22 December 2006

Artes Plásticas


Saiu recentemente em DVD a terceira temporada de Nip/Tuck, uma série americana de grande sucesso centrada na vida de dois cirurgiões plásticos. A série, polémica, aborda de forma inovadora a actividade destes profissionais explorando os dúbios limites éticos da sua profissão. Paralelamente, estreou na semana passada o novo reality show do canal quatro: Doutor, Preciso de Ajuda! Estou convencido que é a estação quem precisa de ajuda e dum facelift urgente.

A persistência e a insistência no modelo dos reality shows, progressivamente mais aberrantes e espectaculares que os anteriores, é algo que, mau grado a válida explicação sociológica, me começa a confundir. Certo: há a curiosidade natural, o voyerismo quase hitchcockiano, uma longa cultura de imprensa cor-de-rosa que assenta no mesmo sentimento. Também é verdade que nem todos os reality shows gozaram da mesma fama, alguns notabilizando-se pela negativa. Porém, que justifica que, ciclicamente, reapareçam? Raramente se fala da possível relação do fenómeno com a incapacidade criativa do espectador. O telespectador médio perdeu o sonho depois de ter sido criança e ter acreditado em duendes. Porque não é capaz de um exercício de ficcionalidade, porque toda a ficção surge ante ele como delírio especulativo, ele busca então os programas ditos reais ou os que reflictam prtensamente o seu real (telenovelas). Nietzsche pôs a tragédia grega vítima esganada às mãos de fenómeno análogo.

Doutor,... espelha a necessidade da aparência. O programa oferece aos seus participantes uma cirurgia plástica, transmitida publicamente: no fundo, cultiva-se o gosto que levou à morte, na semana passada, da jovem modelo brasileira Ana Carolina. Uma das primeiras concorrentes – relatava o Público – “47 anos, motard nos tempos livres, já é avó, mas acha as conversas das pessoas da sua idade uma chatice”. Aqui se mostra a hipocrisia profunda da sociedade: a candidata, ao submeter-se a uma operação de rejuvenescimento, vai-se disfarçar, com patrocínios. E, numa terra de máscaras, espantamo-nos com as declarações do primeiro-ministro húngaro de que é necessário mentir povo: somos cães da mesma raça.

Mas notai!: “No nosso programa há muita informação médica, há conversas com anestesistas, com nutricionistas, que explicam os passos tomados”, reafirma Miguel Stanley, ideólogo do projecto. Não se trata de qualquer ficção inconsistente: todos os procedimentos são cientificamente explicados, o que representa evidentemente um contributo impagável de educação pública ou até “uma forma de trabalho social”! Ai, que riso amargo!: sim, é trabalho social, porque trabalho para o social, para a aparência, para o inglês, que é português, ver.

Eduardo Moniz vem em defesa do programa explicando: “Não poderíamos passar este programa antes das 23h. Sim, porque nós cumprimos as regras!”. Por isso, pelo respeito pelas regras, é que 25% do emitido na televisão em Setembro foi publicidade e a TVI domina no valor gasto. E há regras, caro Moniz, que não se acham escritas em Diário da República algum... Essas são conhecidas pelo nome de ética. Mas “quem tem ética passa fome”. A TVI é um exercício de kitsch – mas isso é só um sinal de esterilidade. Porque, admire-se o recém-nascido!, também este Doutor,... não é mais que uma variante de um já testado estereótipo. De produtos artificiais como os D’ZRT (que precisaram de se legitimar chamando ao segundo álbum Original), passando por Inspector Max (cujo único excerto que vi, num restaurante, me convenceu da inabilidade primária do director de fotografia) até Doutor,..., a TVI chapinha de cópia em cópia, até criar pastiches sem consciência da sua essência ridícula.

Na América, há Nip/Tuck – em Portugal, Doutor,...: cada um tem o que merece.

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