfilo terá reconhecido no nome da crónica o título do penúltimo filme de Michel Gondry, estreado em 2004, com Jim Carrey no papel principal. O famoso actor interpretava nessa película Joel, um homem que, desiludido com o fracasso da sua última relação amorosa, resolve recorrer aos serviços de uma novíssima empresa dedicada à eliminação de memórias com o objectivo de apagar todas as recordações da mulher que amara e assim ultrapassar a dor que o acomete.

Vem a referência cinematográfica a propósito de uma breve notícia, já do mês passado. Assuntos mais urgentes, contudo, adiaram o seu tratamento aqui neste espaço crocitado. Segundo o Público, então, uma equipa da Universidade do Colorado terá concluído, em estudo publicado na Science, que “as pessoas conseguem suprimir memórias específicas num dado momento, através de um treino repetitivo”. Se o jornalista sublinhava as eventuais utilizações positivas da descoberta – por exemplo, para as vítimas de stress pós-traumático –, menos optimista foi a minha reacção, que na novidade descobria um potencial perigo.

Já o brilhante Borges, na sua História da Eternidade, relembrava: “Sabe-se que a identidade pessoal reside na memória e que a anulação desta faculdade implica a idiotia”. Para Platão, tudo era, de resto, reminiscência. A nossa identidade reside, efectivamente, no nosso passado, o operário do nosso presente. Apagar memórias, por desagradáveis que sejam, é um exercício de amnésia, de desfiguração do eu. Freud demonstrou como acontecimentos desagradáveis, recalcados na ânsia de esquecer, acabam por influenciar o comportamento. O psicanalista esforçava-se, nas suas palavras, por substituir o id pelo ego, trazer o inconsciente ao consciente: só deste modo o doente compreenderia as causas profundas dos seus medos e desejos. Ousa-se agora o contrário: recalcar essas memórias ao extremo de apagá-las.

Se, de facto, o que distingue duas pessoas é, essencialmente, as suas memórias, então, alguém a quem se elimine uma lembrança não é, por certo, depois da operação, a mesma pessoa que era antes: passa a ser alguém diferente, digno mesmo de outro nome. Há, nisto tudo, também um sinal da progressiva e maior assimilação do homem à máquina: tal como num computador, eliminam-se “ficheiros” do cérebro humano. Receio passarmos a ter semipessoas, preenchidas de lacunas; pessoas felizes somente porque esquecem, como os tristes lotófagos da ilha onde Ulisses desembarcou no seu périplo errante, narrado na Odisseia.

Este é, de resto, um tempo que valoriza o esquecimento e a tudo dá prazo de validade, atitude perigosa, pois o passado é a chave para perceber o presente e prevenir o futuro. A memória é um dos cinco pontos cardeais da essência da Europa, na opinião de George Steiner, que a define como lieu de la mémoire no seu importante ensaio A Ideia de Europa. Pude comprová-lo na minha ida a Paris, em inícios do mês: as ruas enchiam-se de lápides relembrando quantos tinham tombado em defesa da cidade na Segunda Guerra Mundial. Deparei-me mesmo com uma inscrição dessas que celebrava “um francês”, caído no sítio onde se erguia a placa: nem sequer lhe sabiam o nome, mas persistiam em relembrá-lo, todavia.

Esta contracorrente, insistindo em recordar num tempo de esquecer, anima-me. Para concluir, recorro a essa linguagem verdadeira que desaprendemos com o tempo: a mitologia. Um dos dois corvos de Odin, deus primeiro do panteão nórdico, chamava-se Memória. O par de pássaros era o símbolo da sua omnisciência. Julgo a alegoria decifrada.

