Havia pressa minha, mas havia a contrapor, do outro lado, urgência. Parei, escutei amenamente (mau grado o frio que se faz sentir nestes últimos dias que são também os dias últimos), e ganhei felicidade em assinar o papel: tinha-me inscrito na Amnistia Internacional, em mais uma das suas campanhas de rua. No próximo domingo celebram-se 58 anos sobre a adopção pela Assembleia Geral das Nações Unidas da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Contudo, a Amnistia ainda existe – porque, infelicidade!, continua a ter trabalho.
O caso de Alexander Litvinenko persiste em no-lo relembrar. O antigo tenente-coronel dos serviços secretos russos morreu a 23 de Novembro, em Londres, onde residia, exilado, na sequência de um envenenamento, por polónio-210, no início do mês passado. Dissidente, da sua boca e da sua pena saíam fortes denúncias do maquiavelismo das cúpulas políticas russas. Alguns apelidavam as suas teses de ‘lunáticas’; mais recentemente, concentrava-se no caso da jornalista russa Ana Politkovskaia, fortíssima crítica de Putin, também ela assassinada, em princípios de Outubro, com quatro tiros no elevador de sua casa.
Não desejo repetir o que os media repetiram. Mas, vendo aquela fotografia de Litvinenko, já na fase terminal, no hospital, a minha mente teimava em descarrilar para as memórias que guardava de Yushchenko, o malogrado presidente da Ucrânia, de rosto desfigurado, vítima também ele de envenenamento, por recusar o protectorado subjugador da Rússia e olhar alto para a Europa à esquerda. Ninguém pode afirmar nada, nada pode acusar ninguém: a política tem sempre a subtileza de um pano de veludo como luva de uma mão de ferro – e ficamos restritos a enunciar factos, quando todos, nos cantos, anunciam, porque sabem, os criminosos. De resto, já não há informação independente na Rússia para dizer a verdade mesmo que alguém a desconhecesse: só na última década, 261 jornalistas russos foram mortos.
Paralelamente, no mesmo dia em que uma dessas mártires, Ana Politkovskaia, foi assassinada, Putin celebrou os seus 54 anos. José Milhazes, jornalista conhecido de alguns, que mantém um dos mais interessantes sítios da blogosfera (http://blogs.publico.pt/darussia), dava conta, in loco, das celebrações. Destacava, com ilustrações, o concurso lançado a crianças de todo o país, as quais eram convidadas a desenharem o presidente: o vencedor receberia um cachorro, irmão da cadela de Putin. O segundo premiado levaria um quimono de judo, desporto favorito do presidente, e o terceiro um manual de alemão pelo qual Putin, enquanto agente da KGB, estudara. Em meados do século XX, isto seria reconhecido como culto da personalidade.
De facto, é viva a ligação entre o chefe e o seu povo: Putin dá entrevistas, respondendo a perguntas dos internautas sobre a sua vida pessoal, compõem-se canções apresentando o presidente como paradigma de masculinidade, e o povo ama-o tanto que, na referida celebração do seu aniversário, na Tchetchénia, as autoridades organizaram uma reunião de 60 000 pessoas, pedindo que Putin altere a Constituição para que se possa recanditar uma terceira vez. Incrível!
Ao mesmo tempo, esse «povo», de acordo com a sondagem de uma rádio moscovita, concorda que o assassinato de Litvinenko foi “a realização da lei russa de combate ao terrorismo no estrangeiro”. Durão Barroso comentou, no novo cargo: «Temos um problema com a Rússia. Na verdade, vários problemas. Demasiadas pessoas forma mortas e não sabemos quem as matou.» As crianças, lá fora, no recreio, trauteiam: «O rato roeu a rolha da garrafa...».
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