11 December 2005

Recordar Laranja Mecânica

A revista Sábado começou a lançar uma série de DVDs do mestre Kubrick, que se inaugurou com a mítica Laranja Mecânica. Este poderoso filme mostra-nos o delinquente Alex, que com o seu grupo de amigos se entretém a espancar e a violar noite dentro, sem qualquer objectivo senão o gozo que daí retira. Ainda hoje polémica, a película é uma crítica à juventude desprovida de valores, obcecada, como o protagonista, com Beethoven, sexo e sangue.

O mundo futurista de Kubrick tornou-se, com o tempo, bem real. Os recentes acontecimentos em França vieram revelar uma juventude sedenta de distúrbios e de manifestações de força. Os críticos têm procurado explicar este fenómeno com a integração deficitária dos jovens dos subúrbios e uma discriminação latente na sociedade francesa. A estes factores, juntam a falta generalizada de perspectivas das camadas mais novas e o desemprego de massas que aflige estas zonas. Porém, nem mesmo as afirmações, quiçá imprudentes, de Sarkozy – o qual, como o próprio fez questão de apontar, é descendente de imigrantes, como o seu apelido regista – ilibam os adolescentes.

Embora a princípio pudesse haver um objectivo político – e que objectivo político esse, tão reduzido que apenas pede a cabeça de um ministro, sem uma visão global para a sociedade!, rapidamente este movimento incendiário perdeu essa conotação, tornando-se numa mera diversão. Assim se explica o seu alastramento a outras cidades do Hexágono e, mais notavelmente, aos países vizinhos, onde não havia qualquer razão imediata para a sublevação dos bairros, senão o mimetismo.

O fenómeno de delinquência juvenil não é exclusivamente francês. Na América, há todo um historial dos massacres escolares, apenas uma outra faceta do mesmo problema. Recordem-se as declarações de Brenda Spencer, responsável por um massacre escolar, que se justificou afirmando: “Eu não gosto de segundas-feiras. Isto anima o dia.” ou “Não houve razão nenhuma para tal, e foi imensamente divertido.” e “Era como alvejar patos num lago”.

Em Inglaterra, este ano veio revelar o assombroso happy slapping (à letra, ‘bater feliz’): enquanto um transeunte ao acaso é espancado (com ocasionais violações ou disparos), um membro do grupo, com uma pequena câmara ou mesmo o telemóvel, grava o acto para mostrar a conhecidos ou pôr a circular na internet, onde se compete pela melhor agressão. Mesmo a situação em França, no mesmo dia em que morreram os dois adolescentes cuja electrocussão acidental espoletou todos estes eventos, um homem foi espancado até à morte em frente a dezenas de pessoas, que, passivamente, assistiram à cena.

Atribuir as culpas às televisões, aos videojogos, ao metal, é como atribuir a “intifada francesa”, como lhe chamou o Público, a toda a série de factores que os críticos enunciaram, esquecendo-se do principal: o genuíno gosto da destruição. A verdadeira causa deste é a tremenda perda de valores, resultante da educação que os pais (não) dão aos seus filhos e pela qual o Estado é também co-responsável. Enquanto não o percebermos, a Laranja Mecânica continuará a espremer o seu sumo... ■ o corvo

Crónica saída a 23 de Novembro de 2005

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