11 December 2005

Quiçá, Banda

Os cartazes ameaçadores que se espreguiçam já por Coimbra inteira recordaram-me dessa recente novidade do panorama musical nacional – a banda da novela Morangos com Açúcar, que da ficção partiu para a realidade: os D’ZRT. Seja-me permitido omitir os comentários sobre o nome, abreviatura telemobilizada inglesa para ‘sobremesa’ – lógica de linguagem que parece ter-se espalhado também aos livros escolares com o manual francês ‘Kestudi’, à letra, qu’est-ce que tu dis? – e avançar directamente para factos que, no mínimo, nos devem preocupar.

O álbum de estreia da banda, homónimo, em apenas quinze dias conquistou o primeiro lugar no top de vendas nacional, onde ficou mais de vinte semanas, sendo quíntupla platina. Ao longo de todo o Estio, os D’ZRT realizaram mais de cinquenta concertos por todo o país, tendo gravado um DVD. Já há inclusive bonecos dos cantores para venda.

Do acima referido, deduz-se, obviamente, o estatuto de puro produto de consumo, filho do marketing e associação com a novela, dos D’ZRT. A qualidade deplorável da banda – comparável ao “crescimento” negativo da economia portuguesa – seria de esperar dum conjunto cuja lógica é a mesma da fast food. Cito palavras dum dos membros: «Como era um álbum que tinha de estar preparado num curto espaço de tempo por causa dos "timings" da novela...».

Terá sido esta premência de celeridade na apresentação das músicas que, quiçá, esteve na origem dum facto que só recentemente foi revelado no espaço cibernético. Descobriu-se que o single de lançamento e grande hit do grupo, intitulado Para Mim Tanto Faz, não é original senão na sua letra, pois a melodia foi – assim o esclarece o aviso da editora discográfica quando confrontada com as acusações dos internautas – comprada à sua compositora, a cantora japonesa Nami Tamaki, autora da música High School Queen. À luz desta alteração, talvez melhor se compreendam as palavras de Angélico: «...pudemos alterar as músicas de forma a ficarem a nossa onda e, desta forma, foi possível depois escrever as letras à nossa maneira» [itálico nosso]. Ironicamente, a coordenadora da série declara que «Eles têm um mérito muito próprio...», afirmação que sai reforçada quando se descobre que o único original no CD é Percorre o Meu Sonho.

Os D’ZRT podem ser mesmo vistos como mais uma encarnação desse deturpado conceito de banda, em que esta se cinge às vozes, relegando para a obscuridade os instrumentistas. Assim o reitera um membro do quarteto: «O objectivo era que as músicas viessem minimamente arranjadas para as nossas vozes...», ainda que confesse que, posteriormente, lhes fizeram algumas alterações, como se referiu. Um grupo destes baseia-se, necessariamente, para alcançar o sucesso, mais na aparência física dos seus elementos do que nos seus talentos. Tudo isto é triste quando pensamos numa série de bandas de garagem com bem mais arte – algo também não particularmente complicado – que não conseguem vingar no mercado por falta de apoios e a seguir nos deparamos com os números astronómicos de vendas dos D’ZRT.

Uma reportagem do Correio da Manhã mostrava como todas as celebridades – as que não ficaram fechadas num quartel e puderam ser entrevistadas – também acompanham e admiram os D’ZRT, talvez por se identificarem com a mesma mediocridade. Essa mediocridade que é o ar infesto que ensombra Portugal, da satisfação com o pouco e do elogio do baixo. Dilato as narinas, e entre o odor fétido, perscruto um ligeiro cheiro de morangos... o corvo

Crónica saída a 7 de Dezembro de 2005

Recordar Laranja Mecânica

A revista Sábado começou a lançar uma série de DVDs do mestre Kubrick, que se inaugurou com a mítica Laranja Mecânica. Este poderoso filme mostra-nos o delinquente Alex, que com o seu grupo de amigos se entretém a espancar e a violar noite dentro, sem qualquer objectivo senão o gozo que daí retira. Ainda hoje polémica, a película é uma crítica à juventude desprovida de valores, obcecada, como o protagonista, com Beethoven, sexo e sangue.

O mundo futurista de Kubrick tornou-se, com o tempo, bem real. Os recentes acontecimentos em França vieram revelar uma juventude sedenta de distúrbios e de manifestações de força. Os críticos têm procurado explicar este fenómeno com a integração deficitária dos jovens dos subúrbios e uma discriminação latente na sociedade francesa. A estes factores, juntam a falta generalizada de perspectivas das camadas mais novas e o desemprego de massas que aflige estas zonas. Porém, nem mesmo as afirmações, quiçá imprudentes, de Sarkozy – o qual, como o próprio fez questão de apontar, é descendente de imigrantes, como o seu apelido regista – ilibam os adolescentes.

Embora a princípio pudesse haver um objectivo político – e que objectivo político esse, tão reduzido que apenas pede a cabeça de um ministro, sem uma visão global para a sociedade!, rapidamente este movimento incendiário perdeu essa conotação, tornando-se numa mera diversão. Assim se explica o seu alastramento a outras cidades do Hexágono e, mais notavelmente, aos países vizinhos, onde não havia qualquer razão imediata para a sublevação dos bairros, senão o mimetismo.

O fenómeno de delinquência juvenil não é exclusivamente francês. Na América, há todo um historial dos massacres escolares, apenas uma outra faceta do mesmo problema. Recordem-se as declarações de Brenda Spencer, responsável por um massacre escolar, que se justificou afirmando: “Eu não gosto de segundas-feiras. Isto anima o dia.” ou “Não houve razão nenhuma para tal, e foi imensamente divertido.” e “Era como alvejar patos num lago”.

Em Inglaterra, este ano veio revelar o assombroso happy slapping (à letra, ‘bater feliz’): enquanto um transeunte ao acaso é espancado (com ocasionais violações ou disparos), um membro do grupo, com uma pequena câmara ou mesmo o telemóvel, grava o acto para mostrar a conhecidos ou pôr a circular na internet, onde se compete pela melhor agressão. Mesmo a situação em França, no mesmo dia em que morreram os dois adolescentes cuja electrocussão acidental espoletou todos estes eventos, um homem foi espancado até à morte em frente a dezenas de pessoas, que, passivamente, assistiram à cena.

Atribuir as culpas às televisões, aos videojogos, ao metal, é como atribuir a “intifada francesa”, como lhe chamou o Público, a toda a série de factores que os críticos enunciaram, esquecendo-se do principal: o genuíno gosto da destruição. A verdadeira causa deste é a tremenda perda de valores, resultante da educação que os pais (não) dão aos seus filhos e pela qual o Estado é também co-responsável. Enquanto não o percebermos, a Laranja Mecânica continuará a espremer o seu sumo... ■ o corvo

Crónica saída a 23 de Novembro de 2005

Das Teorias da Conspiração

Lançado no mercado português recentemente, não posso deixar de referir o novo livro de Dan Brown, A Conspiração. Não tendo editor que ma publique, venho eu, neste exíguo espaço para tão revolucionária ideia, apresentar também a minha teoria da conspiração. Declaro:

Há uma conspiração para que haja conspirações!

Tudo começou com o escândalo da Casa Pia que, anuncio!, não passa duma grande cabala! Seguiu-se a cilada armada a Fátima Felgueiras que, inocente!, contra essas movimentações maquiavélicas de bastidores, teve de se exilar no Brasil! Ela própria prova-nos a trama infame: «Falam de um saco de uma cor qualquer, o saco da vergonha para todos os que criaram e alimentaram isso»! Como não havemos de crer em tão sinceras palavras? É conluio! E o Ministério Público? Esse órgão, tão desejoso de poder, essa renovada Inquisição!, não lhe bastando estas vítimas, logo se lançou na caça de novas e não tardou a acusar Valentim Loureiro e Pinto da Costa – dois honráveis senhores do futebol português – para invocar os seus nomes a propósito do processo Apito Dourado! E o venerando e veterano Vale e Azevedo? Esse explicitou tudo no seu livro A Armadilha, onde se pode encontrar um historial de todas as cabalas portuguesas, comparando-se o visado aos reis traídos. É maquinação! Ainda não contentes, à cruzada impiedosa que aqui vimos enunciando juntaram-se os jornais, que recentemente acusaram de controlo de meios informativos o mentor Alberto João Jardim, cabeça da Madeira, que à ilha trouxe o progresso! Claro que também, em toda a sua profundidade de saber, Jardim compôs a sua própria resposta, contra-argumentando com outra conjura: o país está a ser dominado por grupos maçónicos que nos conduzem para o iberismo e anexação à Espanha. «É uma pouca-vergonha.», conclui.

E não é tudo! É tal a influência de todas estas tropas difamatórias, que conseguiram que o Presidente demitisse o competente e bem intencionado Santana! Não espanta pois a sua magoada imagem: «Tem sido difícil para quem está na incubadora, ver passar a família e, em vez de acarinhar, haver membros da família que dão uns estalos no bebé»! Conjuração! E que comentários tecer do ultraje promovido por Paulo Morais, numa mesquinha campanha contra as imobiliárias e as autarquias, numa das mais pérfidas cabalas a que o nosso país assistiu? Como reagir então ante a ignóbil trama que se concebeu contra Mário Soares, tentando abafar a energia de tão jovem candidatura, para o destruir politicamente? E não se esqueça aqui a conspiração horrenda que o Governo está a mover contra a classe média, com as suas reformas tão desnecessárias e supérfluas, ou não fosse o nosso erário abundante!

