29 October 2008

A Doutrina Vencida dos Vencedores

Sei que fiz voto de silêncio, mas também se pode sair da cartuxa (especialmente quando se tem asas para voar). Pedi ao Einstein uma explicação para o longo tempo entre as crónicas e o linguarudo (foi ele que desenhou o logotipo dos Rolling Stones) explicou-me que o espaço e o tempo eram um contínuo siamês: eu longe, as crónicas tinham que levar um mês.

*
No outro dia o capitalismo esteve aí a estrebuchar. Não fiquei com pena nenhuma do capitalismo (para que quereria eu uma pena feia, a estragar a minha plumagem?). Subitamente, começou-se a falar na necessidade de “moralidade” (assim mesmo: foi esta a palavra usada) no mercado. Depois do “socialismo de rosto humano”, o “capitalismo de rosto humano”, ironizava com humor e verdade um blogger (não recordo quem: li tantos – que me perdoe!). Quanta inocência cabe entre uma gravata e um colarinho!
O capitalismo é, em si mesmo, um sistema absolutamente imoral. Que, regra geral, os partidos de raízes mais ou menos cristãs sejam advogados da liberdade dos mercados – a Juventude Popular, não esqueçamos, propôs, no ano passado, a abolição do salário mínimo, com o argumento de que este era um entrave a essa mesma liberdade do mercado – é um daqueles mistérios políticos absolutos e patetas, tão inexplicáveis como, para a ciência, o facto de o pato ser o único animal que não produz eco. O sistema capitalista, na forma em que o conhecemos desde a II Guerra Mundial, baseia-se essencialmente numa lógica de consumo assente na associação falaciosa entre ter e ser. A primeira geração pós-guerra, cobaias da nova experiência capitalista, acertadamente entenderam a sua mentira: chamou-se a isso anos 60 e hippies. Mas quando crescemos perdemos os sonhos como os velhos perdem os cabelos – e os revolucionários viraram os mercenários do sistema.
O capitalismo nasce do conceito da posse que é, por natureza, individualista (o verbo possuir só tem as três primeiras pessoas do singular: no plural substitui-se por partilhar). O capitalismo é esse sistema em que a palavra bem só existe no plural, material. Empilhamo-nos de coisas com que nos prometeram a felicidade. O objecto das nossas acções, imperceptivelmente, passou da pessoa para a coisa, para a pessoa acabar em coisa (essa é, ainda, a mais válida definição de capitalismo). Uma doutrina centrada no ter tem de arruinar o ser. Falamos de um sistema que assenta na ganância de multiplicar permanentemente (tal como se procriam mil pipocas de uma mão cheia de grãos de milho) o capital, por imenso que seja. Porque é uma sociedade do ter, é também uma sociedade do entre-ter: desse modo apenas se pode esconder o tédio, o absolutíssimo tédio que brota de uma vida mentirosa. Sendo uma doutrina de vencedores, o capitalismo pressupõe automaticamente vencidos: os marginais, os pobres (um quinto da população portuguesa, creio).
A intuição do erro fundamental que é este sistema primata tem naturalmente suscitado reacções. Ridículo seria agitar de novo bandeiras vermelhas (do sangue) e foices (das vidas ceifadas). Algumas alternativas foram sendo desenvolvidas. O “comércio justo” (popularíssimo aqui na Inglaterra, onde a omnipresença divina compete com a ubiquidade do café fairtrade) será talvez um dos casos mais bem sucedidos, mas também digno de nota é o projecto da economia de comunhão, lançado por Chiara Lubich, fundadora do Movimento dos Focolares, que defende uma repartição dos lucros tripartida, em que uma parte substancial destes é directamente aplicada em favor dos mais pobres (a ideia surgiu numa visita às favelas paulistas). Uma revolução mais profunda, mais íntima, é ainda necessária, contudo: a ganância dos especuladores tem a sua contraparte no consumismo do homem normal. Diz-se que Sócrates, um dia, percorrendo o mercado de Atenas, vendo as bancas, comentava com os discípulos: “Tanta coisa que eu não preciso!”. Os nossos centros comerciais multiplicam-se como cogumelos (e são todos venenosos, estes). Quando conseguiremos de-ter esta obsessão de ter?
imagens:
Into the Wild (2007), de Sean Penn

10 September 2008

Kafka em Portugal, Pássaros em Inglaterra (Com Carrossel Literário)

