Vem a referência cinematográfica a propósito de uma breve notícia, já do mês passado. Assuntos mais urgentes, contudo, adiaram o seu tratamento aqui neste espaço crocitado. Segundo o Público, então, uma equipa da Universidade do Colorado terá concluído, em estudo publicado na Science, que “as pessoas conseguem suprimir memórias específicas num dado momento, através de um treino repetitivo”. Se o jornalista sublinhava as eventuais utilizações positivas da descoberta – por exemplo, para as vítimas de stress pós-traumático –, menos optimista foi a minha reacção, que na novidade descobria um potencial perigo.
Já o brilhante Borges, na sua História da Eternidade, relembrava: “Sabe-se que a identidade pessoal reside na memória e que a anulação desta faculdade implica a idiotia”. Para Platão, tudo era, de resto, reminiscência. A nossa identidade reside, efectivamente, no nosso passado, o operário do nosso presente. Apagar memórias, por desagradáveis que sejam, é um exercício de amnésia, de desfiguração do eu. Freud demonstrou como acontecimentos desagradáveis, recalcados na ânsia de esquecer, acabam por influenciar o comportamento. O psicanalista esforçava-se, nas suas palavras, por substituir o id pelo ego, trazer o inconsciente ao consciente: só deste modo o doente compreenderia as causas profundas dos seus medos e desejos. Ousa-se agora o contrário: recalcar essas memórias ao extremo de apagá-las.
Se, de facto, o que distingue duas pessoas é, essencialmente, as suas memórias, então, alguém a quem se elimine uma lembrança não é, por certo, depois da operação, a mesma pessoa que era antes: passa a ser alguém diferente, digno mesmo de outro nome. Há, nisto tudo, também um sinal da progressiva e maior assimilação do homem à máquina: tal como num computador, eliminam-se “ficheiros” do cérebro humano. Receio passarmos a ter semipessoas, preenchidas de lacunas; pessoas felizes somente porque esquecem, como os tristes lotófagos da ilha onde Ulisses desembarcou no seu périplo errante, narrado na Odisseia.
Este é, de resto, um tempo que valoriza o esquecimento e a tudo dá prazo de validade, atitude perigosa, pois o passado é a chave para perceber o presente e prevenir o futuro. A memória é um dos cinco pontos cardeais da essência da Europa, na opinião de George Steiner, que a define como lieu de la mémoire no seu importante ensaio A Ideia de Europa. Pude comprová-lo na minha ida a Paris, em inícios do mês: as ruas enchiam-se de lápides relembrando quantos tinham tombado em defesa da cidade na Segunda Guerra Mundial. Deparei-me mesmo com uma inscrição dessas que celebrava “um francês”, caído no sítio onde se erguia a placa: nem sequer lhe sabiam o nome, mas persistiam em relembrá-lo, todavia.
Esta contracorrente, insistindo em recordar num tempo de esquecer, anima-me. Para concluir, recorro a essa linguagem verdadeira que desaprendemos com o tempo: a mitologia. Um dos dois corvos de Odin, deus primeiro do panteão nórdico, chamava-se Memória. O par de pássaros era o símbolo da sua omnisciência. Julgo a alegoria decifrada.
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