Exposta aqui esta revolucionária ideia que lança novas luzes sobre toda a história portuguesa, anseio, doravante, o convite para a publicação deste meu bestseller. E tal como Dan Brown, já preparo a minha sequela: revelar ao mundo a enorme conspiração que une o suicídio de Antero de Quental frente a uma igreja com o 11 de Setembro, ocorrido uns exactos 110 anos depois! Ainda que não pareça, um é consequência do outro. Para fechar a receita, só me falta meter a Igreja Católica algures... Ah, o Convento da Esperança! ■ o corvo

Crónica saída a 9 de Novembro de 2005

Lendo os Astros cá em Baixo

Ouvindo o noticiário da Antena 1, há duas semanas, fiquei a saber que uma tenda de campanha – oportunamente enviada para o Sudeste Asiático aquando do tsunami – pertencente ao Serviço Nacional de Bombeiros e Protecção Civil, jazia há seis meses na Alfândega de Lisboa, custando já à citada entidade cinco mil euros. Refira-se também que só há mais um equipamento do género em Portugal e que, para cúmulo, teve de ser a Alfândega a avisar o interessado, que desinteressado me parece.

Se quando escutei a reportagem não contive o riso, chegado a casa, não sustive o medo. Episódio pontual, situação caricata, este acontecimento não é senão um símbolo, uma metáfora, como o autocarro de Lisboa engolido pelo asfalto – era Santana ainda presidente dessa câmara – era o código secreto em que se profetizava o declínio luso. É Portugal quem espera naquele porto; porém, todos passam e ninguém se interessa por essa estranha realidade ancorada ainda no domínio da utopia. Mas a indiferença paga-se cara e o preço sobe dia a dia – como o petróleo.

Os sinais do Apocalipse multiplicam-se, com as trombetas dos anjos ressoando mais e mais. Do céu – porque Deus é brasileiro, como dizia o filme homónimo – desce já a senhora de Fátima, para o seu último e maior milagre: o de Outubro. Independente? Indecente! Felgueiras é o triunfo da verborreia. Chamava-lhe o Diário de Notícias “nova Evita”, mas ninguém a evitou, antes lhe deram maioria absoluta, absolvendo-a de toda a sua prática dissoluta! «Nem sei se era assim tanta a esperança e a alegria no 25 de Abril» afirmou ela. Nem eu sei se então era tanta a parvoíce que hoje se revela! «O povo em democracia é soberano», disse da sua vitoriosa janela. Mas este mesmo povo, na sua ingenuidade e erro, cava a sua cova. Sócrates, o filósofo, já defendia que a ignorância era fonte de todos os males – quer-se maior prova?

Mas quando até os cultos vultos fazem tão estultos comentários, de Alegre fico triste. «Ele é um ídolo da juventude. A minha filha gosta muito de o escutar». falou assim Manuel, o poeta, de Pacman, o vocalista dos Da Weasel, mandatário para a juventude da sua candidatura presidencial. Referindo-se à versão hip-hop da Trova do Vento que Passa: «Fiquei comovido ao ouvi-lo. E fiquei ainda mais depois de saber que ele nem sequer havia escutado as versões anteriores, interpretadas pelo Adriano e pela Amália.» Não condeno a escolha, condeno o elogio. Condeno a apologia da degenerescência da juventude que tem de encontrar tais ídolos. Condeno que se exulte a ignorância da arte passada. E se Pacman não ouviu as versões cantadas do poema de Alegre, creio eu que Alegre não leu os versos escritos de Pacman. Como reagiria o candidato ante a “arte poética” do hit da banda: «Vou levar-te para casa - tomar conta de ti/ Dar-te um bom banho, vestir-te um pijama e…/Fazer-te uma papinha, meter-te na caminha/ Ler-te uma historinha e deixar-te bem calminha»? Que história cantaram a Alegre, desconheço, mas decerto vai-lhe ser dado um bom banho e ele irá para casa, lamentando o seu despenho.

«...e todo o país não é mais do que: uma agregação heterogénea de inactividades que se enfastiam. É uma nação talhada para a conquista, para a tirania, para a ditadura...» assim se anuncia na primeira das Farpas de Eça. Lendo os astros cá em baixo, a minha astrologia remete-me para a mesma triste conclusão e assim se murmura na confusão e as vozes clamam por uma mudança de regime: novo D. Sebastião que aguardamos. Por ora, nevoeiro apenas... ■ o corvo

Crónica saída a 26 de Outubro de 2005

Morangos com Bolor

Uma série de acontecimentos recentes – inclusive uma reportagem da revista Xis sobre o tema – incutiu em mim o desejo de analisar mais este produto de lixo televisivo duma estação que é o paradigma da falta de qualidade: Morangos com Açúcar (McA), a novela juvenil da moda.

No fundo, em McA temos a versão portuguesa de novelas como Malhação/New Wave, no seguimento da estratégia da TVI de produzir – sob a aura meritória da produção nacional – versões emuladoras dos êxitos da sua concorrente directa, a SIC. É o mesmo pensamento que está subjacente, por exemplo, ao Inspector Max, unanimemente visto como uma tentativa mal sucedida e fraca de copiar a fórmula da vitoriosa e fascinante série Komissar Rex. Note-se a semelhança assustadora entre os dois nomes. Quando, contudo, a TVI ousa tentar ser original, temos nomes como McA, que levou a um amplo gozo. Convém ainda acrescentar que, apesar de ter caído no esquecimento geral, o primeiro passo dado no que respeita a novelas juvenis lusas não coube à quarta estação, mas à pública, com o saudoso Riscos (1998) – série bem mais séria.

Numa reportagem, a coordenadora da novela, Patrícia Sequeira, afirma «Queremos que sejam [os McA] vistos como reais». O triste é serem-no e não o serem simultaneamente. Parte substancial dos adolescentes vê-se retratados nas personagens, com uma vida que é tão comezinha como a novela, tão reduzida e redutora como ela. Os McA estão inseridos na acção sincronizada dos media de estandardização da classe juvenil, em conjunto com as rádios e as revistas como a Bravo ou mesmo o novo suplemento dominical do Público, a Kulto. A frase de Patrícia Sequeira – «...mas tem de seguir aquilo que eles querem.» – vem confirmar que este género de produtos juvenis vendem e, mais, são desejados. Num ciclo vicioso, os seus consumidores fomentam a proliferação destes manifestos anticultura, mas eles asseguram que novas gerações da mesma massa continuam a surgir perpetuamente.

Porém, retomando o declarado acima, é enganador julgar que os McA possuem uma relação com a realidade que não seja somente acidental. A novela marginaliza – formando no espectador uma ideia estereotipada da juventude nacional – toda uma série de adolescentes, desde os punks até à outros subgrupos, tais como os góticos, que não se enquadram de modo nenhum na visão maniqueia dos McA. Uma panóplia de acontecimentos que afectam os jovens nunca foram abordados, tal é a obsessão da novela pelas tramas amorosas. Refiro-me, por exemplo, à morte de um amigo, à imagem do aluno sistematicamente repetente, ao ostracizado da turma, ao estudante que abandona a escola – tudo situações bem reais, mas omitidas, pois não esqueçamos as palavras da coordenadora da série «Achamos que é importante sermos didácticos [...] também queremos dar alguns valores, dar uma moral, dar umas liçõezinhas». Cinismo puro.

A qualidade – ou falta dela – de representação que os actores amadores demonstram é tal que se tornou recorrente, no seio da comunidade juvenil, quando se quer criticar o mau jeito de alguém para as artes dramáticas, referir a novela, que é um paradigma negativo de arte. Mas os McA seguem no seu alto astral: existem já agendas, discos que se vendem e ocupam os primeiros lugares nas tabelas de êxitos, e, até mesmo – perdoe-se o insulto que nos fazem! – livros! O primeiro dos quais esgotou a edição numa semana. Mais indescritível ainda é o fenómeno D’ZRT, indissociável da novela, a ver numa próxima crónica. Entretanto, os Morangos continuam cheios de bolor, mas as pessoas preferem chamar-lhe açúcar... o corvo

Crónica saída a 12 de Outubro de 2005

09 October 2005

O Arrastão ou O Cansaço de Pensar (III Parte do Ciclo Nipónico)

Este mês de Setembro trouxe aos leitores da revista de cinema Première a oportunidade de adquirirem, conjuntamente com a publicação, o filme Battle Royale, uma violenta sátira à sociedade nipónica, criticando a extrema tensão a que estão sujeitos os alunos nas escolas, onde domina um frenético regime de competição, com elevadas pressões sobre os discentes para que sobressaiam acima dos seus companheiros. Levando a um extremo cruento tal concorrência, a película retrata uma turma de nono ano em que os alunos são presos numa ilha onde têm de se matar até que só sobreviva um, num futuro distópico.

Se a ideia é abjecta, conduz-nos também a uma reflexão sobre o seu oposto: se esta obsessão desenfreada pelo estudo e pelo sucesso tem os seus efeitos nefastos, o mesmo se aplica ao relaxamento generalizado que degenera na estupidificação da juventude, entre nós. A exigência deveria substituir a indulgência, sob a asa da qual tantos maus resultados são permitidos. O ritmo de aprendizagem é definido pelos que obtêm piores resultados, obstruindo o progresso do aluno médio e retardando o do bom pupilo. Vozes erguem-se já para me classificar de elitista, contudo, já a primeira Constituição no âmbito da Revolução Francesa declarava que todos os homens eram iguais, sem qualquer outra distinção senão o seu mérito e talento. Ser elitista significa defender e premiar aqueles que trabalham mais, que se esforçam. Quer-se mão-de-obra qualificada, mas a Juventude Comunista Portuguesa não deixa de reivindicar o fim dos exames nacionais, pela óbvia discriminação que eles constituem, como bem sabemos.

