O exacerbado consumismo, referido na passada crónica, das adolescentes japonesas – essa geração que apelidámos de “pedi, e ser-vos-á dado” – reflecte, na sua forma mais pura, o vazio que as enche, se tal antítese é possível. E mais uma vez, a sociedade nipónica funciona como reflexo da nossa. O consumismo obsessivo das raparigas é uma alienação de si próprias, porque lhes falta uma individualidade, que elas a todo o custo transferem para as roupas, que passam a ter o encargo de demonstrar um dado estilo de vida. Muitos jovens adoptam modas sem compreenderem plenamente a mentalidade por detrás delas. O caso mais paradigmático é o vestuário gótico, que, agora, como que se banalizou, sem que haja uma verdadeira identificação com tal movimento, como se a roupa conferisse ao seu utilizador a cultura alternativa que lhe é implícita. Os jovens transferem para as coisas a sua personalidade, aquilo que são, sem entenderem que, como no filme Clube de Combate se diz: “Tu não és o teu emprego... tu não és quanto dinheiro tens no banco... nem o carro que conduzes... nem o conteúdo da tua carteira.”
Porque não se é nada senão um vazio, é necessária uma constante alienação de si, presente na nossa sociedade, em fenómenos como o consumismo e a premente socialização. Esta última merece uma maior atenção. Há uma constante vontade de estar acompanhado – o ser humano esqueceu-se do que é estar sozinho e os que o não olvidaram são chamados de misantropos. A personagem Mildred, em Fahrenheit 451 – obra de Ray Bradbury que tive o ensejo de ler estas férias, sobre um mundo onde os livros são proibidos – é a imagem perfeita deste comportamento, sempre agarrada à “família”, nome das três paredes falantes.
Parece que atingimos o cume do altruísmo, quando deixámos de procurar a solidão, para a substituirmos por uma companhia incessante, de que são instrumentos os telemóveis e televisões, que nos invadem a privacidade. O sofisma está em não perceber que este aparente altruísmo não o é; trata-se antes duma dependência. Convivemos com os outros, não vivemos para os outros – isso sim, o real desprendimento apregoado por tantas filosofias e teologias. Fazemos dos outros, nós. É esta diluição da separação clássica com o outro que alimenta os reality shows ou as revistas cor-de-rosa (outra encarnação do voyeurismo) ou ainda as novelas, onde as pessoas pretensamente se vêem reflectidas nos personagens. Por ser a cultura do outro, é a cultura do ver – de olhos fechados só nos podemos conhecer a nós, se algum dia nos conseguimos conhecer o suficiente. Deste culto da visão, vem a fé de Tomé dos dias de hoje, a incapacidade de abstracção (e consequente decadência da Filosofia) ou ainda a perda dos hábitos de leitura, substituídos pela televisão, que remete para o futuro imaginado por Bradbury.
Simultaneamente, atravessamos uma fase aguda de egotismo, em que a preocupação máxima de cada são os seus próprios problemas. Os dois fenómenos não estão de modo algum desconectados, sendo apenas um o produto racional do outro. Obsessivamente centradas no seu umbigo, as pessoas necessitam mais intensamente do que nunca dum divertimento, duma alienação – que acham nos outros – para esquecerem as suas preocupações. Como que retornámos aos velhos tempos romanos, em que a felicidade do povo era feita do seu pão e circo. Mas, como também então afirmava – já com Roma em decadência – Salviano, «Roma moritur et ridet.» - Roma morre, e ri. ■ o corvo
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