18 March 2008

O Rasganço

Steven Spielberg renunciou, em meados do mês, ao seu cargo de conselheiro artístico dos Jogos Olímpicos de Pequim, acusando a China de pouco fazer para travar o genocídio em curso no Darfur. A propósito do gesto do realizador, o Diário de Notícias conversou com Vicente de Moura, presidente do Comité Olímpico de Portugal, que exprimiu a sua tristeza com a decisão do cineasta americano, alegando que “não compete ao desporto tomar posições políticas”. O entrevistado afirma mesmo que boicotar os Jogos de Pequim “seria um completo disparate”. Parei o jornal (estava também já na última página), e espantei-me (com boca aberta e tudo, em grande teatro).

Dalguma forma, a entrevista é um espelho polido do tempo presente. Nela, com clareza, se mostra a cesura operada na nossa sociedade entre as várias esferas da acção humana: há muito abdicámos do homem completo. “Deixemos a política para os políticos”, proclama Vicente de Moura. Se a política é, de facto, coisa de políticos e políticos apenas, acabem-se as eleições universais. O presidente do Comité Olímpico português defende-se, invocando o artigo 51º da Carta Olímpica, que proíbe o envolvimento de atletas e dirigentes em movimentos de natureza política. Coisa cobarde esta, de ter a lei como toca para hibernar a consciência. Antígona, a doce filha de Édipo, teria muito a ensinar aos homens de hoje (as mulheres, de resto, são por excelência as professoras dos homens).

Estranho mundo este de heterónimos. Questionado sobre o Darfur, Vicente de Moura reconhece que “a minha posição enquanto cidadão é óbvia”, mas logo a seguir, “como presidente do Comité Olímpico de Portugal”, garante não poder responder à pergunta. Quantos homens podem habitar um homem? Ganhámos a peste de Aristóteles: a de tudo arrumar em categorias. Os direitos humanos, aparentemente, são do âmbito da vida cívica; não da profissional: já o devíamos ter aprendido pela análise do capitalismo – o importante é singrar. Falando do boicote aos Jogos de Moscovo, Vicente de Moura reconhece: “Quem não foi perdeu a oportunidade da sua vida e muitos ficaram esquecidos.” Há um genocídio em curso no Darfur, tacitamente apoiado pela China, mas, apesar disso (saibamos relativizar as coisas), é mais importante que os nossos atletas não esbanjem esta oportunidade de subir ao pódio.

Eis o ser humano rasgado, que hipotecou a sua unidade. Noutro tempo, dizia Terêncio: Sou humano, e nada do que é humano me é estranho. Quantos podem hoje afirmar o mesmo, nesta época em que, todos especialistas numa coisa qualquer desinteressante, perdemos a capacidade de comunicação entre a filosofia, a arte, a religião, a ciência, o desporto e a política? A cisão entre estas grandes áreas da expressão humana é um dos maiores entraves ao progresso.

Veja-se: recomecei as aulas na semana passada. Numa cadeira reflectíamos sobre as várias tentativas de definição do mito. O professor, cansado, concluiu pela impossibilidade de assentarmos numa, pela dificuldade em teorizar o fenómeno. Na aula logo a seguir, porém, outro professor, de área diferente (a bela Filosofia), de imediato aponta no quadro os traços essenciais, delineados com precisão, para que uma qualquer narrativa mereça a distinção de mito. Como é possível tal surdez entre saberes?

Por muito que Vicente de Moura queira mentir a si próprio, desporto e política não constituem duas esferas de acção humana irreconciliáveis. Spielberg agiu bem: Pequim 2008 é para a China o que Berlim 1936 foi para Hitler – uma gigantesca operação de propaganda. Leni Riefenstahl produziu para o ditador alemão um documentário dos Jogos em tudo cordato com a ideologia nazi (Olympia, filme de beleza rara, não obstante): era isso que se pedia a Spielberg. A sua atitude mostra que ainda há, afinal, pessoas íntegras. Seguissem outras o seu exemplo.

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