26 February 2005

Prólogo às Crónicas

Por mero ensejo viu-se o desejo desejado cumprido. Como sempre, foi no menos aguardado tempo e sítio que sitiados fomos pelo bafejo do ensejo. Inopinadamente, como é recorrente correrem estes encontros com a oportunidade. A paternidade da sorte que nos chega, nem sempre pelas mãos mais esperadas vem ter connosco: gente normalmente normal, que nos apanha. Mas não mais se refinem as metáforas, que se finem elas! E esclareça-se quem lê, conte-se claro o ocorrido e socorrido seja o leitor destes passeios por becos sinuosos das palavras.

Ardia pois o Estio já em fins do mês oitavo, quando, em terras alentejanas, com o sol violando forte a frescura da minha nuca, e estando eu a olhar para as manobras e dobras dum autocarro que me levaria, uma mão se poisa sobre o meu ombro. Viro-me instantaneamente. Esboço um sorriso, ao reconhecer quem assim me abraçou a espádua. Estendo-lhe a mão e cumprimentamo-nos. Olhamos um para o outro por meio das nossa lentes oculadas, se bem que os óculos dele sejam mais grossos e idosos, confirmando o tempo que lhe pesa sobre as costas. Contudo, é da união da geração mais avançada com a desabrochante que surgem as coisas mais belas.

Sempre com a sua mão sobre o meu ombro, como um velho avô que vai caminhando levando o neto lado a lado, contou-me como se iniciara naquelas artes jornalísticas. Não fora um professor seu, que o coagiu a escrever um papel sobre o mundo artístico, e um conhecido amigo dele, que um dia lhe solicitou um artigo sobre uma partida de futebol; não tivessem sido estes dois, esta parelha, e provavelmente, quando mais tarde ele reviu o seu literário baú, havia de achá-lo nu, e diria certo que aquela vida não era existência para ele. E hoje, trabalharia, quiçá, noutro posto. Mais foi outro o gosto do destino e de Deus. E no seu cofre particular, foi o professor os velhos escritos recordar, o que o foi acordar para o talento que possuía. Bem decidiu nessa hora pô-los a render e hoje arrenda-os a todos a um preço modesto numa banca de jornais.

Foi então que, com solenidade, olhando-me bem nos olhos, me propôs ousada oferta. Conhecendo já o meu jeito de escrever, havendo mesmo já publicado um texto meu anteriormente, falou-me abertamente do desejo que tinha que eu contribuísse para o seu semanário. Foi mais longe até, abrindo-me, se assim fosse de meu agrado, uma coluna nas páginas do jornal só para mim. Deixava a meu cargo o tema e o teor das palavras que eu dactilografaria nessa rúbrica. Nunca ninguém antes me escancarara tanto as portas para esse admirável novo mundo do jornalismo. Acima de tudo, ali tinha a possibilidade de deixar fluir regularmente as minhas cogitações, dúvidas e pouca arte. E a um escritor, que mais apraz que escrever?

Malgrado a tentação, não foi logo ali o meu sim. Havia que reflectir, pois uma vida não pensada, não merece ser vivida, como já vêm os filósofos dizendo desde o tempo do Sócrates que não era secretário-geral socialista. Indaguei pois entre amigos meus, que deveria eu escrever no nobre espaço que me seria reservado no hebdomadário, no jornal mealhadense. Depois de muita gente entrevistar, surgiu a decisão. Encontrei de novo o meu benfeitor e apresentei-lhe as minhas propostas para a forma como ocuparia a coluna que me era concedida. Ela acordou, concordou satisfeito. Mais renhida foi a luta pelo nome incógnito, o pseudónimo, mas no fim tudo se aceitou.

E foi pois assim que ganhei o direito de, de forma regular, vir aqui falar, sendo o meu púlpito uma coluna. Que estranho desvairo arquitectónico! Maior milagre no entanto é como se ajeita, em coluna tão estreita, o mundo todo sobre o qual discorrerei. Pequenas meditações críticas, intercaladas, por vezes, por pequenos quotidianos acontecimentos e histórias. Tudo será abarcado neste meu sermão deste meu púlpito: esta nossa cidade e os seus urbanos problemas, o nosso país e o desgoverno em que tudo se finge governar, e enfim, o mundo vasto redondo para o qual a gravidade nos puxa. Como todos, tenho as minhas ideias mais liberais e as mais radicais, os extremos e o meio, o equilíbrio e as loucuras. Não prometo nem quero agradar a todos, sabendo de antemão que poderei magoar alguns e louvar outros. Acima de tudo, porém, que corra nesta rúbrica uma espécie de tentativa de amostra da arte sublime que é a escrita e que seja fiel ao espírito dela pelos tempos, que sempre tentou divertir e emendar o humano espírito.

Obrigado, Professor Santos! o corvo

Publicado a 10 de Novembro de 2004

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