E o maremoto tudo levou (e lavou). Ficaram paisagens macabras de destruição para os olhos chocarem a alma. Afirmou o fotógrafo Cartier-Bresson que num retrato procurava o silêncio dalguém. Talvez seja por isso que não conseguimos ouvir os gritos de pranto e revolta nas fotos que chegam às redacções dos jornais. Contudo, causou espanto, facto irmão do 9/11: tal como a pequena igreja junto às torres desabadas que sobreviveu intacta, assim se conservaram muitos dos Budas da Tailândia. As imagens de Deus resistiram e questionam-nos: onde estava Ele naquele dia? A inevitável pergunta da teodiceia que nos assalta...
Se a pergunta se nos ergue, é pela nossa concepção judaico-cristã de Deus, que Lhe chama criador, bondoso, omnipresente, omnisciente e omnipotente. Ora como se explica que um Deus assim tenha composto um mundo tão tosco, que se agita em convalescenças várias, carrascas de tantos? Parece-me a questão tão pertinaz, que sou tenaz em querer aqui indagar o crer. É que o hipocentro de toda este drama é, no fundo, nossa alma.
Tarefa árdua e labuta complicada. Se Deus criou o mundo e suas leis, que a ciência tão bem revela, devia ter feito nossa casa sem mácula e bela. Mas a orbe flutuante que é o mundo, sabemo-lo bem, é longe da perfeição e sempre dela aquém, imperfeita como a humana natureza. Ora então Deus ou não a criou ou ela sozinha degenerou. Se, porém, ela decaiu pergunta-se se o Criador já não saberia que isso ia acontecer. Se não sabia, não é omnisciente, e logo se vê privado do sábio adjectivo. Mas se sabia, então não é bondoso, pois criou um mundo que iria tornar-se mau e causar sofrimento aos seus filhos, os humanos.
Se Deus não fosse criador (podendo assim continuar a ser bondoso e omnisciente), ou a matéria se teria desenvolvido por si, ou seria obra duma força maligna. Então atormenta a alma a interrogação inquieta sobre porque Deus não o corrigiu. E de novo duas vias nos são dadas: ou Deus não é omnipotente (e como tal não o podia emendar) ou não é bondoso, e não está pois interessado em o remendar. Pela primeira escolha, em vez dum senhor omnipotente, teríamos um peripotente, isto é, com muito (peri, em grego, muito) poder, mas não um infinito e desmesurado, como a dor que abala a terra hoje. Seguindo a segunda, voltaríamos à terrível ideia de Descartes dum génio demoníaco acima de nós.
A minha mente inclina-se a arriscar mais uma tentativa de reabilitar o Deus criador. Ele poderia ainda criar o nosso planeta, não fora Ele omnipotente. Se ele não fosse omnipotente, estavam esclarecidas as falhas da orgânica geóloga da nossa casa, pois significaria que Deus não poderia ter feito melhor na sua peripotência. Mas para que continuasse a ser um ser bondoso, teria também de não ser omnisciente, pois se soubesse a priori que a sua criação era defeituosa e traria, em virtude disso, grande sofrimento ao humano género, então, Deus, sabendo tal, se persistisse na sua criação, seria cruel.
Todavia, houve outra via ainda não mexida que se agita para ser considerada. Parte da negação do Mal, dizendo que ele não existe enquanto algo autónomo. Limita-o a uma ausência de Bem. Como certo filósofo expôs: «Não há trevas, somente ausência de luz.» Deste ponto de vista, toda a catástrofe era só fruto duma falta, ausência de Deus. Mas se assim fosse, Deus não seria omnipresente, pois só a sua peripresença poderia justificar a sua ausência momentânea.
Há ainda, porém, quem proclame que do Mal pode vir grande Bem e que Deus não permitiria o sucedido, se dele nada de positivo se retirasse. Mas se quer ilibar Deus com este argumento, é, horror!, como se afirmássemos que para Deus os meios justificam os fins.
A terra é fecunda em turbulências nas nossas existências, inquirindo-nos com dúvidas que reclamam as nossas respostas ou, pelo menos, pensamento. Podia temer que Ele fosse só ilusão, mas a alma que em mim arde o nega. A existência de bondade neste mundo é algo tão sobrenatural como a existência de Deus. Obtive-se o maior volume de dádivas de sempre para ajudar as vítimas do Sudeste asiático e da Somália. Esta última repetidamente esquecida nos telejornais, que África é bom que fique na penumbra: choca ver o mal que se quer esquecer...Corvos, crocitai e acordai os homens! ■ o corvo
Publicado a 2 de Fevereiro de 2005
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