13 March 2005

Um problema dos diabos

Perdoe-me o leitor esta nova incursão no campo teológico-filosófico, área de pensamentos intrincados e não muito propícia a ser posta em crónica. Contudo, uma curta discussão amigável me lançou em cogitações sobre o tema deste texto e não pude evitar dar-lhes um corpo escrito, que aqui quis partilhar. Me interrogo pois sobre essa figura que é o diabo.

Há quem diga que a existência do diabo é requerida pela liberdade com que Deus quis abençoar o homem. Deus seria a fonte do bem e o diabo, a do mal, permitindo tal dicotomia maniqueia o exercício do livre arbítrio humano. Mas será mesmo o diabo uma exigência do nosso alvedrio? Analisemos a estrutura da liberdade. Esta só existe se houver escolha. Há escolha se houver pelo menos duas opções que são, se não totalmente, pelo menos parcialmente, opostas. Ora, o mal que o homem pode engendrar por si existe porque Deus entendeu, e bem, que mais vale ao homem ser livre que feliz. O que eu defendo, é que o mal é independente da existência duma figura que o encarne e promova. Isso revê-se na própria história cristã de Lúcifer, aquele que transporta a luz, numa tradução etimológica.

Lúcifer, ainda anjo, ainda não diabo, e num tempo em que tal criatura nem sequer existia, pôde optar por seguir o caminho do mal, numa decisão livre e assumida. Daqui se conclui, que o mal existia antes do diabo, pois só o mal poderia levar a que um anjo se corrompesse para ser diabo. O diabo é posterior ao mal. Daqui se concluiu, que a inexistência de diabo em nada atenta contra a minha liberdade e o poder do mal é tão forte numa situação sem diabo como com ele: o mal devia já ser muito poderoso, para poder fazer com que a criatura mais alta de todas, o melhor anjo, se voltasse contra o seu senhor e quisesse ser seu antagonista. Deus deixava-nos ser livres, e bem livres, sem diabo. Se se afirma que o diabo existe, então Deus consentiu nele.

Na sua omnisciência, Deus sabia decerto que dos anjos que criava, um deles lideraria uma rebelião contra Ele e contra os homens. Se Deus consentiu no diabo, parece-me que foi só para ter o prazer de o derrotar no Apocalipse. Porque de resto, não é preciso diabo para nada – o ser humano já é mau por natureza, e ainda que o não fosse, está na sua natureza compreender o bem e o mal e poder optar livremente por um e por outro, isto, independentemente da existência do diabo ou não.

Só se evita este problema se o diabo não tiver sido a degeneração duma criação de Deus. Mas então ele é uma força primitiva, tão primordial quanto Deus. Mas porque não o aniquilou Deus, se Ele é omnipotente e, pelo menos assim querem que creiamos, mais poderoso que Lúcifer? Se Deus não pune o diabo, que sentido tem que puna os homens pérfidos condenados ao Inferno? Se o não pune, é porque nele consente ou não tem poder para o destruir, porque sabe que o diabo é tão poderoso como Ele. E assim o universo assistira a uma invisível Guerra Fria...

Ainda recentemente o Vaticano abriu um novo curso sobre exorcismo, num gesto incompreensível para mim, pelo menos se entendermos exorcismo na acepção comum do termo. Este não é o meu Deus. O meu Deus é amor, não consentiria no diabo. Se há diabo, parece-me então que Deus é tão diabo como o diabo. Só me resta pois concluir: o diabo que vá para o diabo! o corvo

Crónica Inédita

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