Mas de que servem também tais avaliações se – como no caso da prova de Português de nono ano – roçam o cúmulo do ridículo, com perguntas maioritariamente de cruz e outras que parecem escarnecer das capacidades intelectuais dos alunos? É que – isto é importante que se compreenda – a nossa juventude – não obstante tudo o dito, até por mim mesmo – não é estúpida: ela é estupidificada; mais, é encorajada a deslizar para essa estupidez por pedagogias baratas que, de reforma curricular em reforma curricular, têm vindo a simplificar os programas. Há um célebre problema conhecido como “o problema da batata”, que é uma sátira impecável e implacável a este processo degenerativo do ensino. Por questões de espaço, é-me impossível reproduzi-lo nesta coluna, mas pode ser encontrado no sítio http://pascal.iseg.utl.pt/~ncrato/Math/EvolucaoEnsinoMatematica.htm. A Filosofia, suposta disciplina do pensamento, somos levados a decorar, mais que compreender; a aceitar, mais do que a conquistar; a calar, mais do que a discutir.

Assim, com a sociedade incitando os jovens a não pensarem, fornecendo-lhes uma mundividência fabricada pelos mass media, nunca poderá surgir um cidadão no verdadeiro sentido do termo, ciente dos problemas da sua pólis, pronto a discuti-los na ágora moderna. Inversamente, como exposto na última crónica, o jovem comum ocupa-se só de si, dos seus conflitos, dos seus conhecidos e promiscuidades. À crise económica e política acrescente-se a crise dos vindouros. Os efeitos da tomada do poder por parte de um homem conotado com a diversão boémia e as mulheres – que ele apelidava de “os meus colos” – foram desastrosos. Imaginemos um país dum povo de análoga massa à deste homem. A essa evidente crise social que produziu tais homens, ajunte-se uma crise económica e política, com gentes que, já o diziam os romanos, “não se governam nem se deixam governar”. Onde desembocam os pesadelos? ■ o corvo

Altr-eu-ísmo (II Parte do Ciclo Nipónico)

O exacerbado consumismo, referido na passada crónica, das adolescentes japonesas – essa geração que apelidámos de “pedi, e ser-vos-á dado” reflecte, na sua forma mais pura, o vazio que as enche, se tal antítese é possível. E mais uma vez, a sociedade nipónica funciona como reflexo da nossa. O consumismo obsessivo das raparigas é uma alienação de si próprias, porque lhes falta uma individualidade, que elas a todo o custo transferem para as roupas, que passam a ter o encargo de demonstrar um dado estilo de vida. Muitos jovens adoptam modas sem compreenderem plenamente a mentalidade por detrás delas. O caso mais paradigmático é o vestuário gótico, que, agora, como que se banalizou, sem que haja uma verdadeira identificação com tal movimento, como se a roupa conferisse ao seu utilizador a cultura alternativa que lhe é implícita. Os jovens transferem para as coisas a sua personalidade, aquilo que são, sem entenderem que, como no filme Clube de Combate se diz: “Tu não és o teu emprego... tu não és quanto dinheiro tens no banco... nem o carro que conduzes... nem o conteúdo da tua carteira.”

Porque não se é nada senão um vazio, é necessária uma constante alienação de si, presente na nossa sociedade, em fenómenos como o consumismo e a premente socialização. Esta última merece uma maior atenção. Há uma constante vontade de estar acompanhado – o ser humano esqueceu-se do que é estar sozinho e os que o não olvidaram são chamados de misantropos. A personagem Mildred, em Fahrenheit 451 – obra de Ray Bradbury que tive o ensejo de ler estas férias, sobre um mundo onde os livros são proibidos – é a imagem perfeita deste comportamento, sempre agarrada à “família”, nome das três paredes falantes.

Parece que atingimos o cume do altruísmo, quando deixámos de procurar a solidão, para a substituirmos por uma companhia incessante, de que são instrumentos os telemóveis e televisões, que nos invadem a privacidade. O sofisma está em não perceber que este aparente altruísmo não o é; trata-se antes duma dependência. Convivemos com os outros, não vivemos para os outros – isso sim, o real desprendimento apregoado por tantas filosofias e teologias. Fazemos dos outros, nós. É esta diluição da separação clássica com o outro que alimenta os reality shows ou as revistas cor-de-rosa (outra encarnação do voyeurismo) ou ainda as novelas, onde as pessoas pretensamente se vêem reflectidas nos personagens. Por ser a cultura do outro, é a cultura do ver – de olhos fechados só nos podemos conhecer a nós, se algum dia nos conseguimos conhecer o suficiente. Deste culto da visão, vem a fé de Tomé dos dias de hoje, a incapacidade de abstracção (e consequente decadência da Filosofia) ou ainda a perda dos hábitos de leitura, substituídos pela televisão, que remete para o futuro imaginado por Bradbury.

Simultaneamente, atravessamos uma fase aguda de egotismo, em que a preocupação máxima de cada são os seus próprios problemas. Os dois fenómenos não estão de modo algum desconectados, sendo apenas um o produto racional do outro. Obsessivamente centradas no seu umbigo, as pessoas necessitam mais intensamente do que nunca dum divertimento, duma alienação – que acham nos outros – para esquecerem as suas preocupações. Como que retornámos aos velhos tempos romanos, em que a felicidade do povo era feita do seu pão e circo. Mas, como também então afirmava – já com Roma em decadência – Salviano, «Roma moritur et ridet.» - Roma morre, e ri. ■ o corvo

31 August 2005

Pedi, e ser-vos-á dado (I Parte do Ciclo Nipónico)

Na penúltima Pública – revista dominical do Público – pude ler um dos mais interessantes artigos deste ano, dedicado a um fenómeno social japonês que foi apelidado de “hikikomori”, palavra que se refere a jovens que, devido a uma depressão, se resolvem trancar durante vários anos nos seus quartos. Anexada à reportagem, seguia-se uma outra sobre as adolescentes do Japão. Nela, via-se como as raparigas nipónicas, extremamente mimadas, esbanjam todo o dinheiro que recebem, quer como mesada, quer dos seus trabalhos em part-time, em roupas caras, com as quais vivem obcecadas, sem aspirarem a nada mais alto do que serem donas-de-casa, com um marido rico que as sustente. É a geração do “Pedi, e ser-vos-á dado.”, em que os pais acedem a todos os desejos das filhas.

Seja-me permitido aqui reproduzir as palavras, citadas na reportagem, de Takahiro Hadaki, director duma revista juvenil feminina, procurando explicações para tal exacerbado consumismo: «A política não está bem, nem a economia. A população está a envelhecer, e eles
[os jovens] sabem que lhes cabe sustentar os mais velhos. Mas acham que não vão conseguir ter dinheiro, mesmo que trabalhem. Estão a desistir de ter esperança no futuro».


Fora de contexto, dir-se-ia que esta frase se refere ao panorama português. Entre os jovens – falo por aqueles que me são próximos e mesmo por mim – esse desalento quanto ao futuro assombra-os: o desemprego é a nova espada de Dâmocles. Em Humanidades, então, o desespero é generalizado. Cada vez mais colegas se inclinam para a hipótese de seguir Direito, o último curso com saída dentro do nosso cada vez mais decadente agrupamento. Os poucos que permanecem fiéis aos seus projectos originais (como Psicologia, História ou Filosofia), ano a ano, tomam maior consciência do suicídio profissional que professam. A título de exemplo, soube recentemente que um archeiro da Universidade de Coimbra é licenciado em Psicologia.

Assim, não é de estranhar que, entre os que obtêm melhores resultados, seja comum o desejo de emigrar. Também não é de admirar que o sistema de cunhas, parecendo ser o único meio de assegurar um emprego, ainda que mal pago, prevaleça: lugares bem remunerados, não os há suficientes para a juventude. Porque administradores da Caixa Geral de Depósitos há só nove... E para que tenhamos as indemnizações, primeiro temos de lá estar! Não que seja complicado: as quotas do partido só têm de estar em dia. Não posso deixar de apontar, a propósito, que, entre os meus conhecidos, é significativo o número de jovens que se têm vindo a registar em juventudes partidárias. Sinal dos tempos? Não obstante esta nova vaga, os partidos insistem em usar os seus velhos vultos, alguns na casa dos oitenta. De facto, como acima dizia Hadaki, «A população está a envelhecer...».

Perante isto, não será normal o descrédito em que caiu a política nacional? Esta está num ponto degradante e promíscuo, em que se misturam interesses do futebol e dos partidos, com seus boys e demagogias autárquicas. Não se entende – e perdoe-se-me o lugar-comum – que haja dinheiro para estádios, mas não para hospitais; haja dinheiro para a Ota e TGV, mas os bombeiros – os últimos heróis da nossa era – não tenham equipamento adequado nem meios suficientes para combater os fogos, que tornaram o ar nas nossas cidades literalmente irrespirável. Com auto-estima, justificadamente, tão em baixo, qualquer dia, é o país que faz “hikikomori”... o corvo

25 July 2005

Os Esquecidos ou O Oblívio e Minerva

Faço parte daquela que é a última turma de Latim da minha escola. Eu e os meus colegas somos os derradeiros e nunca mais se ouvirá nas paredes da nossa secundária esse falar vetusto quando para o ano concluirmos os nossos estudos. Um pouco por todo o país, o cenário é análogo e a herança romana vai-se gradualmente desvanecendo; a grega, essa há muito passeia manca em orfanatos escolhidos, raros como os trevos quadrifólios. Paulatinamente, o testemunho greco-romano, fundador, com o judaico-cristão, da nossa matriz cultural, vai sendo esquecido com consequências danosas para a sociedade, a começar por uma estupidificação generalizada.

O desconhecimento de nós e das raízes da nossa língua – que é a nossa pátria, como declarava Pessoa – conduz, primeiramente, a uma incapacidade de entendimento do mundo actual e a uma grave e preocupante iliteracia. Foi isso que nos vieram provar os resultados miseráveis e decadentes dos exames nacionais, onde cerca de um quinto reprovou a português e mais de dois terços no de matemática, onde, já várias vezes consecutivas, foi apontado que o principal problema é a inépcia dos alunos em entenderem os enunciados: reflexo da falta de bases linguístico-culturais que não são incutidas aos jovens, porque – argumentam certos senhores – não há necessidade e é uma carga excessiva para as crianças. Contudo, continuam a sobrecarregá-las com novos horários na primária para lá das cinco horas e com disciplinas sem sentido como Estudo Acompanhado e Área de Projecto.

