03 April 2006

Apelo Público

Três acontecimentos distintos precederam esta crónica. Nas últimas semanas antes desta pausa lectiva, alguns colegas meus dos agrupamentos de economia e artes tiveram de fazer um teste para aplicarem os seus conhecimentos gramaticais recentemente adquiridos: assim o obriga a inclusão de tal matéria – não leccionada em anos anteriores – no exame, forçando professores e alunos a verem num ano o que deviam ter visto em três. Se isto fora bastante para suspirarmos de requiem pela organização do país, acontece, porém, que algo mais de grave escondia o estudo dos meus amigos. Olhando para as suas fichas de trabalho, constatei a panóplia de nomes e designações gramaticais várias com que jamais me havia cruzado na minha carreira estudantil. Pedi-lhes que mo explicassem, o que prontamente fizeram, revelando-me que aqueles termos tinham sido difundidos por um qualquer iluminado do Ministério da Educação. Era o disparate cumprido e encarnado – para não mencionar o disparate intrínseco que é aprender gramática no secundário: de todo despropositado, se a Literatura é tão mais apaixonante.

Outro dia, numa amena conversa com outro meu conhecido, ele rejubilava, porque tirara boa nota num teste de português. Perguntei pela matéria da prova e ele respondeu-me: “discurso político”. Fiquei atarantado, sem compreender: não era ele do 11º de Humanidades? Nunca eu, em igual agrupamento, aprendera tal coisa. Esclareceu-me que era uma matéria dada agora em conjunto com o Sermão aos Peixes de P.e António Vieira, uma vez que os programas de português A e B haviam sido fundidos. Mas se era para fundir, que o programa de B se elevasse ao nível do A, nunca este se baixasse ao outro! Inquiri mais, e descobri – quão pouco informado andava! – que Amor de Perdição ou Folhas Caídas deixaram de constar das obras de estudo. Obviamente, algo de podre exalava cronicamente do reino do ensino do Português...

A minha imaginação é que não podia conceber barbárie como a que finalmente se revelou em todo o seu esplendor, há uma semana, num artigo de Maria do Carmo Vieira, aparecido no Público. Aí, denunciam-se Vpps, adjectivos relacionais, nomes epicenos, nomes agentivos. Se o leitor não percebeu, não se preocupe: eu também não. Mas estes são os palavrões inventados por um qualquer linguista que, doravante, devem ser ensinados no básico para classificar aquilo que antes eram adjectivos e substantivos.

Tenho vindo a denunciar sistematicamente nesta coluna atentados à inteligência dos alunos. Se não me engano (era tão bom que me enganasse!), daqui a pouco tempo, de novo me encontrarão vituperando sobre o mesmo assunto. Porém, o que hoje aqui apresento é, de tal forma, visceralmente repugnante ao trucidar a nossa pátria – que a “minha pátria é a língua portuguesa”, como dizia Pessoa – que exige que algo se faça contra tal. Lanço, pois, aqui o meu apelo público. Apelo para ti, aluno, não só porque isto é um claro atentado à tua dignidade e uma tentativa burocratizada de te estupidificar, mas porque desnecessariamente te complicam o que é simples; apelo para ti, professor, a quem esta reforma linguística obriga a que assistas pateticamente a acções de formação e que sabes, lucidamente, o quão errada ela é; apelo para ti, encarregado de educação, porque estão, obviamente, a manipular o teu educando, castrando-lhe a cultura; apelo para ti, cidadão, porque, com um ensino assim, permites que se fabriquem patetas que governarão o país em que vives. Apelo, no fundo, para todos os homens de boa vontade – e, mais que isso, de bom senso, que é o que falta abundantemente à Ministra.

Publicado a 1 de Março de 2006

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