03 April 2006

Caricato(ura), não?

«Medo é remorso antecipado», confessava-se na peça de José Rodrigues Miguéis, O Passageiro do Expresso, que a Oficina de Teatro do Cértoma já representou entre nós. E o medo de Kåre Bluitgen parecia conter em si já o remorso pelo acto, como que, numa omnisciência estranha, previsse o que se seguiria. Embora poucos o saibam, este é o homem que espoletou toda a controvérsia dos cartoons, ainda que indirectamente. Autor do livro O Corão e a Vida do Profeta Maomé, o escritor teve grandes dificuldades em encontrar ilustradores para a sua obra, publicada este ano, por medo dos desenhadores de represálias de extremistas islâmicos. Foi em sabendo do caso que o director do obscuro jornal dinamarquês resolveu propor a alguns caricaturistas que representassem o Profeta – causando a confusão.
Compreenda-se que, em primeira análise, o que irritou a comunidade muçulmana foi a simples representação de Maomé, que é interdita segundo o Corão. Não podemos limitar a liberdade, num estado laico, a preceitos religiosos: existem hindus em Portugal e, tanto quanto saiba, ainda não houve qualquer petição para interditar o abate de vacas. Em segundo lugar, circularam pelos países árabes caricaturas de cariz sexual explícito, envolvendo o Profeta, que não foram publicadas em qualquer jornal ocidental. Houve, evidentemente, um aproveitamento do caso por parte das comunidades islâmicas. De facto, toda esta questão foi devidamente empolada pelos líderes religiosos dinamarqueses que, não obtendo a reacção tempestuosa que esperavam, elaboraram um dossier de 43 páginas que fizeram circular pelo mundo árabe, procurando assim espicaçar os seus irmãos de fé, para conseguirem a solidariedade que sentiam faltar-lhes. Tal atitude representa uma tentativa descarada de inflamar os ânimos. Registou-se um óbvio aproveitamento político da situação – que está longe de ser meramente religiosa.
Finda a Inquisição cristã, eis que se ergue, violentamente, o Santo Ofício de Alá. Os autos-de-fé não queimam pessoas, mas incendeiam embaixadas – e as fatwas já estão lançadas. Já em 2004, o filme de Theo van Gogh, Submissão, uma curta-metragem de dez minutos sobre a violência nas sociedades islâmicas contra as mulheres, acabou por ser a sentença de morte do realizador. O mesmo recurso à força agora é, para todos os efeitos, e independentemente da opinião que se possa ter sobre a polémica, uma transgressão muito mais gravosa das regras do Estado democrático do que a publicação dos cartoons. Não teria o cartunista que desenhou Maomé com um turbante-bomba, até um certo ponto, dentro dos limites de uma certa facção dos muçulmanos, acertado argutamente na sátira?
Reservando-nos ao direito de, moralmente, concordar ou discordar das caricaturas, não podemos, porém, unilateralmente, proibi-las. Esta caso está a abrir um precedente na opinião pública – tendencialmente favorável aos muçulmanos – que poderá ser hábil e erradamente manipulado. O direito de se exprimir – e com humor, como convém ao cartunista – não pode, não deve, ser interditado. De tal forma que, na mesma Dinamarca, foram publicados outras doze caricaturas satirizando o primeiro-ministro e a o tratamento dado por este ao caso. A partir do momento em que abrimos uma excepção para as religiões (e quantas vezes não foram satirizados cristãos e judeus?), temos de passar a considerar outros grupos como não passíveis de o serem, como ideologias políticas ou correntes filosóficas. E eis que, em nome do convívio saudável entre todos, a civilização da liberdade deixa-a cair, conquistada por uma falsa paz e pelo medo. Caricato(ura), não?

Publicado a 15 de Fevereiro de 2006

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