Estamos perante, no fundo, um problema já aqui abordado que é o do mau ensino em Portugal, que mais uma vez verifiquei quando fui renovar a matrícula: prossigo com Francês neste ano final do secundário, mas o Inglês cessou já – foi a escola que assim o ditou, imitando muitas outras em Coimbra. Torna-se incompreensível atendendo à globalização que se serve do Inglês como língua de comunicação. Há tanta preocupação em iniciar já o ensino desse falar na primária, mas todos, pelo seu silêncio, são coniventes com esta situação. Ninguém nota que uma grande maioria – e não se tome isto como hipérbole – dos alunos atinge o final do secundário sem se conseguir exprimir, findos sete anos, duma forma minimamente fluente.

Porque eu sei isto – e sei porque o vejo, e sei porque o vi sempre, e não só a inglês – não me espanta o número de negativas nos exames, achando-as pelo contrário bem positivas. Eu venho proclamar: é preciso reprovar mais! Não podemos permitir que quem não sabe continue, porque é a falta de formação – como tantas vezes tem sido apontado – que torna os nossos trabalhadores muito menos qualificados. É importante a cultura – essa que foi toda banida dos currículos. Porque nos esquecemos das bases da nossa civilização, nunca nesse ponto poderemos competir com os terroristas que, ainda na semana passada, voltaram a actuar: porque eles sabem porque lutam, eles sabem o que defendem. Os políticos ocidentais falam da democracia e da liberdade – conceitos belos, mas aquilo que eles querem defender é algo muito mais complexo e de raízes que, por a população as desconhecer, nunca poderá compreender. Falamos em choque de culturas, mas a cultura atacada não se conhece a si mesma! Que seria, contudo, de esperar quando um recinto se enche – como na feira que recentemente a nossa cidade acolheu – para ouvir Quim Barreiros? E foi isto que substituiu gregos e romanos... o corvo

21 July 2005

Realidade e Ficção

O terror repetiu-se há quase uma semana atrás, com os (in)esperados atentados em Londres, mais uma vez com o cunho do islamismo radical. Apesar da contagem dos cadáveres continuar é, por certo, a acção menos mortífera da Al-Quaeda em capitais ocidentais. Tal facto não reduz a sua barbaridade. Foi cuidadosamente escolhida para desviar as atenções da imprensa da cimeira dos G8 – a primeira desde há alguns anos em que o terrorismo não ia dominar a agenda, ocupando-se com questões mais humanitárias e prementes.

Importante para a compreensão do fenómeno foi o rapto e morte, na semana passada, do embaixador egípcio no Iraque. Mais do que questões religiosas, são divergências culturais que animam este combate entre fanáticos e Ocidente. Este assassinato é uma tentativa de deter os outros países árabes que estão a reconhecer o governo democrático iraquiano. Pode ver-se falhas nesse regime, mas, como dizia Churchill «A democracia é a pior forma de governo com excepção de todas as outras que já foram experimentadas.»

No dia seguinte, já os londrinos regressavam às suas rotinas normais, como uma sondagem de Domingo dum canal televisivo britânico confirmava. Contudo, por muito imune que se declare, uma cidade atingida sofre. Os recentes atentados ressentem-se. Tal fenómeno é particularmente visível na América, depois do 11 de Setembro, por exemplo, no cinema. Este sábado foi anunciada a primeira longa-metragem, pela mão de Oliver Stone, sobre o atentado a Nova Iorque.

Veja-se “A Guerra dos Mundos”, que se estreou esta semana em Portugal. Spielberg já o admitiu: este é um filme pós-11 de Setembro, onde mais do que no cataclismo, a câmara se centra na devastação e no sentimento de desorientação dos personagens. Não se podem deixar de estabelecer outros paralelos: os terroristas estão sediados há muito nos países em que perpetuam os atentados, tal como os extraterrestres do filme, cujo lema de campanha é «Eles já estão aqui».

O primeiro filme de Shyamalan após o 9/11, o magnífico “A Vila”, aborda igualmente a ameaça invisível – as criaturas imaginárias que viviam no bosque em torno à aldeia – numa genial parábola sobre a cultura do medo que se vive actualmente em terras americanas. Regressando aos filmes em cartaz, é de notar o clímax de “Batman Begins”: o Homem-morcego tem de deter um comboio suspenso que colidirá com a torre Wayne. Estranhamente familiar, se tomarmos o comboio aéreo como a metáfora dum avião e alterarmos o nome da torre em questão.

É interessante constatar que as adaptações de bandas-desenhadas para o grande ecrã aumentaram exponencialmente após o 9/11. Apesar de outros motivos ligados mais à indústria cinematográfica, a meu ver, tal deve-se igualmente à necessidade de a América procurar um herói e de as pessoas se sentirem seguras porque alguém as protege.

Mas a ficção e a realidade vão mais longe a 4 de Novembro, com a estreia mundial de “V for Vendetta” (também adaptado da BD), que retrata as explosões levadas a cabo por um rebelde que por meio delas pretende opor-se ao governo fascista que domina a Inglaterra totalitarista num futuro imaginário em que os alemães venceram a Segunda Guerra Mundial. Há quem sussurre que o filme deveria ser adiado devido aos recentes acontecimentos, mas nada poderá adiar as questões inquietantes que ele promete levantar sobre a fronteira e a relação entre conceitos como liberdade, segurança, governo, revolução e terrorismo. o corvo

A Terra, os americanos, nós e eu

O encontro dos G8, que vai ter lugar em Gleneagles, Escócia, aproxima-se. O Reino Unido já estabeleceu quais as prioridades desta cimeira a que preside. Por um lado, o combate à pobreza, que continua a matar 30.000 crianças diariamente, números que justificam acções como o Live8 – oito concertos simultâneos em cidades como Berlim, Londres ou Filadélfia no dia 2 de Julho; palcos onde actuarão artistas de renome pretendendo convocar o maior número de espectadores para assim pressionar os G8 a tomarem medidas drásticas de apoio a África. O segundo grande tema que Tony Blair pretende tratar nesta cimeira é o clima, cujas dramáticas alterações já foram classificadas por ele de “provavelmente, o desafio mais importante que enfrentamos enquanto comunidade global a longo prazo.” Cerca de metade da poluição mundial é produzida por estes países, nomeadamente a América que mantém uma atitude céptica irracional. Esta descrença americana obrigou a que no projecto de declaração final da reunião dos G8, datado de 14 de Junho – como o Público indicava na semana anterior – frases como “o nosso mundo está a aquecer” e “sabemos que o aumento é devido em grande parte à actividade humana” se encontrem entre parêntesis, traduzindo uma discordância dentre os G8.

Mais revoltante ainda é a recente notícia do New York Times de que os relatórios científicos sobre esta temática foram consecutivamente manipulados por um funcionário da Casa Branca que antigamente liderava a luta das empresas petrolíferas contra os limites de emissão de gases. Outros funcionários da Casa Branca prontificaram-se a justificar tal actuação, chegando a afirmar que as alterações feitas aos relatórios científicos eram uma parte natural da revisão efectuada a todos os documentos de igual assunto. Não é descabido lembrar ainda a proibição da administração Bush, aquando da estreia do filme O Dia Depois de Amanhã, de que os cientistas da NASA se pronunciassem sobre a película, que era uma crítica à política anti-ambientalista da sua presidência e que versava sobre os cataclismos que o aquecimento global pode provocar.

Entretanto, enquanto a política de silêncio e inoperância prossegue pomposa, o mundo definha a passos largos. No início deste ano foi divulgado, por parte do Grupo de Trabalho Internacional sobre Mudança do Clima, um relatório onde se afirma que a humanidade tem aproximadamente dez anos para poder reduzir muito substancialmente as emissões de gases poluentes, caso contrário, o risco para ecossistemas e sociedades aumentará significativamente, envolvendo as consequências perdas agrícolas severas e forte escassez de água. O mundo dispõe duma década até atingir o chamado ponto de não retorno. Os estudos científicos mais apocalípticos indicam 2050 como a data em que a vida terrena se terá tornado insustentável.

Também Portugal não está isento. A seca actualmente vivida que tem levado a racionamentos de água como aquele que agora parece também vir a ser aplicado no nosso concelho são consequências directas da instabilidade climática. Um relatório da Agência Europeia para o Ambiente veio revelar, este mês, que fomos o quarto país europeu com concentrações de ozono mais elevadas no Verão de 2004.

Existe um site que propõe que todos saltemos ao mesmo tempo para desviar o planeta do seu eixo, o que supostamente pararia o aquecimento, através do aumento dos dias e da homogeneização do clima. Se nada for feito pelos G8, mais me vale inscrever nessa patética, mas desesperada acção: saltar para salvar o planeta... o corvo

17 June 2005

Presépio Futurista

Tive um sonho de Natal, uma alucinação. E se de são e de louco todos temos um pouco, então a vossa parte louca deverá achar curioso este desvairo de minha mente.

Vi nessa demência minha um presépio de proporções gigantescas. Curvado perante ele, mais por dever da inconsciência que por escolha livre do arbítrio, foi com maior admiração que observei as estranhas figuras que o faziam, todas elas de tamanho desproporcionado. Tudo parecia uma realidade elevada ao quadrado. O gosto pelo espectacular e monumental é velho no homem, para o bem ou para o mal.

Uma senhora explicava à criança que levava pela mão a origem daquele bizarro presépio. Tinha mergulhado no futuro: estava a conhecer o último quartel do século em que redijo agora esta crónica. A mãe do pequeno dizia-lhe que o presépio que ele agora tomava com os olhos fora, no tempo dos seus avós, fortemente diferente. Ao que consegui captar, fora mudado pelos países europeus. Tudo começara neste ano que agora se fecha sobre nós e se contorce já em dores que não se percebem se são de morte e agonia, ou do parto iminente dum ano novo que se abeira.

