Hugo Pratt, um dos autores maiores do século XX, criador do imortal Corto Maltese, tendo sido, uma vez, criticado pela aparente inutilidade da sua profissão, confessou em resposta o seu desejo de ser inútil: a expressão dá mesmo título a um magnífico livro de entrevistas com o desenhador. Não raras vezes, quando me interrogam sobre o meu curso, perante a pergunta inevitável “para que é que isso serve?” (posta, por vezes, na variante, mais atenta ao futuro e ao emprego, “para que é que isso dá?”), gostava de poder responder do mesmo modo, evocando o meu capricho e gosto pela inutilidade, como Pratt.
Vivemos no que eu costumo definir como uma sociedade romana, eminentemente prática e pragmática. Se dos gregos se dizia que, para eles, tudo quanto era útil tinha de ser belo, dos latinos comentavam as más línguas, acertadas, o oposto: tudo quanto era belo tinha de ser útil. Não é sem razão que a economia triunfou sobre a política, subjugando-a: onde a política era, na origem, o combate pela utopia, um discurso sobre o que deve ser, a economia é, hoje, o manuseamento amargo do real, um discurso sobre o que pode ser, quando não mero discurso sobre o que é. Esta obsessão pelo fazível dita, por exemplo, entre as ciências, o triunfo da tecnologia. Hoje, a aferição da verdade assenta no proveito último que as coisas nos podem dar.
Muitas canetas e tinteiros se sangraram em redacções apaixonadas a propósito do recente caso de violência escolar no Porto, que o YouTube trouxe para a praça pública. Poucos, contudo, parece-me, reflectiram sobre por que razão não estava a aluna a fazer o que, naquele contexto, dela se espera: estar atenta à aula (alguns, pelo contrário, defendiam mesmo o direito da estudante a estar desatenta, se assim lhe aprouvesse, conquanto não perturbasse os demais). Pouco me importa aqui falar da falta de respeito demonstrada (sobre isso, outros, mais e melhor que eu, escreveram), mas sim sobre o profundo desinteresse que o manuseamento do telemóvel em contexto lectivo explicita. Espantarei alguns, creio.
O episódio da vergonha sucedeu numa aula de francês. Mas qual é, de facto, o interesse em estudar uma língua démodé, como o francês, especialmente hoje, num mundo em que todos compreendem o inglês? Entendo a indiferença da aluna perante a lição da professora. Mais: qual a vantagem de conhecer as bases da trigonometria, ou os maiores exportadores de cereais a nível mundial, ou de ler Os Lusíadas? De que serve saber o quotidiano dos camponeses e dos nobres na Idade Média, ou todos os detalhes do funcionamento do intestino delgado, ou a fórmula exacta para calcular a gravidade? Tudo isto são matérias que se estudam até ao nono ano. Sejamos sinceros: metade destas coisas, nenhum de nós as recorda já, e, a bem dizer, reconheçamos que mentimos quando procuramos convencer-nos da sua suma importância. Na sociedade que fabricámos, bem mais do que de conhecimentos, fala-se hoje de competências. Daí a aparição nos currículos escolares de mirabolantes disciplinas como Área de Projecto.
Esta é uma sociedade que desvalorizou o conhecimento, porquanto a maioria deste não é, de facto, útil: é meramente um exercício daquilo que nos faz mais humanos – daí ser tão precioso. É preciso inculcar nas crianças, desde a primária (aí apenas se podem plantar estas sementes), o culto da inutilidade, o saber pelo saber, sem quaisquer pretensões pragmáticas. Hoje temos inúteis (muitos, até), não temos inutilidade, porém. Uma é a receita contra isto: a curiosidade. Quando perguntaram a Pratt o que o guiou a vida toda, foi isso precisamente que ele respondeu: “a curiosidade intelectual”. A aluna da Carolina Michaelis tinha razão: a aula, é verdade, pouco valor prático tinha. Porém, tacanhos são os que se encerram nesses juízos. Amasse ela a curiosidade, tivesse sido educada para a amar, o telemóvel, esse grande hipnotizador (como aquele ladrão italiano do momento), há muito se teria reformado, derrotado.
ilustração pedida emprestada a http://binoculosqb.blogspot.com/
Muitas canetas e tinteiros se sangraram em redacções apaixonadas a propósito do recente caso de violência escolar no Porto, que o YouTube trouxe para a praça pública. Poucos, contudo, parece-me, reflectiram sobre por que razão não estava a aluna a fazer o que, naquele contexto, dela se espera: estar atenta à aula (alguns, pelo contrário, defendiam mesmo o direito da estudante a estar desatenta, se assim lhe aprouvesse, conquanto não perturbasse os demais). Pouco me importa aqui falar da falta de respeito demonstrada (sobre isso, outros, mais e melhor que eu, escreveram), mas sim sobre o profundo desinteresse que o manuseamento do telemóvel em contexto lectivo explicita. Espantarei alguns, creio.
O episódio da vergonha sucedeu numa aula de francês. Mas qual é, de facto, o interesse em estudar uma língua démodé, como o francês, especialmente hoje, num mundo em que todos compreendem o inglês? Entendo a indiferença da aluna perante a lição da professora. Mais: qual a vantagem de conhecer as bases da trigonometria, ou os maiores exportadores de cereais a nível mundial, ou de ler Os Lusíadas? De que serve saber o quotidiano dos camponeses e dos nobres na Idade Média, ou todos os detalhes do funcionamento do intestino delgado, ou a fórmula exacta para calcular a gravidade? Tudo isto são matérias que se estudam até ao nono ano. Sejamos sinceros: metade destas coisas, nenhum de nós as recorda já, e, a bem dizer, reconheçamos que mentimos quando procuramos convencer-nos da sua suma importância. Na sociedade que fabricámos, bem mais do que de conhecimentos, fala-se hoje de competências. Daí a aparição nos currículos escolares de mirabolantes disciplinas como Área de Projecto.
Esta é uma sociedade que desvalorizou o conhecimento, porquanto a maioria deste não é, de facto, útil: é meramente um exercício daquilo que nos faz mais humanos – daí ser tão precioso. É preciso inculcar nas crianças, desde a primária (aí apenas se podem plantar estas sementes), o culto da inutilidade, o saber pelo saber, sem quaisquer pretensões pragmáticas. Hoje temos inúteis (muitos, até), não temos inutilidade, porém. Uma é a receita contra isto: a curiosidade. Quando perguntaram a Pratt o que o guiou a vida toda, foi isso precisamente que ele respondeu: “a curiosidade intelectual”. A aluna da Carolina Michaelis tinha razão: a aula, é verdade, pouco valor prático tinha. Porém, tacanhos são os que se encerram nesses juízos. Amasse ela a curiosidade, tivesse sido educada para a amar, o telemóvel, esse grande hipnotizador (como aquele ladrão italiano do momento), há muito se teria reformado, derrotado.
ilustração pedida emprestada a http://binoculosqb.blogspot.com/
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