22 December 2006

O Processo


Quando o bicho espevitou o olho, permaneci adormecido – e guardei silêncio. Sabia em mim muita coisa e deixei que o mundo seguisse o seu curso natural. Há um prazer hediondamente cínico em rir por último: mas até o cinismo era entre os gregos uma escola de filosofia! Acolhi, pois, como um déspota a notícia dos jornais que ordenava que o Ministério da Educação repetisse apressadamente o exame de Química a uma aluna de Coimbra, cidade do conhecimento!, e que, a obter média igual ou superior à de acesso em Medicina, se abrisse nova vaga na vetusta Faculdade local. Ah!, que gozo, ah!, que espanto!

Recordo, vívido!, uma altercação na TSF, no dia em que me fui candidatar à Universidade, e o comentário de um ouvinte que afirmava que se geraria o caos se todos os exames fossem repetidos. E eu disse, deus feito: «Faça-se o Caos!» e o Caos fez-se por tribunal. Faço figas secretas agora pela desconhecida que se sentará numa sala vigiada por dois docentes e responderá certas às perguntas. E, nessa altura, se ainda houvesse honra, a Ministra demitia-se.

De um lado, pois, se erguem prometeicos exames prometedores; do outro, esgaravatam os cientistas da 5 de Outubro as suas pedagogias alucinadas e declaram eurekas!: Filosofia não terá mais exames nacionais. [Só há, coisa de somenos, cerca de 300 cursos que aceitam Filosofia como prova de ingresso.] A Ministra e a sua equipa são reencarnações, em linha directa, sem interrupção, dos juizes que condenaram Sócrates no Areópago: estabeleço definitiva a tese da metempsicose! A Filosofia é arma do pensamento: e o Governo não quer armas, e o Governo não quer pensamento: e o Governo não quer revolução! E o Governo quer poder.

O silogismo é breve: ou a Ministra é de uma ignorância tal que não consegue perceber a fundamentalidade da Filosofia e então, pobre!, falando como Cristo, perdoemos-lhe, porque não sabe o que faz; ou a Ministra é suficientemente lúcida para entender aquilo que está em jogo e, então, é claro a intenção propositada e maléfica nisto tudo. Não há inocência na política: e todos têm as mãos cheias do sangue de Lady Macbeth. Repito: está em curso um processo de estupidificação.

E não nos deixemos enganar pelas mentiras! Ontem, como hoje, os “cérebros” quando não fogem, são vandalizados. Prova disso é a recentíssima demonstração dos bolseiros da área das Ciências frente ao Parlamento: alheados do sistema de Segurança Social, estes jovens – tantos deles, demasiado deles! – vivem em absoluta precariedade, não tendo assegurada reforma ou não podendo, sem grande luta, conseguir um pequeno crédito numa instituição bancária. Não me cabe aqui discutir que outro sistema de bolsas pode ser reinventado, cabe-me assegurar que seja respeitada a dignidade destes manifestantes – e não que sejam achincalhadas pelo Estado.

A nossa educação é kafkiana, isto é, não tem sentido nenhum. Os velhos gregos primavam por que as suas crianças desde cedo fossem cultivadas na música, na língua, na ciência e na filosofia. A primeira, ninguém sequer se levanta para discutir a sua inclusão obrigatória a substituir ridicularidades como Área de Projecto; a língua, com a nova terminologia, pode ter ficado mais cientificamente correcta, mas aparece hidra às crianças que se têm de fazer Hércules para a vencer; quanto à ciência e filosofia, já falámos. Estamos cada vez mais distantes do tempo absoluto de Sophia, esse tempo que aprenderíamos do exemplo dos helenos. No último Jornal de Artes & Letras, sugeria-se um referendo aos currículos: estou plenamente de acordo. Mais, faça-se um referendo à Ministra e sua equipa! Mais ainda, faça-se um referendo à interrupção voluntária do Governo!

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