Em Inglaterra, nesse ano que é o nosso, haviam montado um presépio cuja Sagrada Família era um jogador de futebol e sua mulher, ambos então famosos, que toda a fama é efémera. Segundo a progenitora, tal presépio adulterado acabou por ser barbaramente vandalizado. Que se violasse a imagem de Jesus e Maria, isso, era secundário, uma mesquinhice e implicação dum grupo de malucos e que em nada escandalizava ninguém. Agora que o Mr. Beckham fosse maltratado, ainda que só em estátua, isso era sacrilégio!– gritava o povo.

Na América, também nesse ano, num liceu, tinham-se proibido as canções natalícias que referissem alguma personagem cristã, pois isso era violar a laicidade das escolas públicas. E assim os meninos haviam-se contentado a cantar músicas sobre bonecos de neve, trenós e Pai Natal. Sim, que se Deus tem de ser banido, o capitalismo americano, esse, tem de ser exaltado sempre, na imagem perpétua do Pai Natal, vermelho apenas por causa da Cocacola. Adorá-la e cantá-la é legal; Jesus, esse é um fora-da-lei, já diziam os poderosos no Seu tempo.

Parece que, a uma certa altura, tais países resolveram que era preciso refazer o presépio à imagem dos tempos modernos e sem referências religiosas. No papel de S. José, o Pai Natal. O que mais nele estranhei era o não-ser das suas barbas: haviam desaparecido! Também isso o zunzum ininterrupto da turba clarificou: queria-se era a juventude, o culto desse físico ideal!

Nossa Senhora havia sido substituída por essa personagem, caricatura criatura da Sonae, a Leopoldina. Se Maria quer dizer ‘Senhora dos Mares’, a Leopoldina é a Senhora do Oceano! Quanto ao Menino Jesus, em nada se assemelhava ao Nosso: era uma criança gorda, anafada, com um pacote de batatas fritas gordurosas na mão inchada de gordura. A sua excessiva obesidade devia-se à exacerbada quantidade de horas que passava em frente às televisões, uma de cada lado, aquecendo o menino em vez do tradicional burro e boi.

Também a figura do pastor se vira radicalmente adulterada: aos ombros trazia cordeiros manipulados geneticamente de pele cor-de-rosa fluorescente, e pela mão conduzia uma horda de ovelhas bem maduras engordadas com os incógnitos venenos para a produção em massa dos ovinos. Tudo é produção em massa: pessoas, cidadãos em massa, de cérebros já moldados, prontos a sucumbir sem resistência às tentações do materialismo consumista.

Pouca coisa de facto sobrara do presépio nosso conhecido. Só mesmo os três reis magos haviam sido poupados. O primeiro transportando o ouro precioso –incentivo ao desenfreado luxo; o segundo, carregado com o incenso, que, assim ouvi, adquirira numa coffee shop: era sempre bom mostrar publicamente apoio às drogas leves.

Como alguém tão pomposamente gritou para cerrar a cena de minha tonta alucinação dentre o magote informe que corria as ruas: ‘Eis, irmãos, o Natal – 5€ levam um e outro igual!’. o corvo

Publicado a 22 de Dezembro de 2004 - Considerada por muitos a melhor crónica

Quem atura esta Literatura?

Tenho por hábito vaguear por livrarias, na minha rotina sempre igual na sua regularidade, que por vezes contorno em inesperadas revoltas contra o hábito, tendo elas, contudo, já virado também costume, por seu turno, pela sua frequência. Pelo puro prazer de ver e saber que não posso ter, e moer-me então em desejo, entro pois nessas casas de cultura (que não são as de Santana Lopes), cultivando o meu saber acerca das novidades editoriais, o que mais recentemente se deu à estampa.

Cada minha visita, porém, me tem feito abandonar cabisbaixo aquele abrigo onde antes encontrava refúgio para a leviandade intelectual do mundo que nos circunda, porque, como dizia Torrente Ballester, «A pior forma de solidão é a de dar-se conta de que as pessoas são idiotas». É desmotivante observar as novidades escritas em português, por lusa pena. É que é mesmo uma pena e, não fora trágico, seria ensejo de chorar. A literatura nacional de maior mercado tornou-se o desprezável equivalente à música comercial das rádios ou às comédias hollywoodescas.

Primeiro, o futebol, de todas a maior prioridade nacional. A proliferação de livros escritos por jogadores/treinadores/dirigentes de clubes ou por adeptos com reputação firmada, nomeadamente jornalistas, bem como obras de descrição dum dada temporada ou da conquista dum certo troféu converteram-se num nicho profícuo de vendas, que inunda as prateleiras. Lado a lado com ele, quase evocando a trilogia dos três ‘F’ portugueses do tempo salazarista, aparecem-nos os livros religiosos, hoje em dia aliados aos esotéricos, tendo-se, nas mentes dos livreiros e das pessoas, esbatido a diferença entre os dois sectores. Este boom da literatura religiosa ganha essencialmente com o famoso Código Da Vinci e com a eleição do novo papa. Assim, uma panóplia vergonhosa de livros sobre ambos os sujeitos têm pululado as livrarias, num claro intuito de vender – todos os livros passaram a ser “o livro que inspirou o Código Da Vinci”, remodelaram-se as capas dos antigos livros de Ratzinger. Na literatura nacional, não podemos esquecer o seu expoente: a filha de Raul Solnado, essa grande profetisa, que nos tem vindo a elucidar sobre o que o Jesus Cristo que nos fala quer de nós para este milénio: dinheiro.

Conjuntamente, não podemos esquecer essas obras-primas que têm vindo a engalanar a nossa produção nacional, como por exemplo o recente “Amanhã à Mesma Hora – Diário de uma Stripper Portuguesa” editada pela prestigiada D. Quixote, ou tantos blogues agora impressos com capa – o mais recente o do ‘Gato Fedorento’, ou a libertinagem das publicações humorísticas, que agora, sob a chancela da Texto Editora, invadem o mercado. Mas como ler é aborrecido e cansativo, os engenhosos senhores das editoras contornam o problema anexando aos livros CDs com o melhor deles, ocasionalmente ainda preenchidos com imagens. Algo está podre no reino da literatura de Portugal... E literatura lhe chamar é já um eufemismo, se não uma total hipocrisia.

Escritor amador como gosto de ser nos meus tempos livres em que livros componho, tenho amigos que se me juntam e confessam a sua angústia de não conseguirem publicar o que pretendem. A tal medo, eu lhes replico simplesmente «O que quer que tu escrevas há-de ser melhor do que aí corre, por isso, não te preocupes!». Ou talvez nos devamos inquietar, porque os artistas, os verdadeiros, amadores que se tentam atirar para esse circo de feras das editoras, vêem constantemente barrados os seus caminhos pela lógica capitalista de hoje, pela mentalidade retrógrada dos nosso leitores. A cultura escrita portuguesa está viva? o corvo

Publicado a 15 de Junho de 2005

Ai, que saudades do Faroeste!

Muitos de nós ainda terão presentes na cabeça as imagens do magnífico e chocante documentário Bowling For Columbine, de Michael Moore em que o lobby americano das armas era denunciado em toda a sua crueza, mas sempre num invólucro de corrosivo humor como só este realizador nos sabe oferecer. Muitos contestaram a película, argumentando ser ela parcial e deturpada. Não escrevo para a justificar, mas dos dados que se seguem, cada um tire conclusões.

No dia 11 de Maio do presente ano, a Secretária de Estado norte-americana, Condoleezza Rice, afirmou que a segunda emenda à Constituição (que garante o direito das pessoas guardarem e transportarem armas) é tão importante como a primeira (que salvaguarda a liberdade religiosa, de expressão e de reunião). Rice declarou ainda que “devemos ser muito cuidadosos quando começamos a reduzir direitos que os nossos Pais Fundadores consideravam muito importantes”, criticando, assim, subtilmente as organizações contra a tão fácil obtenção de armas na América.

Na Florida, foi aprovada já em Maio uma nova lei que legalizou ainda mais o uso de força mortal, ao permitir que, inclusivamente em locais públicos, desde que o cidadão se sinta ameaçado, dispare contra o possível atacante. Antes tal direito estava apenas reservado à propriedade fechada (casa e carro, por exemplo) e em espaços públicos o cidadão tinha o dever de primeiramente tentar fugir daquele que o ameaçava. Com a nova lei, esse dever foi abolido e, portanto, à mínima suspeita, somos livres de usar força mortal. Ao assinar a lei, o irmão de George Bush, governador da Florida, declarou, naquele jeito que já vem sendo típico dos Bush, «É do senso comum permitir às pessoas defenderem-se.»

Este recente diploma vem recolocar na ordem do dia aquela que é, a meu ver, uma das maiores discussões com que as nossas sociedades modernas se debatem. Cada vez mais a segurança se torna uma prioridade dos governos e, sob a sua bandeira, numa bandeja entregam os cidadãos a sua liberdade. Ironicamente, quanto maior a obsessão pela segurança física, tanto maior é a insegurança psicológica. Entra-se numa insana paranóia do medo. A nossa liberdade é tanto mais ameaçada se pensarmos no controlo exercido por toda a estrutura da sociedade moderna, que nos obriga a deixar rastos indeléveis das nossas actividades, permitindo a reconstituição delas. Após o 11/9, os serviços secretos americanos chegaram a pesquisar suspeitos baseando-se no registo de livros lidos nas bibliotecas públicas – o medieval Índex regressara. Pela segurança, tudo.