11 March 2007

Para O Futuro, Siga Em Frente


Numa cena do aguardado filme Southland Tales, de Richard Kelly, uma personagem, em posição de professora, comenta: “Os cientistas estão a dizer que o futuro vai ser bem mais futurista do que inicialmente previram.”. A observação rebolou-me na cabeça quando, na semana passada, encontrei no Público uma pequena notícia de uma grande curiosidade. A Coreia do Sul – onde se calcula que, entre 2015 e 2020, todos os lares terão um robô - reuniu um conjunto de peritos para conceberem um “código de ética” para estas máquinas. A iniciativa não é inédita: a Rede Europeia de Investigação Sobre Robótica divulgara no ano passado um relatório onde reflectia, por exemplo, sobre a justeza ética da criação de robôs destinados ao prazer sexual dos humanos, lembrando as máquinas do A.I., de Steven Spielberg.
A iniciativa da Coreia do Sul afectará, em primeira análise, as relações entre robôs e seres humanos: poderá, por exemplo, um homem casar com um andróide? Contudo, parece-me interessante reflectir também sobre a consequência de uma tal legislação para os robôs. A máquina é uma criação teleológica, destinada à execução de uma dada função. Não deverá suceder, porém, que, com os avanços da ciência, a máquina se mostre capaz de entender – e não somente obedecer – a sua finalidade e natureza compulsiva desta. O robô dotado dessa consciência estaria, nitidamente, numa condição de servidão inumana, privado da sua liberdade. Deste modo, qualquer corpus ético que se desenvolva não poderá ser do conhecimento do robô. Naturalmente, daqui resulta um intrincado conflito entre uma visão pragmática da robótica e o lado prometeico e genesíaco desta: a primeira concebendo as máquinas como servos felizes, cujo trabalho nos permitiria a nós, seus senhores, reganhar o otium horaciano; a segunda correndo atrás de um novo ser, par do homem, inteligente e crítico. Para que este último existisse, não poderia estar limitado pelo “código de ética”, mas, não preso por este, a sua vontade de servir os humanos seria decerto reduzida, almejando antes uma vida independente.
Procurando explorar estes imbróglios éticos do progresso científico, mas no campo da biogenética, um estudante canadiano concebeu um pequeno animal doméstico, sem pêlo, diferente das demais espécies conhecidas, cuja expectativa de vida é entre um a dois anos, e que pode ser adquirido em lojas seleccionadas, onde se encontra em caixas de plástico, em hibernação, à espera de ser despertado pelo dono. Pormenor importante: é tudo uma farsa. Adam Brandejs procurou com este seu projecto escolar interrogar as pessoas sobre as fronteiras morais da ciência e estudar o consumismo moderno. A sua conclusão, face aos relatos de crianças que pediam aos pais que comprassem o “bicho”, é, acertadamente, que “para toda uma geração, a vida e a ideia de vida estão a tornar-se bens descartáveis”: infelizmente, também nós aqui em Portugal compreendemos isso recentemente. É este o Maio de 68 da ciência, em que se grita pelos laboratórios: “é proibido proibir!” ?
Por vezes, perante tudo, dava vontade de construir o mundo de novo. Mas até essa última utopia parece ter ruído como uma senhora idosa que cai das escadas abaixo. Notícias recentes do Second Life [à letra, Segunda Vida], jogo cibernético onde o utilizador leva uma vida paralela à sua escolha, mostram que, onde existiam todas as condições e a reunião de vontades necessárias para, a priori, gerar uma outra sociedade melhor, esse ideal ficou pelo caminho: entre os utilizadores já circulam drogas, a corrupção já alastrou, as grandes companhias já asfixiam o mercado. Um grupo de utilizadores mais antigos criou mesmo uma Frente de Libertação que, triste ironia!, leva a cabo acções violentas de protesto, em nome do sonho perdido da terra nova e boa. O futuro pode ser, de facto, bem mais futurista do que previsto inicialmente; todavia, em última análise, assemelhar-se-á sempre, e demasiado, ao triste presente. ■ o corvo

30 April 2006

Paris Universal!

A França é dos países mais interessantes do mosaico ocidental, pelo temperamento muito próprio dos seus habitantes. Depois dos subúrbios, os distúrbios revolucionários reencarnaram na Sorbonne. A questão do CPE (Contrato Primeiro Emprego) é apenas uma sinédoque de todo o problema maior, não francês, mas europeu, com que a juventude se confronta actualmente. Na edição de quinta do Público, o jornal registava a confissão dum jovem italiano, licenciado em economia e com mestrado feito em Buenos Aires, que afirma que, tivera 1000 euros como salário, prontamente se casaria e compraria casa. Pelo contrário, porque recebe somente 300 euros, continua a viver com os pais. Encontra-se contratado por seis meses apenas: tivera ele mais estabilidade, por certo não hesitaria em se autonomizar. Tudo se acha invertido: numa altura em que a terceira idade cada vez mais necessita que sejam os jovens, com trabalho redobrado, a suportarem-na; são os mais velhos que sustentam os jovens, que não se conseguem empregar.

Correríamos a tentação de, ante tal demografia, rejubilar perante a perspectiva próxima da reforma de toda uma série de funcionários. Porém, a esperança é errada, pois, ainda que estes saiam, não entram novos – assim o exige a remodelação da administração pública. A título de exemplo, olhemos o caso dos professores – com tantos desempregados há anos, que lugar no sistema se reserva para os novos?

