1. O gozo do espectáculo há muito se perdera: a vitória rosa era já antes da noite claramente afirmada, firmada em sondagens (aquelas que Santana contava processar) e no comum senso (para muitos sonso). Insosso deve pois ter sido o êxtase socialista, desprovido do gosto do inopinado. A dúvida inquietante era ainda a maioria absoluta, mas até o sabor de tal surpresa roubou Sócrates aos seus, de tão certo estar nela. Talvez por tudo isto, o desfile que é costume no triunfo não se viu cantado por caravanas de carros correndo a cidade. Lamento o gordo sucesso: é o cessar dum debate que era tão preciso e que o absolutismo dispensa.
2. O descalabro laranja é ímpar e imparável se acentuou à medida que o sufrágio se terminava. Santana é o fenómeno axial que percorre, unindo e dando coesão, todo este naufrágio. A seta laranja surge-me aos olhos desfasada da realidade, quando a comparo com a linha dos resultados. Mas tal queda era uma aposta previsível, até pecou por não ter sido mais. Santana retratou-se, retractando-se do fracasso, a ele mesmo, num discurso de muitos gumes e facas. O bebé morreu estrangulado nos tubos da própria incubadora. Fez-se de mártir para o bem do partido, partindo dele. Terá setenta virgens à espera no céu.
3. Os comunistas e o seu partido satélite (ou direi mais parasita?) ecológico recuperaram o seu terceiro posto, acompanhando a suprema subida da esquerda. Também no nosso concelho conseguiu inverter os resultados tendencialmente descendentes, ganhando pouco menos que uma centena de votos. Eis mais um caso em que a mudança de líder recompôs a marcha: a rouquidão de Jerónimo ainda teve força para cantar vitória.
4. Os democrata-cristãos sofreram uma ligeira derrota quando olhando para o passado, mas uma forte desilusão se considerarmos o futuro a que se candidatavam. Portas abriu a porta para um substituto, no melhor discurso da noite: viu-se um político sem hipocrisia, ave rara nesta selva que é a política nacional. Era tal a translucidez do seus discurso sem rodeios e malabarismos demagógicos ou vitimizantes que o fez, se não um vencedor, por certo não um vencido. Como Santana, a saída de Portas abre um futuro mais promissor do seu partido. O seu sempre sorriso não abafava o quase-ódio que lhe era movido por uma camada da população a um nível irracional, mas que latejava forte. Um novo líder não terá tal estigma absurdo, mas real.
5. O Bloco fracassou, como os populares, os seus objectivos declarados, mas isso quase se torna irrelevante quando olhamos para a sua astronómica subida (bastante previsível e aqui pecou-se por defeito). Tal passo de gigante já amputou o Bloco, contudo, de duas daquelas que eram, a meu ver, das características mais apelativas dele: a inexistência da imagem dum líder e a rotatividade dos lugares no Parlamento, cujo fim Louçã já anunciou. O risco do Bloco é tornar-se um partido institucionalizado, como todos os outros. A adesão que recebe nas camadas mais jovens apresenta-se-me como consequência de ser um partido muito recente, cuja ascensão pode ser seguida por uma nova geração, a primeira posterior à Revolução dos Cravos, tendo em conta que já passaram 30 anos.
6. Um dos maiores ganhadores da noite não foi falado. Não convém muito, especialmente num país onde cientistas políticos o intitulam de ‘antidemocrático’. Falo do voto defendido por um nobelizado português no seu mais recente livro e pelo Movimento Um Rumo Para Portugal (www.umrumoparaportugal.com): o voto em branco sofreu um incremento fenomenal. Calculo que esse politólogo, em consonância com o dito na entrevista que concedeu à revista ‘Pública’, esteja agora a “olhar com atenção” essa “subida interessante”. O voto em branco quase duplicou quando comparado com 2002, atingindo os 1,81% e saldando-se em mais de 103 mil votos. Em Lisboa foi a sexta força política e valeria um deputado. Na nossa terra sofreu um aumento de aproximadamente 175% face às legislativas anteriores, atingindo os 250 votos, mais que todos os partidos menores somados, que se ficaram pelos 148 votos. O voto em branco provou ser uma opção digna de crédito e promete grandes surpresas para o futuro. ■ o corvo
Crónica Inédita
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