A velha polémica americana das armas é só mais um reflexo desta obsessão pelo inimigo desconhecido que se encarna em cada transeunte com um ar menos simpático. Esta lei, incompreensível para a maioria de nós, distantes da louca realidade dos EUA, resume-se a mais uma manifestação desta deturpada hierarquia de valores, em que a segurança se impõe à liberdade. É necessário realizar, por parte de todas as nações, a escolha entre os dois valores. Eu fiz a minha: a liberdade é o valor mais alto e mais humano que define a pessoa, pelo qual se deve pugnar incessantemente, especialmente num mundo, como o actual, em que ela é tão ameaçada ainda por países que se dizem democráticos, mas continuam a atentar contra ela impiedosamente, só que sob formas mais subtis e delicadas – a perícia da malícia é muita e variada. A cada um de nós cabe a sua escolha e dela deriva a nossa perspectiva sobre o mundo actual. Que ele saiba adequadamente perceber que a segunda emenda não é tão importante como a primeira... o corvo

Publicado a 1 de Junho de 2005

A Lição da Educação - II

Continuando a crónica iniciada há quinze dias, aqui se apresenta a segunda vaga de propostas para um melhor sistema de ensino em Portugal; sugestões estas resultantes das minhas próprias ideias e dum debate com um colega.

6. Obrigatoriedade de exames nacionais de final de ciclo. Uma das principais razões da gigante taxa de iliteracia portuguesa é o facto de, em nome do não elitismo do sistema, consecutivamente se transitarem alunos aquém dos objectivos que deveriam ter atingido. Uma forma de evitar esses favorecimentos, a meu ver, merecedores de tanto repúdio como uma cunha, passa pela efectivação da medida proposta. Caminha-se já em Portugal para essa situação e não se deve nunca ceder às exigências dos estúrdios que reclamam o cessar de tais avaliações e o fim da nota mínima de entrada na universidade. No dia 22 de Abril, o Ministro Mariano Gago reafirmou a sua determinação na obrigatoriedade da nota mínima de 9,5 para entrada nas universidades para assegurar um ensino superior de qualidade mínima. O facto de um governante ter de proclamar isto é a prova suprema de que vivemos numa país retrógrado. Se dúvidas ainda restassem do nosso atraso, basta rir-se com as declarações doutros sectores políticos acusando o ministro de ainda mais favorecer o elitismo do ensino. Sem nota mínima, onde estariam os valores do trabalho, do esforço, do mérito pessoal? É importante a afirmação e valorização do labor de cada indivíduo.

7. Redução dos agrupamentos e maior versatilidade na passagem entre eles. A nova reforma do secundário, entrada em vigor este ano lectivo, só complicou mais a vida aos alunos de nono ano que, face a uma maior gama de ofertas, cada vez mais especializadas, são obrigados a fazer uma escolha vital cada vez mais cedo. Isto só vem entravar a mudança de agrupamento numa fase posterior que só com quatro áreas já é complicada.

8. Forte redução da carga horária. Esta é claramente excessiva e nem a introdução das famosas aulas de noventa minutos a solucionou, porque o tempo que se perdeu com elas (cinco minutos por cada hora, em comparação com os horários antigos), foi somado e recuperado em novos blocos rotativos destinados a retomar esse tempo perdido. As manhãs livres deviam acabar e serem substituídas por tardes, o que é muito mais proveitoso. Já no básico, poder-se-ia acabar com disciplinas sem sentido como Estudo Acompanhado e Área de Projecto; tudo disciplinas que visam desenvolver o lado social do aluno, sem entenderem que isso é tarefa multidisciplinar, comum da família, amigos e sociedade em geral.

9. Mudança do currículo no secundário. Devia acabar a separação entre Português A e B e a Matemática devia tornar-se obrigatório para todos os agrupamentos, sem simplificações para os não-científicos. Isso evitaria muitas falsas vocações (sempre, contudo, cada vez menores) em Humanidades, para além de fornecer aos alunos uma bagagem intelectual imprescindível.

10. Fim de todas as reformas educativas, pelo menos durante um longo período. Acaba por ser frustrante e péssimo em termos de estabilidade educativa as constantes reformas que os diferentes governos promulgam e que de ano para ano mudam tudo, frequentemente para pior. Há que elaborar um pacote radical e profundo de alterações que reúna um vasto consenso partidário (ou, pelo menos, de dois terços da Assembleia), aprovar essa última reforma e deixá-la ser aplicada. Só vários anos mais tarde se poderia considerar uma revisão, depois duma inteira geração ter passado por ela e ser, assim, possível avaliar os seus afeitos reais. Melhor educação é possível! o corvo

Publicado a 18 de Maio de 2005

A Lição da Educação - I

Um amigo meu de longa data, filiado desde o início deste ano numa juventude partidária coimbrã, falando comigo numa noite cibernética, contou-me que fora convidado para ser representante dos alunos do ensino secundário na comissão política dessa organização. Honrado com a proposta, aceitou-a. Apesar da minha postura reticente face aos partidos, não pude deixar de me alegrar com o sucesso deste meu colega. A propósito deste acontecimento, iniciámos um curto debate sobre a educação, nomeadamente a secundária – a que nos diz mais respeito. Dessa conversa amena surgiu uma série de ideias reformadoras que estão na base desta crónica.

1. As turmas deviam ser mais reduzidas. É um lugar-comum da pedagogia, mas a verdade é que na mais recente manifestação das associações de estudantes não era uma reivindicação, dando-se primazia a outros assuntos como o fim dos exames nacionais. A título de exemplo, a minha classe contém em si três diferentes que se fundiram numa só, o que leva a uma desigualdade de horários escolares tremenda: enquanto há colegas que usufruem de três tardes livres, um outro terço da turma só goza duma. E, é certo e sabido, quanto menos alunos, tanto mais a aprendizagem tende a ser mais efectiva e proveitosa.

2. A inexistência duma tal variedade de manuais escolares. Se o meu amigo pretendia um livro único, eu, não chegando a esse extremo, admito, todavia, apenas duas ou três variantes. Isto é, para uma disciplina dum dado ano de escolaridade, as escolas só devem poder optar por um número limitado de manuais, de modo a que haja uma muito maior homogeneidade entre os estabelecimentos de ensino do nosso país. É espantoso constatar que hoje em dia a mesma editora chega a oferecer dois ou três manuais para a mesma matéria. A aplicação desta norma facilitaria muito mais a transferência de escola a meio do ano lectivo para os alunos que o fizessem.

3. Uma efectiva intervenção do Estado, com um órgão controlador tanto do preço como da qualidade. É vergonhoso o peso no orçamento familiar que os manuais têm no início do ano lectivo. Outra forma de o reduzir seria assegurar a continuidade dos manuais escolares por um período de tempo mais longo do que o actual, de modo a que os irmãos pudessem, sempre que possível, reaproveitá-los.

4. A mudança profunda dos programas. O caso mais notório que eu e o meu parceiro de discussão comentámos foi o da disciplina de inglês, essa tal que agora também teremos na primária. O programa de inglês ao longo do básico e secundário é simplesmente infantil e ridículo, consistindo, a partir sensivelmente do meio do percurso escolar, duma recapitulação do anteriormente dado, que por si é tremendamente insuficiente para o nível de inglês que é exigido para a sociedade global em que vivemos. Em virtude disto, a maioria dos estudantes é simplesmente medíocre, incapaz de manter uma conversa de nível médio-alto durante um período médio-longo, sem bases para entender um texto literário ou escrever uma carta formal.

5. Fala-se em prolongar o ensino obrigatório até ao décimo segundo ano. Não tendo uma posição definida sobre o assunto, considero, porém, mais importante que se torne obrigatória a creche, que, sendo já uma prática muito comum em Portugal, merecia, contudo, um maior destaque, mais apoio económico e um maior desenvolvimento. o corvo

Publicado a 4 de Maio de 2005

Youth Of The Nation - II

O pensamento é fatigante e é mais fácil ser-se jovem praticante do vazio mental. Tal raça de gentes fazem contentes os manipuladores, senhores que pululam por todo o lado e se aproveitam destes inocentes mentais. Alguns jovens associam-se a juventudes partidárias, numa forma só um pouco mais sofisticada de consumo de ideias feitas, mas que, numa sociedade que é a nossa, os faz ganhar reconhecimento, mas nunca conhecimento. Mais provável é que provem o cunhacimento, cimento de toda a lógica partidária.

Há uma tolerância de opiniões que é indiferença, porque condescendência não é inexistência de diferendos e discussão. Cada um aceita a outrém opinião, mas não se procura apurar a verdadeira. A verdade não é prioridade desta juventude enquanto isso não a prejudica directamente. Por isso não há claridade, não há transparência, só aparência. “O mundo pode ruir desde que não me mate a meio do apocalipse” – vede o espiritualismo desta gente, tão desapegada da matéria e das coisas do mundo! Ironia, quão doce és, que nos fazes dizer verdades ao revés!

É preciso o confronto para que surja uma nova ordem. Mas esta é a juventude do “peace and love and money”, como pregava o anúncio recente dum automóvel. Não percebe ninguém, porém, como alguém escreveu, que “a paz dos homens é a guerra das ideias”? Não, ninguém entende, que este é o tempo da iliteracia que a todos se estende, como um polvo que sobre todos esparge a sua tinta negra e a ignorância faz-se regra. Ninguém precisa de entender, só tem de tender para onde tende a massa, o grupo – disso o sucesso depende, nem que isso signifique que o jovem – que o homem! – sua liberdade a uma caixa quadrada venda. Venda lhe tolha os olhos!

Nem a verdade nem a liberdade são bandeiras desta geração que só quer bandejas. Como se podem os jovens revoltar? Revolta implica pensamento. Revolta pede movimento. Mas é inércia o sentimento que doma e come toda esta geração. O mundo parte-se em bocados, o fim caminha a passos largos e aqueles que serão os governantes de amanhã dormem encostados, desencontrados do real. O mundo vai mal, mas não é esta juventude mole que o poderá mudar; ainda que o vá mandar, não o vai emendar. Onde está a rebeldia doutrora, meus irmãos? No armário em que o povo nos coloca nesta idade? Não sentis já o cheiro a mofo que o preenche?