Alguns criticam os jovens por não estarem dispostos a um futuro precário: argumento fácil para aqueles que têm assegurada a profissão. Dizem-nos: há que ser polivalente e flexível, têm de estar preparados para exercer profissões que não estão ligadas ao que cursaram. A título de exemplo, ainda há umas semanas atrás, a revista Dia D entrevistou jovens recém-licenciados, registando como sobreviviam em trabalhos completamente alheios ao seu canudo. Uma rapariga estava empregada como caixa e outra, de noite, indicava os lugares no escuro dum cinema. Comentarão então os sábios iluminados que estamos perante dois casos notáveis de bem-sucedida adaptação ao mercado, independentemente da sua formação universitária. Erguem-se-me, porém, duas perguntas: é este desperdício de recursos humanos intelectuais que esses senhores querem apoiar? Num período de contenção orçamental, nada se faz para travar esta sangria de dinheiros públicos, com profundos investimentos em jovens que, simplesmente, não fazem uso daquilo que estes lhes proporcionaram?

Entretanto, Mariano Gago veio avisar que já no próximo ano lectivo, os cursos universitários que não tiverem 20 matrículas no primeiro ano deixarão de ser financiados pelo Estado. Obviamente, várias universidades expressaram já o seu desagrado, considerando que existem cursos nucleares – técnicos e artísticos, entre outros – que não podem ser dispensados. (Estranho as Associações Académicas permanecerem passivas ante toda a situação –compreendo!, não falamos de propinas...). Pessoalmente, não fora a Universidade de Coimbra ter afirmado que financiaria o curso que pretendo, deixaria de poder candidatar-me ao ensino superior no próximo ano. Não só deixámos de ter emprego, deixámos de ter ensino; não só não podemos trabalhar, não podemos estudar.

Acena, no Sena, a angústia juvenil... Paris, faz-te universal! ■ o corvo

Publicado a 12 de Abril de 2006

31 August 2005

Pedi, e ser-vos-á dado (I Parte do Ciclo Nipónico)

Na penúltima Pública – revista dominical do Público – pude ler um dos mais interessantes artigos deste ano, dedicado a um fenómeno social japonês que foi apelidado de “hikikomori”, palavra que se refere a jovens que, devido a uma depressão, se resolvem trancar durante vários anos nos seus quartos. Anexada à reportagem, seguia-se uma outra sobre as adolescentes do Japão. Nela, via-se como as raparigas nipónicas, extremamente mimadas, esbanjam todo o dinheiro que recebem, quer como mesada, quer dos seus trabalhos em part-time, em roupas caras, com as quais vivem obcecadas, sem aspirarem a nada mais alto do que serem donas-de-casa, com um marido rico que as sustente. É a geração do “Pedi, e ser-vos-á dado.”, em que os pais acedem a todos os desejos das filhas.

Seja-me permitido aqui reproduzir as palavras, citadas na reportagem, de Takahiro Hadaki, director duma revista juvenil feminina, procurando explicações para tal exacerbado consumismo: «A política não está bem, nem a economia. A população está a envelhecer, e eles
[os jovens] sabem que lhes cabe sustentar os mais velhos. Mas acham que não vão conseguir ter dinheiro, mesmo que trabalhem. Estão a desistir de ter esperança no futuro».


Fora de contexto, dir-se-ia que esta frase se refere ao panorama português. Entre os jovens – falo por aqueles que me são próximos e mesmo por mim – esse desalento quanto ao futuro assombra-os: o desemprego é a nova espada de Dâmocles. Em Humanidades, então, o desespero é generalizado. Cada vez mais colegas se inclinam para a hipótese de seguir Direito, o último curso com saída dentro do nosso cada vez mais decadente agrupamento. Os poucos que permanecem fiéis aos seus projectos originais (como Psicologia, História ou Filosofia), ano a ano, tomam maior consciência do suicídio profissional que professam. A título de exemplo, soube recentemente que um archeiro da Universidade de Coimbra é licenciado em Psicologia.

Assim, não é de estranhar que, entre os que obtêm melhores resultados, seja comum o desejo de emigrar. Também não é de admirar que o sistema de cunhas, parecendo ser o único meio de assegurar um emprego, ainda que mal pago, prevaleça: lugares bem remunerados, não os há suficientes para a juventude. Porque administradores da Caixa Geral de Depósitos há só nove... E para que tenhamos as indemnizações, primeiro temos de lá estar! Não que seja complicado: as quotas do partido só têm de estar em dia. Não posso deixar de apontar, a propósito, que, entre os meus conhecidos, é significativo o número de jovens que se têm vindo a registar em juventudes partidárias. Sinal dos tempos? Não obstante esta nova vaga, os partidos insistem em usar os seus velhos vultos, alguns na casa dos oitenta. De facto, como acima dizia Hadaki, «A população está a envelhecer...».

