26 February 2005

Semáforos Urbanos

Acreditou a Mealhada feita cidade que lhe faltavam os semáforos. Cidade que se preze, há que ter semáforos. Pois que a cidade reze para que lhos tirem, agora que postos são!, é o que eu grito. Que jeito pomposo da urbe de se crer e querer altiva! Onde está tua humildade, ó Mealhada? Orgulha-te antes de quem te habita e não do semáforo que o trânsito apita! O que acreditaste que te havia de trazer louros, provou ser coisa de loiros, a acreditar nos falsos preconceitos anedóticos do povo sobre as gentes de cabelo cor de espiga!

Fiaste-te que os homens, de dentro e de fora de ti, haviam de celebrar a inauguração desses polícias sinaleiros de metal com gáudio. Antes com gládio no punho os combatem! Acaso há semáforos para parar e mandar andar entre a aorta e o miocárdio, músculo do coração? Pobres de nós se assim sucedesse, que tombaríamos todos de imediato para o solo, sufocando por falta de sangue! O sangue quer-se que não pare, que flua incessante! E tão bem junto ao jardim da nossa cidade esse fluir antes era imitado! Limitado é ele agora por máquinas tricolores!

Revolveram-se as entranhas da terra para aqueles postes verdes espetar, e espectar tais torres é agora nova função dos automobilistas presos pelo símbolo escarlate! Com o tráfego congestionado, na avenida da data da lusa liberdade, vê-se preso o morador para sair de sua garagem! Quando enfim vê escoada para outros lados a fila que o impedia de avançar, e consegue por fim que as rodas do seu carro pisem o negro alcatrão, mira o sinal, e choca com um forte vermelhão! E mais dois minutos aguarda encravado pelo semáforo que maldiz.

Corre e conta-se por aí, que pelos peões se puseram no cruzamento tais desamadas invenções. Percorrendo eu a cidade, pude pois constatar o logro que tal afirmação em si carrega, mentira que notei especialmente nas múltiplas vezes em que eu mesmo e outros fomos obrigados a atravessar pelas passadeiras junto aos sinais. Pois atente-se nas seguintes palavras. Quando o peão passa, sente-se obviamente incomodado, visto ter sido ele o responsável por parar toda a circulação naquela artéria da urbe e apressa-se a passar, para não apanhar com os irados e desesperados olhares dos condutores. É que nas grandes cidades, quando alguém passa numa passadeira, jamais anda sozinho: uma manada de pessoas acompanha a sua procissão. Na minha amada terra, a Mealhada, cada vez que o sinal vira verde para os passeantes, passam dois indivíduos: um de lá para cá, e outro de cá para lá. E isto quando sucede os dois encontrarem-se.

Quando por sua vez o polícia automático aponta o vermelho aos peões, qualquer das três passadeiras fica inutilizada para os caminhantes. De facto, estou convicto de que os sinais são precursores duma degeneração dos costumes e bons valores. Concebamos a situação pré-semáforos: um peão está do outro lado da rua quando vê um carro aproximar-se, decidindo por isso não atravessar. O automobilista, vendo o pobre homem esperando, num gesto afável, deixa-o passar. Agradecido, o peão levanta a sua mão em sinal de reconhecimento.

Imaginemos a agora a nova realidade que nos foi imposta. Os condutores, em vez de serem simpáticos, maldizem os peões que lhes bloqueiam durante dois minutos os movimentos da viatura, pois o tempo de espera é colossalmente desapropriado e desajustado. A afabilidade tornou-se em ódio, irritação e impaciência. O peão, por sua vez, nada tem a agradecer, ou será que se deve sentir grato frente aos semáforos? Ao contrário, atravessa o alcatrão, mas passa-o pleno de indiferença.

Não conheço ninguém, nem da nossa querida cidade, nem do exterior, que se tenha alegrado ao ver estas novas aquisições da nossa pólis. Todos contra elas têm barafustado, e eu limito-me, por meio desta crónica, a dar voz a uma cólera e revolta generalizada que eu igualmente partilho. Mais descabidos se tornam ainda os sinais pois afastam do jardim o trânsito, que opta por entrar na Mealhada pelas duas outras rotundas da estrada nacional. Ora, o pouco trânsito que resta e que circula por essas vias semaforizadas, carrega o fardo de suportar sinalizações que estão concebidas para regular engarrafamentos caóticos urbanos. Todos saem penalizados e, para mais, o investimento não é recuperável. O melhor que ainda havia a fazer, é colocar os sinais a mostrarem a amargura de ali estarem, pondo-os, para isso, a olharem-nos com um falso sorriso amarelo perpétuo. Bem branco seria o nosso riso então. o corvo

Publicada a 24 de Novembro de 2004

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