04 July 2008

O Desejo do Inútil

Hugo Pratt, um dos autores maiores do século XX, criador do imortal Corto Maltese, tendo sido, uma vez, criticado pela aparente inutilidade da sua profissão, confessou em resposta o seu desejo de ser inútil: a expressão dá mesmo título a um magnífico livro de entrevistas com o desenhador. Não raras vezes, quando me interrogam sobre o meu curso, perante a pergunta inevitável “para que é que isso serve?” (posta, por vezes, na variante, mais atenta ao futuro e ao emprego, “para que é que isso dá?”), gostava de poder responder do mesmo modo, evocando o meu capricho e gosto pela inutilidade, como Pratt.
Vivemos no que eu costumo definir como uma sociedade romana, eminentemente prática e pragmática. Se dos gregos se dizia que, para eles, tudo quanto era útil tinha de ser belo, dos latinos comentavam as más línguas, acertadas, o oposto: tudo quanto era belo tinha de ser útil. Não é sem razão que a economia triunfou sobre a política, subjugando-a: onde a política era, na origem, o combate pela utopia, um discurso sobre o que deve ser, a economia é, hoje, o manuseamento amargo do real, um discurso sobre o que pode ser, quando não mero discurso sobre o que é. Esta obsessão pelo fazível dita, por exemplo, entre as ciências, o triunfo da tecnologia. Hoje, a aferição da verdade assenta no proveito último que as coisas nos podem dar.
Muitas canetas e tinteiros se sangraram em redacções apaixonadas a propósito do recente caso de violência escolar no Porto, que o YouTube trouxe para a praça pública. Poucos, contudo, parece-me, reflectiram sobre por que razão não estava a aluna a fazer o que, naquele contexto, dela se espera: estar atenta à aula (alguns, pelo contrário, defendiam mesmo o direito da estudante a estar desatenta, se assim lhe aprouvesse, conquanto não perturbasse os demais). Pouco me importa aqui falar da falta de respeito demonstrada (sobre isso, outros, mais e melhor que eu, escreveram), mas sim sobre o profundo desinteresse que o manuseamento do telemóvel em contexto lectivo explicita. Espantarei alguns, creio.
O episódio da vergonha sucedeu numa aula de francês. Mas qual é, de facto, o interesse em estudar uma língua démodé, como o francês, especialmente hoje, num mundo em que todos compreendem o inglês? Entendo a indiferença da aluna perante a lição da professora. Mais: qual a vantagem de conhecer as bases da trigonometria, ou os maiores exportadores de cereais a nível mundial, ou de ler Os Lusíadas? De que serve saber o quotidiano dos camponeses e dos nobres na Idade Média, ou todos os detalhes do funcionamento do intestino delgado, ou a fórmula exacta para calcular a gravidade? Tudo isto são matérias que se estudam até ao nono ano. Sejamos sinceros: metade destas coisas, nenhum de nós as recorda já, e, a bem dizer, reconheçamos que mentimos quando procuramos convencer-nos da sua suma importância. Na sociedade que fabricámos, bem mais do que de conhecimentos, fala-se hoje de competências. Daí a aparição nos currículos escolares de mirabolantes disciplinas como Área de Projecto.
Esta é uma sociedade que desvalorizou o conhecimento, porquanto a maioria deste não é, de facto, útil: é meramente um exercício daquilo que nos faz mais humanos – daí ser tão precioso. É preciso inculcar nas crianças, desde a primária (aí apenas se podem plantar estas sementes), o culto da inutilidade, o saber pelo saber, sem quaisquer pretensões pragmáticas. Hoje temos inúteis (muitos, até), não temos inutilidade, porém. Uma é a receita contra isto: a curiosidade. Quando perguntaram a Pratt o que o guiou a vida toda, foi isso precisamente que ele respondeu: “a curiosidade intelectual”. A aluna da Carolina Michaelis tinha razão: a aula, é verdade, pouco valor prático tinha. Porém, tacanhos são os que se encerram nesses juízos. Amasse ela a curiosidade, tivesse sido educada para a amar, o telemóvel, esse grande hipnotizador (como aquele ladrão italiano do momento), há muito se teria reformado, derrotado.

ilustração pedida emprestada a http://binoculosqb.blogspot.com/

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