Estudava, quando o meu irmão me sugeriu vermos um filme. Esconjurei o trabalho, e sentámo-nos juntos para a sessão. Roubei da estante O Bom, o Mau e o Vilão, de Leone, que tinha comprado recentemente e desconhecia. O filme, um clássico consumado, explicou-me as razões da sua grandeza, e eu rendi-me também ao génio do western. Uma cena, perto do fim, logo me impressionou, manifesto simples – de incomparável sobriedade cinematográfica – de denúncia da inutilidade da guerra. Homens, irmãos, atiram-se violentamente uns contra os outros por uma estreita, estúpida ponte de madeira, objecto do desejo de ambos os exércitos. A ponte não serve para nada (só para lutar). Os soldados, coitados, têm de se embebedar para ousarem combater. O protagonista, ante o absurdo espectáculo, apenas comenta, incapaz de entender (cito de cabeça): “Nunca vi tal desperdício de homens”.
A cena toda ganha novo significado, se acrescentar que vi o filme no dia triste em que se celebraram – o termo é quase macabro, neste contexto – os cinco anos da invasão do Iraque. Subitamente, fomos todos de novo chamados a uma realidade que, entretanto, o tempo acabara por varrer, com discrição, para debaixo do tapete da memória. Os media – as estatísticas confirmam-no – dão cada vez menos cobertura ao conflito: na CNN, por exemplo, só 1% das notícias diz já respeito ao Iraque. Os espectadores cansaram-se do espectáculo: a bem dizer, não era particularmente criativo, e a pirotecnia das explosões diárias acabou por aborrecer. Os cadáveres amontoam-se longe (menos de cem mil): o seu cheiro, em decomposição, não chega às nossas narinas ocidentais.
Estava no meu nono ano quando a guerra começou. Na altura, lembro-me, activista de pé descalço, desenhei uma campanha que – o meu quixotismo reivindicava essas altas metas – podia mesmo, imaginava, chegar a Bush (a inocência da ideia pede-me que a não narre aqui). Espanto-me como ainda haja quem defenda a justeza da invasão, alicerçada no que hoje sabemos ter sido uma mentira orquestrada: a (in)existência de armas de destruição massiça. Por outro lado, porém, a tese simplista de que interesses petrolíferos ditaram a guerra também nunca me convenceu: de resto, os seis milhões de barris que o Iraque, actualmente, de acordo com as expectativas iniciais dos americanos, deveria estar a produzir diariamente, estão reduzidos a perto de dois milhões e meio, apenas. Até nisso, tudo na invasão correu mal.
A democracia, ao contrário do que Bush imaginava, não se prega pelas armas, e o falhanço no Iraque não é mais do que o desmoronar dessa doutrina expansionista bem-intencionada (a esse propósito, é urgente rever Manderlay, de Lars von Trier, reflexão perturbadora sobre esta e outras questões para este século novo). Esta democracia made in usa também não saiu muito favorecida com casos como Guantanamo ou Abu Ghraib. Ainda este mês, de resto, Bush vetou uma lei que interditava o uso de tortura nos interrogatórios. A América hipotecou assim todo o seu plafond moral e, ao fim de oito anos, muitos confundem o ódio a Bush (justificado) com o ódio aos EUA (palerma): a imagem externa dos “States” foi danificada de uma maneira que só as próximas eleições, em Novembro, poderão curar.
Ésquilo, possivelmente o mais belo dos dramaturgos gregos, chamou uma vez a Ares, deus da guerra, o “cambista de cadáveres”: descrição amarga de uma realidade crua. Hoje, de facto, os EUA são tão vítimas do conflito como as restantes facções em jogo no terreno. É pueril a atitude de quem insiste em, neste estado das coisas, continuar a resumir aos americanos as culpas do paiol em que se tornou o Iraque. Cinco anos depois, aonde é que chegámos? Menos ainda sabemos para onde vamos. Na véspera dos cinco anos do conflito, novo atentado: uma mulher fez-se explodir, quatro mortos. “Nunca vi tal desperdício de homens” - e de mulheres.
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