Perante isto, não será normal o descrédito em que caiu a política nacional? Esta está num ponto degradante e promíscuo, em que se misturam interesses do futebol e dos partidos, com seus boys e demagogias autárquicas. Não se entende – e perdoe-se-me o lugar-comum – que haja dinheiro para estádios, mas não para hospitais; haja dinheiro para a Ota e TGV, mas os bombeiros – os últimos heróis da nossa era – não tenham equipamento adequado nem meios suficientes para combater os fogos, que tornaram o ar nas nossas cidades literalmente irrespirável. Com auto-estima, justificadamente, tão em baixo, qualquer dia, é o país que faz “hikikomori”... o corvo

21 July 2005

A Terra, os americanos, nós e eu

O encontro dos G8, que vai ter lugar em Gleneagles, Escócia, aproxima-se. O Reino Unido já estabeleceu quais as prioridades desta cimeira a que preside. Por um lado, o combate à pobreza, que continua a matar 30.000 crianças diariamente, números que justificam acções como o Live8 – oito concertos simultâneos em cidades como Berlim, Londres ou Filadélfia no dia 2 de Julho; palcos onde actuarão artistas de renome pretendendo convocar o maior número de espectadores para assim pressionar os G8 a tomarem medidas drásticas de apoio a África. O segundo grande tema que Tony Blair pretende tratar nesta cimeira é o clima, cujas dramáticas alterações já foram classificadas por ele de “provavelmente, o desafio mais importante que enfrentamos enquanto comunidade global a longo prazo.” Cerca de metade da poluição mundial é produzida por estes países, nomeadamente a América que mantém uma atitude céptica irracional. Esta descrença americana obrigou a que no projecto de declaração final da reunião dos G8, datado de 14 de Junho – como o Público indicava na semana anterior – frases como “o nosso mundo está a aquecer” e “sabemos que o aumento é devido em grande parte à actividade humana” se encontrem entre parêntesis, traduzindo uma discordância dentre os G8.

Mais revoltante ainda é a recente notícia do New York Times de que os relatórios científicos sobre esta temática foram consecutivamente manipulados por um funcionário da Casa Branca que antigamente liderava a luta das empresas petrolíferas contra os limites de emissão de gases. Outros funcionários da Casa Branca prontificaram-se a justificar tal actuação, chegando a afirmar que as alterações feitas aos relatórios científicos eram uma parte natural da revisão efectuada a todos os documentos de igual assunto. Não é descabido lembrar ainda a proibição da administração Bush, aquando da estreia do filme O Dia Depois de Amanhã, de que os cientistas da NASA se pronunciassem sobre a película, que era uma crítica à política anti-ambientalista da sua presidência e que versava sobre os cataclismos que o aquecimento global pode provocar.

Entretanto, enquanto a política de silêncio e inoperância prossegue pomposa, o mundo definha a passos largos. No início deste ano foi divulgado, por parte do Grupo de Trabalho Internacional sobre Mudança do Clima, um relatório onde se afirma que a humanidade tem aproximadamente dez anos para poder reduzir muito substancialmente as emissões de gases poluentes, caso contrário, o risco para ecossistemas e sociedades aumentará significativamente, envolvendo as consequências perdas agrícolas severas e forte escassez de água. O mundo dispõe duma década até atingir o chamado ponto de não retorno. Os estudos científicos mais apocalípticos indicam 2050 como a data em que a vida terrena se terá tornado insustentável.

Também Portugal não está isento. A seca actualmente vivida que tem levado a racionamentos de água como aquele que agora parece também vir a ser aplicado no nosso concelho são consequências directas da instabilidade climática. Um relatório da Agência Europeia para o Ambiente veio revelar, este mês, que fomos o quarto país europeu com concentrações de ozono mais elevadas no Verão de 2004.

Existe um site que propõe que todos saltemos ao mesmo tempo para desviar o planeta do seu eixo, o que supostamente pararia o aquecimento, através do aumento dos dias e da homogeneização do clima. Se nada for feito pelos G8, mais me vale inscrever nessa patética, mas desesperada acção: saltar para salvar o planeta... o corvo