11 December 2005

Morangos com Bolor

Uma série de acontecimentos recentes – inclusive uma reportagem da revista Xis sobre o tema – incutiu em mim o desejo de analisar mais este produto de lixo televisivo duma estação que é o paradigma da falta de qualidade: Morangos com Açúcar (McA), a novela juvenil da moda.

No fundo, em McA temos a versão portuguesa de novelas como Malhação/New Wave, no seguimento da estratégia da TVI de produzir – sob a aura meritória da produção nacional – versões emuladoras dos êxitos da sua concorrente directa, a SIC. É o mesmo pensamento que está subjacente, por exemplo, ao Inspector Max, unanimemente visto como uma tentativa mal sucedida e fraca de copiar a fórmula da vitoriosa e fascinante série Komissar Rex. Note-se a semelhança assustadora entre os dois nomes. Quando, contudo, a TVI ousa tentar ser original, temos nomes como McA, que levou a um amplo gozo. Convém ainda acrescentar que, apesar de ter caído no esquecimento geral, o primeiro passo dado no que respeita a novelas juvenis lusas não coube à quarta estação, mas à pública, com o saudoso Riscos (1998) – série bem mais séria.

Numa reportagem, a coordenadora da novela, Patrícia Sequeira, afirma «Queremos que sejam [os McA] vistos como reais». O triste é serem-no e não o serem simultaneamente. Parte substancial dos adolescentes vê-se retratados nas personagens, com uma vida que é tão comezinha como a novela, tão reduzida e redutora como ela. Os McA estão inseridos na acção sincronizada dos media de estandardização da classe juvenil, em conjunto com as rádios e as revistas como a Bravo ou mesmo o novo suplemento dominical do Público, a Kulto. A frase de Patrícia Sequeira – «...mas tem de seguir aquilo que eles querem.» – vem confirmar que este género de produtos juvenis vendem e, mais, são desejados. Num ciclo vicioso, os seus consumidores fomentam a proliferação destes manifestos anticultura, mas eles asseguram que novas gerações da mesma massa continuam a surgir perpetuamente.

Porém, retomando o declarado acima, é enganador julgar que os McA possuem uma relação com a realidade que não seja somente acidental. A novela marginaliza – formando no espectador uma ideia estereotipada da juventude nacional – toda uma série de adolescentes, desde os punks até à outros subgrupos, tais como os góticos, que não se enquadram de modo nenhum na visão maniqueia dos McA. Uma panóplia de acontecimentos que afectam os jovens nunca foram abordados, tal é a obsessão da novela pelas tramas amorosas. Refiro-me, por exemplo, à morte de um amigo, à imagem do aluno sistematicamente repetente, ao ostracizado da turma, ao estudante que abandona a escola – tudo situações bem reais, mas omitidas, pois não esqueçamos as palavras da coordenadora da série «Achamos que é importante sermos didácticos [...] também queremos dar alguns valores, dar uma moral, dar umas liçõezinhas». Cinismo puro.

A qualidade – ou falta dela – de representação que os actores amadores demonstram é tal que se tornou recorrente, no seio da comunidade juvenil, quando se quer criticar o mau jeito de alguém para as artes dramáticas, referir a novela, que é um paradigma negativo de arte. Mas os McA seguem no seu alto astral: existem já agendas, discos que se vendem e ocupam os primeiros lugares nas tabelas de êxitos, e, até mesmo – perdoe-se o insulto que nos fazem! – livros! O primeiro dos quais esgotou a edição numa semana. Mais indescritível ainda é o fenómeno D’ZRT, indissociável da novela, a ver numa próxima crónica. Entretanto, os Morangos continuam cheios de bolor, mas as pessoas preferem chamar-lhe açúcar... o corvo

Crónica saída a 12 de Outubro de 2005

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