Não, vejo-me ao espelho e comigo olho toda a juventude. Não encontro nos seus rostos o fulgor que construiu maios de 68 e hippies, ou o que monta agora marchas de liberdade no país do cedro, Líbano distante. Não, a juventude portuguesa o melhor que consegue fazer é trancar a Porta Férrea e pôr uma carrinha à frente porque a meia dúzia de gatos pingados que a velavam têm de ir tomar um café. Não, a juventude de hoje só consegue protestar para não ter de pagar propinas para lhe sobrar mais dinheiro para ir à discoteca. Não, a minha juventude só consegue reclamar para ter educação sexual porque infelizmente são todos uns coitados ignorantes que nunca ouviram falar de sexo e afins. Não, esta juventude só consegue lutar pelo aborto porque o prazer libidinoso deu para o torto e mais vale ter fora o caroço do que ter de tratar do bebé moço.

Assisto à sesta deste bicho que sou eu e os iguais a mim e ao declínio do nosso poder, ao enrouquecer da nossa voz, ao enlouquecer de nós, que só a loucura justifica esta decadência. E aguardo o fim da nossa demência... o corvo

Publicado a 20 de Abril de 2005

Youth Of The Nation - I

O título desta crónica é homónimo duma música dos P.O.D. cujo refrão é precisamente este grito cantado pelo vocalista e um coro de jovens: We are the youth of the nation (“Nós somos a juventude da nação”). A letra acaba, contudo, por revelar a delinquência, violência e decadência da massa escolar de alunos, mostrando bem que juventude da nação é aquela apregoada pelo cantor. Enquanto jovem, não posso deixar de reflectir sobre a minha condição e a da minha faixa etária: o nosso estado, os nossos objectivos, os nossos problemas, a nossa identidade. Os jovens são a minha comunidade, a juventude é a minha sociedade. Porém, eu olho em volta, volto a face e peço que me enterrem a cabeça na areia, tal avestruz, porque não encontro luz ao fundo do túnel para os meus irmãos.

Sinto, apalpo mesmo, nos seus rostos e nas suas mentes, em tantos, uma indiferença a que tudo votam indiferentemente. São agnósticos do mundo. Face a qualquer assunto, encolhem ombros, enrugam a face, calam a boca: nada é objecto de opinião entre eles – opinar é trabalhoso, empinar ideias feitas, menos moroso. É este o nosso tempo: a era dor produtos light, a época do microondas. Um tempo em que se compra tudo em pó e do pó tudo se ergue ao fim de cinco minutos, para logo a gula o consumir e tornar pó de novo. Um tempo em que Roma e Pavia são feitas num dia, porque só para um dia são precisas. Vivemos num mundo descartável.

Para quem, contudo, a mente deixa dormente, mente-se se se disser que são ideias complexas, essas que os jovens na sua preguiça tomam para si. Não, tudo se resume a escassos esquissos, e não porque a obra final ainda está longe, mas porque não interessa mais do que ter a ideia geral. É este o nosso tempo: o tempo dos livros de resumos e dos resumos dos resumos, onde a informação é em segunda mão e, assim, é o tempo do ouvi dizer que se ouviu falar, dos boatos que batem em campanhas eleitorais e tantas situações mais. É o período da segunda mão que a criação é dolorosa e custosa, e ninguém quer ter calos nos dedos.

Esta indiferença, este contentamento com a contenção do saber, com o não ter mais que meio rabisco sobre tudo, incomoda-me, mais ainda porque se mostra como moda, numa soberba de exibir ignorância que me recorda a nobreza doutros tempos e que aqui encontra a sua reencarnação, numa massa jovem que se sacrifica por tendências voláteis, por um consumo que é sumiço do dinheiro que nem é seu. Como bicha-solitária, esta juventude definha as finanças da casa para satisfação do seu egoísmo, em vez de tudo arranjar por si mesma para si mesma, numa solidão que lhe dita o nome com que a coroo. Coro de vergonha por ver que esta juventude que é a minha não sonha com nada mais alto, não quer dar o salto para um futuro incerto.

Este materialismo é só o reflexo do niilismo intelectual a que tudo se reduz entre os jovens. A quota que era do espírito transborda na ânsia de satisfação para a carne e aí procura o colmatar da mente que lhe falta. Não percebem que o saber tem uma vantagem: não ocupa lugar. Mas os brinquedos que adquirem para distracção da inocuidade em que transformam as vidas deles não cabem para sempre nos recantos em que os armazenam. A necessidade de ter enche-lhes a alma e logo, pois, para que o novo venha, deitam fora o velho. A tudo é dado prazo de validade – perdeu-se a noção de eternidade. Ninguém mais luta por vencer a memória curta humana, por se imprimir eterno nas páginas da história, por ser herói e artista. Quer-se tudo temporário, porque compromissos a longo prazo são promessas que não agradam fazer, porque só uma regra lhes parece regular a vida: o devir, a mudança, uma perpétua dança entre experiências. Os jovens hoje são atletas que passam a vida a mudar de pista, mas nunca arrancam da partida, porque nem sequer têm meta ou mote que os guie... o corvo

Publicado a 6 de Abril de 2005

13 March 2005

Um problema dos diabos

Perdoe-me o leitor esta nova incursão no campo teológico-filosófico, área de pensamentos intrincados e não muito propícia a ser posta em crónica. Contudo, uma curta discussão amigável me lançou em cogitações sobre o tema deste texto e não pude evitar dar-lhes um corpo escrito, que aqui quis partilhar. Me interrogo pois sobre essa figura que é o diabo.

Há quem diga que a existência do diabo é requerida pela liberdade com que Deus quis abençoar o homem. Deus seria a fonte do bem e o diabo, a do mal, permitindo tal dicotomia maniqueia o exercício do livre arbítrio humano. Mas será mesmo o diabo uma exigência do nosso alvedrio? Analisemos a estrutura da liberdade. Esta só existe se houver escolha. Há escolha se houver pelo menos duas opções que são, se não totalmente, pelo menos parcialmente, opostas. Ora, o mal que o homem pode engendrar por si existe porque Deus entendeu, e bem, que mais vale ao homem ser livre que feliz. O que eu defendo, é que o mal é independente da existência duma figura que o encarne e promova. Isso revê-se na própria história cristã de Lúcifer, aquele que transporta a luz, numa tradução etimológica.

Lúcifer, ainda anjo, ainda não diabo, e num tempo em que tal criatura nem sequer existia, pôde optar por seguir o caminho do mal, numa decisão livre e assumida. Daqui se conclui, que o mal existia antes do diabo, pois só o mal poderia levar a que um anjo se corrompesse para ser diabo. O diabo é posterior ao mal. Daqui se concluiu, que a inexistência de diabo em nada atenta contra a minha liberdade e o poder do mal é tão forte numa situação sem diabo como com ele: o mal devia já ser muito poderoso, para poder fazer com que a criatura mais alta de todas, o melhor anjo, se voltasse contra o seu senhor e quisesse ser seu antagonista. Deus deixava-nos ser livres, e bem livres, sem diabo. Se se afirma que o diabo existe, então Deus consentiu nele.

Na sua omnisciência, Deus sabia decerto que dos anjos que criava, um deles lideraria uma rebelião contra Ele e contra os homens. Se Deus consentiu no diabo, parece-me que foi só para ter o prazer de o derrotar no Apocalipse. Porque de resto, não é preciso diabo para nada – o ser humano já é mau por natureza, e ainda que o não fosse, está na sua natureza compreender o bem e o mal e poder optar livremente por um e por outro, isto, independentemente da existência do diabo ou não.

Só se evita este problema se o diabo não tiver sido a degeneração duma criação de Deus. Mas então ele é uma força primitiva, tão primordial quanto Deus. Mas porque não o aniquilou Deus, se Ele é omnipotente e, pelo menos assim querem que creiamos, mais poderoso que Lúcifer? Se Deus não pune o diabo, que sentido tem que puna os homens pérfidos condenados ao Inferno? Se o não pune, é porque nele consente ou não tem poder para o destruir, porque sabe que o diabo é tão poderoso como Ele. E assim o universo assistira a uma invisível Guerra Fria...

Ainda recentemente o Vaticano abriu um novo curso sobre exorcismo, num gesto incompreensível para mim, pelo menos se entendermos exorcismo na acepção comum do termo. Este não é o meu Deus. O meu Deus é amor, não consentiria no diabo. Se há diabo, parece-me então que Deus é tão diabo como o diabo. Só me resta pois concluir: o diabo que vá para o diabo! o corvo

Crónica Inédita

Semana Passada

Há semanas atribuladas que merecem ser contadas. Desculpem-me os leitores esta crónica se debruçar sobre a minha vida pessoal, mas julgo que os três acontecimentos que narrarei a seguir são fortes em mensagem.

Na minha escola, encontrava-me ligado à Associação de Estudantes, ocupando o cargo de director do jornal escolar, um projecto promovido pela lista que actualmente detém o poder. Aconteceu que dinheiro desapareceu, o que causou, naturalmente, um clima de desconfiança geral entre todos os membros da lista. Com um grupo significativo, evocando falta de unidade e condições para prosseguir o trabalho, demiti-me. Foi um acto que me custou bastante. Crera eu ali achar mudança, honestidade, humildade – essas palavras chaves que tanto haviam sido apregoadas durante a campanha. Fiquei defraudado. Mais isto me convenceu do lugar-comum que é o dito de que o poder corrompe. Não há poder que não se constitua que entre os honestos não tenha os corruptos. Todo o poder é uma desilusão.

