A falar é que a gente se entende, diz o velho provérbio; contudo, modestos, é a escrever, por ora, que nos queremos entender. A entrada em vigor do acordo ortográfico parece, de facto, inevitável, e a coisa mereceu mesmo honras de editorial aqui, no Jornal da Mealhada. Meio povo anda a discutir o assunto, e todos ajuízam e se apaixonam. Como escritor e poeta-em-crise, o caso interessa-me de sobremaneira: falamos da matéria-prima da profissão, as palavras. Pesei pois os dois pratos da balança, e como uma nossa senhora disse que sim.
Choca a muitos que a língua seja regulada por decreto, mas por decreto ela se fixou: foi D. Dinis, “o plantador de naus a haver”, que obrigou a que os documentos oficiais, antes redigidos em latim, o fossem doravante na criança língua lusa. Por lei se sacudiu o ph e sózinho ficou sozinho sem acento companheiro. Outros refilam por um pequeno conselho de sábios e políticos pretender impor, do alto, a forma como a língua de milhões é escrita. Percamos a inocência: o português é, já hoje, determinado por um restrito e severo tribunal de linguistas, constantemente empenhado em enfiar num corpete essa mulher, a língua, que já quer andar de biquini. Dizem que empregue não pode ser empregado, mesmo se o novo particípio passado já se tornou corrente há muito – dizem isto, e muito mais. Pelo contrário, o acordo conserva a variedade lexical, procurando tão somente a harmonização ortográfica entre as muitas variantes.
Protestam os detractores, afirmando que essa unificação não sucederá, visto que, para certas palavras, guardar-se-á a dupla grafia, como facto e fato, que quer Portugal, quer Brasil, poderão continuar a escrever à sua maneira, sem que, contudo, nenhuma das ortografias seja censurada, qualquer que seja o lado do Atlântico do escriba. Argumento certo, mas falacioso: não encontramos tal variedade dentro mesmo do nosso português europeu? Veja-se a alternância entre ou e oi, em vocábulos como touro/toiro ou louça/loiça. Há aqueles a quem faz espécie a queda das consoantes mudas, mas Batista, assim mesmo, sem p, encontra-se já como apelido.
Argumentam alguns que todas estas razões não apagam a evidência incómoda: mesmo com acordo, o português do Brasil e de Portugal continuarão a ser fundamentalmente distintos. O objectivo do acordo, porém, nunca foi esconder essa diferença entre os dois idiomas, como fora ela coisa feia e vergonhosa, mas tão somente, com humildade, a todos dar a mesma escrita das palavras, na impossibilidade de dar mais. Ónibus pode nunca vir a ser um autocarro, mas ao menos não será, de um lado do Atlântico, ônibus, e do outro, ónibus. Uns, indignados, vão mais longe, afirmando que no momento em que o nosso país ceder ao Brasil (como se o Brasil, noutras coisas, também não cedesse a nós – e acreditem, há gente tristíssima por ver morrer o trema), será a norma brasileira a usada para fins internacionais. Só uma mentalidade colonialista pode temer essa mudança de paradigma no português; só um espírito cego pode negar que essa operação está já em curso e se concretizará, com acordo ou não. À medida que o Brasil cresce, a nível económico e demográfico, o português tal e qual como é praticado nas terras de Vera Cruz vai-se impondo como a norma, substituindo a variante europeia. De resto, enquanto língua internacional em congressos e afins, o português só subsiste por causa do Brasil.
E África nisto? Já alguém reparou que os PALOP são sinceramente favoráveis ao acordo? Escritores como Agualusa e Mia Couto, de Angola e Moçambique, respectivamente, já manifestaram o seu apoio à iniciativa. Está, de facto, na altura da lusofonia não ser mais um palavrão político para se materializar numa realidade. Este acordo, no respeito pelas diferenças, unifica-as, contudo, numa base comum: a escrita, expressão mais elevada de uma mesma língua.
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