
Dogville era uma parábola, mas a realidade encarrega-se de fazer descer as abstracções ao quotidiano, e a especulação filosófica ganha, subitamente, o vestido de dilema político com a situação catastrófica em que o ciclone Nargis amortalhou a Birmânia. Era perturbador interrogarmo-nos, como já o fizemos aqui aquando do tsunami do sudoeste asiático num exercício de teodiceia, sobre o absurdo porquê disto, a razão metafísica de tamanho holocausto: quase metade das vítimas, até agora, são crianças (“Mas as crianças, Senhor,/Porque lhes dais tanta dor?”). Outra catástrofe, porém, se abate agora sobre o país: a tirânica Junta Militar, que apodrece há décadas no poder – a mesma, lembram-se?, que no final do ano passado esmagou a sublevação dos monges budistas, a efémera revolução de açafrão –, está a impedir a entrada no país da ajuda humanitária da comunidade internacional. Há um milhão e meio de sobreviventes que, sem nada para comer e sem cuidados médicos, correm sérios riscos de morrer. Apesar deste cenário, a Junta recusa-se a atender os telefonemas de Ban Ki-Moon, secretário-geral da ONU.
O autismo do regime birmanês imola, a cada dia, novas vítimas. Há navios da União Europeia carregados de alimentos às portas da Birmânia – impossibilitados de prestar ajuda. A questão de Dogville assume agora, pois, uma formulação muito material: deve a ONU obrigar a Junta, ainda que pela força, a aceitar o auxílio da comunidade internacional? Teoricamente, sim. Os países-membros das Nações Unidas consagraram em 2005 a “responsabilidade de proteger” (R2P, abreviam os ingleses), isto é, comprometeram-se a intervir – militarmente, se for preciso – se um Estado, dalguma forma, se revelasse incapaz da sua função primeira: proteger o seu povo. A ideia do R2P é prevenir situações como o genocídio do Ruanda, a que o mundo assistiu calmamente, entre dois cigarros. Como, porém, já alguns vieram argumentar – nomeadamente Bernard Kouchner, ministro francês dos Negócios Estrangeiros e co-fundador dos Médicos Sem Fronteiras –, a presente situação da Birmânia poderia bem justificar a invocação do R2P. A União Europeia e a ONU, contudo, não parecem muito amigas dessa sugestão.
E aqui eis-nos de novo na questão moral fundamental: é justo que se derrube, pela violência, um regime violento para salvar o seu povo da morte? No fundo: os fins justificam os meios? Ou continuaremos a trilhar a muito provavelmente inglória estrada das negociações? Qual o maior crime moral: transvestir os bons de maus, incorrendo em incoerência, ou, à custa de um pacifismo firme, compactuar com um pequeno genocídio? Reconheço a frustração que, para o leitor, deve ser esta crónica: não apresento, de facto, qualquer solução. Muito humildemente, logo no início, reconheci não ter a chave para essa pergunta que me dilacera desde há tanto, águia que me devora o fígado de prometeu. O tempo, porém, não perdoa: milhares de bocas esperam a resposta que lhes daremos. Quem ousa uma decisão?
O autismo do regime birmanês imola, a cada dia, novas vítimas. Há navios da União Europeia carregados de alimentos às portas da Birmânia – impossibilitados de prestar ajuda. A questão de Dogville assume agora, pois, uma formulação muito material: deve a ONU obrigar a Junta, ainda que pela força, a aceitar o auxílio da comunidade internacional? Teoricamente, sim. Os países-membros das Nações Unidas consagraram em 2005 a “responsabilidade de proteger” (R2P, abreviam os ingleses), isto é, comprometeram-se a intervir – militarmente, se for preciso – se um Estado, dalguma forma, se revelasse incapaz da sua função primeira: proteger o seu povo. A ideia do R2P é prevenir situações como o genocídio do Ruanda, a que o mundo assistiu calmamente, entre dois cigarros. Como, porém, já alguns vieram argumentar – nomeadamente Bernard Kouchner, ministro francês dos Negócios Estrangeiros e co-fundador dos Médicos Sem Fronteiras –, a presente situação da Birmânia poderia bem justificar a invocação do R2P. A União Europeia e a ONU, contudo, não parecem muito amigas dessa sugestão.
E aqui eis-nos de novo na questão moral fundamental: é justo que se derrube, pela violência, um regime violento para salvar o seu povo da morte? No fundo: os fins justificam os meios? Ou continuaremos a trilhar a muito provavelmente inglória estrada das negociações? Qual o maior crime moral: transvestir os bons de maus, incorrendo em incoerência, ou, à custa de um pacifismo firme, compactuar com um pequeno genocídio? Reconheço a frustração que, para o leitor, deve ser esta crónica: não apresento, de facto, qualquer solução. Muito humildemente, logo no início, reconheci não ter a chave para essa pergunta que me dilacera desde há tanto, águia que me devora o fígado de prometeu. O tempo, porém, não perdoa: milhares de bocas esperam a resposta que lhes daremos. Quem ousa uma decisão?
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