Um amigo meu foi ao Dia da Defesa Nacional na terça, respondendo às suas obrigações enquanto maior e cidadão masculino do estado português. O que ele me relatou, que eu já em anos passados ouvira doutras bocas, reclama ser descrito e tornado público para que se conheça claramente o absurdo e truanice que em tal dia são praticados. Começa o quadro do dia com o degredo da juventude nacional, embebida e embebedada em Licor Beirão, cumprindo um “dever nacional”, assim lhe chamariam os oficiais que os interpelaram a consumirem bebidas alcoólicas nacionais. Mas os sábios conselhos dos nossos oficias não se cingiram a esta recomendação, exortando os jovens a se aproveitarem de jovens estrangeiras para lhes mostrarem como o nosso país é bom. Sim, que – como disse outro oficial – “o nosso país é pequeno, pobre e feio, mas é dever nosso protegê-lo.” E vejam, leitores, qual a qualidade daqueles incumbidos de tal missão... A acrescentar a tudo o já contado, há o uso repetido de linguagem explícita, grosseira e baixa, tanto por parte de oficias masculinos como femininos – viva a igualdade dos sexos! E, por fim, no arrear da bandeira, depois dum aviso sonoro para que todos respeitassem o símbolo máximo da nação, ainda a bandeira não está toda descida, e um oficial se começa a rir, e com ele, todos, exército e mancebos. É esta a comédia do Dia da Defesa Nacional.

A tragédia da vida é outra. Uma colega que me era muito querida anunciou-me, a mim e a outros colegas, que vai ter de abandonar a escola para ir trabalhar e assim ajudar a mãe. Deixa para trás os seus sonhos, os palcos de teatro que ela tanto queria conquistar e tão bem o fazia, numa arte e mestria incomparáveis! De tudo abnega pela mãe, por decisão própria, sem que ninguém a tenha obrigado. São pessoas como ela que me fazem crer que ainda existe algum bem no mundo, que nem todos os corações humanos são podres e insensíveis, de que o altruísmo – o heroísmo! – ainda é possível nesta terra decadente. O seu gesto foi uma das mais poderosas lições de moral e vida que algum dia me pregaram. Que eu saiba aprender com ela na memória saudosa da sua pessoa que nunca me deixará. Obrigado por tudo, Cláudia! o corvo

Publicado a 16 de Março de 2005

Preto no Branco

Um dos maiores ganhadores da noite de eleições não foi entrevistado. Falo do voto defendido por um nobelizado português no seu último livro e por um anónimo movimento (www.umrumoparaportugal.com): o voto em branco, que sofreu um incremento fenomenal. Este quase duplicou quando comparado com 2002, atingindo os 1,81% e saldando-se em mais de 103 mil votos. Em Lisboa foi a sexta força e valeria um deputado. Na nossa terra sofreu um aumento exponencial, atingindo os 250 votos, mais que todos os partidos menores somados, que se ficaram pelos 148.

O voto em branco é uma bomba nuclear da democracia, que está nas mão dos donos de todo o poder num regime assim: o povo, que contudo ainda não se apercebeu do enorme potencial que reside nesse gesto de expressão tão inequívoca. Dum boletim assim deduz-se, preto no branco, insatisfação e descontentamento, parelha de sentimentos que podem abarcar um sem número de diferentes interpretações. Dentro desta panóplia de leituras, entre os que acham o branco um sinal antidemocrático e os que nele vêem uma tentativa de melhorar o regime, encontra-se um denominador comum, que todos confirmam: quem assim escolheu, mostra uma clara recusa do leque que lhe é oferecido. Porque na democracia, a cavalo dado olha-se o dente.

As razões por detrás de tal negação da ementa política são, logicamente, a abjuração dos «políticos incompetentes» do Sr. Silva, para o chamar como o Sr. Jardim, que jardim algum gosta de silvas. O voto é branco é um grito de quem pede uma reestruturação duma política que olha e vê caduca, oca de ideias e rouca de tanto bradar demagogias e populismos. É o voto de quem não se revê, mais do que em caras, em partidos em cuja ideologia (se é que há alguma no seu gene) não encontra a resposta que sente que o país precisa. Um voto contra o sistema? Certamente, quando, por sistema, o sistema nada concretiza, banhando-se em promessas vãs.

Muitos recusam o voto em branco, apelidando-o mesmo de absurdo, por o julgarem um tiro no escuro. Mas só se for um tiro no escuro que é a noite da nossa política, tão embrenhada, como todos sabemos, em erros e enganos. E muitos tiros no escuro atingem decerto o alvo – o acaso levará uma bala ao destino. Consideram-no tantos sem sentido, porque não elege ninguém nem exprime nenhuma alternativa. Contudo, também não o exprime o boletim para quem assim vota, não achando em candidato algum uma opção. Quem vota em branco vê que a política está preta. O seu acto é um pedido de inovação, de mudança. É uma oração por uma outra forma de fazer política. Quem assim reza, pode não saber que utopia é aquela que pede, mas sabe que precisa de ser pedida, e só lamenta que os homens não se sentem para a discutirem e do abstracto dela passaram ao físico.

O Movimento que surgiu nestas eleições foi vital para que os votantes em branco percebessem que não estão sozinhos, mas que se podem organizar e cooperar, articular uma estratégia. O Movimento fez o eleitor branco tomar consciência do seu grupo e arranjar uma forma de expressão pública, que se materializou em cartazes e reportagens acerca deste fenómeno. Acima de tudo, teve o mérito de provar que o voto em branco é um voto útil (este sim). Bons augúrios nos esperam se esta forma de manifestação aumentar futuramente, colocando a nossa política entra a espada – arma branca – e a parede, exigindo-lhe mais. Aguardemos com expectativa. o corvo

Publicado a 2 de Março de 2005

26 February 2005

Ilações das Eleições

1. O gozo do espectáculo há muito se perdera: a vitória rosa era já antes da noite claramente afirmada, firmada em sondagens (aquelas que Santana contava processar) e no comum senso (para muitos sonso). Insosso deve pois ter sido o êxtase socialista, desprovido do gosto do inopinado. A dúvida inquietante era ainda a maioria absoluta, mas até o sabor de tal surpresa roubou Sócrates aos seus, de tão certo estar nela. Talvez por tudo isto, o desfile que é costume no triunfo não se viu cantado por caravanas de carros correndo a cidade. Lamento o gordo sucesso: é o cessar dum debate que era tão preciso e que o absolutismo dispensa.

2. O descalabro laranja é ímpar e imparável se acentuou à medida que o sufrágio se terminava. Santana é o fenómeno axial que percorre, unindo e dando coesão, todo este naufrágio. A seta laranja surge-me aos olhos desfasada da realidade, quando a comparo com a linha dos resultados. Mas tal queda era uma aposta previsível, até pecou por não ter sido mais. Santana retratou-se, retractando-se do fracasso, a ele mesmo, num discurso de muitos gumes e facas. O bebé morreu estrangulado nos tubos da própria incubadora. Fez-se de mártir para o bem do partido, partindo dele. Terá setenta virgens à espera no céu.

3. Os comunistas e o seu partido satélite (ou direi mais parasita?) ecológico recuperaram o seu terceiro posto, acompanhando a suprema subida da esquerda. Também no nosso concelho conseguiu inverter os resultados tendencialmente descendentes, ganhando pouco menos que uma centena de votos. Eis mais um caso em que a mudança de líder recompôs a marcha: a rouquidão de Jerónimo ainda teve força para cantar vitória.

4. Os democrata-cristãos sofreram uma ligeira derrota quando olhando para o passado, mas uma forte desilusão se considerarmos o futuro a que se candidatavam. Portas abriu a porta para um substituto, no melhor discurso da noite: viu-se um político sem hipocrisia, ave rara nesta selva que é a política nacional. Era tal a translucidez do seus discurso sem rodeios e malabarismos demagógicos ou vitimizantes que o fez, se não um vencedor, por certo não um vencido. Como Santana, a saída de Portas abre um futuro mais promissor do seu partido. O seu sempre sorriso não abafava o quase-ódio que lhe era movido por uma camada da população a um nível irracional, mas que latejava forte. Um novo líder não terá tal estigma absurdo, mas real.

5. O Bloco fracassou, como os populares, os seus objectivos declarados, mas isso quase se torna irrelevante quando olhamos para a sua astronómica subida (bastante previsível e aqui pecou-se por defeito). Tal passo de gigante já amputou o Bloco, contudo, de duas daquelas que eram, a meu ver, das características mais apelativas dele: a inexistência da imagem dum líder e a rotatividade dos lugares no Parlamento, cujo fim Louçã já anunciou. O risco do Bloco é tornar-se um partido institucionalizado, como todos os outros. A adesão que recebe nas camadas mais jovens apresenta-se-me como consequência de ser um partido muito recente, cuja ascensão pode ser seguida por uma nova geração, a primeira posterior à Revolução dos Cravos, tendo em conta que já passaram 30 anos.

6. Um dos maiores ganhadores da noite não foi falado. Não convém muito, especialmente num país onde cientistas políticos o intitulam de ‘antidemocrático’. Falo do voto defendido por um nobelizado português no seu mais recente livro e pelo Movimento Um Rumo Para Portugal (www.umrumoparaportugal.com): o voto em branco sofreu um incremento fenomenal. Calculo que esse politólogo, em consonância com o dito na entrevista que concedeu à revista ‘Pública’, esteja agora a “olhar com atenção” essa “subida interessante”. O voto em branco quase duplicou quando comparado com 2002, atingindo os 1,81% e saldando-se em mais de 103 mil votos. Em Lisboa foi a sexta força política e valeria um deputado. Na nossa terra sofreu um aumento de aproximadamente 175% face às legislativas anteriores, atingindo os 250 votos, mais que todos os partidos menores somados, que se ficaram pelos 148 votos. O voto em branco provou ser uma opção digna de crédito e promete grandes surpresas para o futuro. o corvo

Crónica Inédita