Em finais de Junho/princípios de Julho, fui à secretaria da minha faculdade, com o objectivo modesto de apresentar dois requerimentos para alterar algumas das cadeiras que teria de frequentar no semestre seguinte. Simpática, a funcionária ameaçou-me delicadamente a apresentar a papelada apenas em finais de Agosto, mesmo antes do novo ano lectivo se iniciar. Doutra maneira, acrescentou, teria inclusive de pagar gorduchamente os requerimentos. Deixei-me convencer. Regressado das férias, na data prevista, apresentei-me de novo ao balcão, apenas para que nova funcionária me aconselhasse a escrever os requerimentos só depois de ter completado a matrícula – seria, dizia, mais fácil assim. Mal o mês de Setembro acordou (ainda estava a bocejar e de pijama), eis que me plantei (e levei o regador comigo, pelo sim pelo não) na fila para as matrículas: era o segundo dia que estavam abertas. Pacientemente, esperei uma manhã, despachei o assunto e fui então determinado à secretaria, novamente.
Tinha particular urgência no requerimento: até ao final desta semana precisava de saber se tinha sido deferido ou não. Escrevi em letra bonita as cartas aos presidentes do conselho directivo e do científico e, orgulhoso de, por fim, ter encerrado com sucesso tão épica tarefa, entreguei-as à funcionária, sem deixar de perguntar quando teria uma resposta. «Isto agora pode demorar muito tempo», foi toda a recompensa que tive do meu esforço. Este é o drama absurdo (como uma peça de Brecht com um título de Beckett: à espera do requerimento) de Portugal: um homem pode tentar fazer as coisas com antecedência (ver o futuro com telescópio), mas inevitavelmente é proibido disso, só para ser reconduzido para a última hora que é em cima da hora a cavalo da hora empinada na hora – e, depois de esperar, esperar mais.
Este, porém, foi um dia dos prodígios (plagio Lídia Jorge, que nunca li). Ao longo da minha odisseia de um dia (como a do protagonista do Ulisses de Joyce – este vou ler a seguir), tropecei nos mais fantásticos casos, certamente argumentos perdidos de Kafka. O namorado de uma amiga minha não se conseguia matricular porque a Burocracia (assim mesmo, com maiúscula) insistia que ele tinha propinas em atraso. Descobriu depois que o sistema o acusava de dever uma propina de dois mil e oito cujo prazo máximo de pagamento era... dois mil e sete. Sugeri-lhe que lesse rápido o Em Busca do Tempo Perdido, do Proust: quiçá assim conseguisse recuar no tempo (caso a coisa falhasse, propus-lhe ainda A Máquina do Tempo, de Wells).
Uma outra colega tinha sido também travada na sua matrícula pelo mesmo motivo: devia ainda dinheiro das propinas. A carta que lhe haviam enviado para casa especificava com rigor e com bigode e gravata a quantia em falta: 0,00€ - assim mesmo, com três zeros. Encontrei ainda outra aluna que tinha recebido uma carta avisando-a de que prescrevera, facto que a impedia agora de se inscrever no mestrado que pretendia fazer. Pormenor (quiçá importante): a rapariga, poucos meses antes, recebera o Prémio Feijó, que galardoa os melhores alunos da faculdade. Ao lado dela, um rapaz implorando, em verdadeiro desespero (parecia um quadro de Munch), por um diploma que desde há dois meses mendigava. Tudo está dominado pelo acaso (e pela incompetência), como na Babilónia de Borges, em que tudo era decidido pela lotaria.
Cansado desta overdose de Kafka, resolvi desprezar o exemplo estático do meu irmão (aquele que se esculpiu num busto de Palas em casa de Poe e tem um poema), bati asas e voei. Dizem ser uso dos pássaros fazê-lo, de resto. E a estação é certa e propícia. Resolvi fugir para Bristol, na Inglaterra, numa hibernação de quatro meses (os cientistas que estudam estas coisas chamam-lhe, palavra esquisita, erasmus). Arrumo a pena – recoloco-a na asa, para ajudar ao voo. Estou de partida – e isto não é partida de mau gosto. Vou, muito literalmente, calar o bico, nestes pequenos quatro meses. Até à primeira andorinha (eu venho atrás).

25 August 2008

Sugestão À Imprensa Impressa

Podia mentir – não vale a pena, porém (nem está correcto): não tenho assunto para a crónica. Corrijo-me: não tenho assunto interessante para a crónica. Devo, talvez, ser mais preciso: não tenho assunto relevante para a crónica. Aconteceram certamente coisas: continuaram a imprimir-se jornais e as televisões, à uma hora, pontuais, vinham intrometer-se no nosso almoço, atraídas, quiçá, pelo bom cheiro da comida. Tínhamos, para nos entretermos, os Jogos Olímpicos e a onda de assaltos (os russos, por solidariedade, decidiram-se a assaltar um país inteiro, por exemplo). Desliguei-me do mundo para férias durante coisa de quinze dias, mas quando me devolvi a ele achei-o igual: nada me motivava sequer uma altercação de café (reconheço, contudo: Michael Phelps, o peixe, entusiasmou-me).
Voltei do meu exílio, peguei nos jornais guardados (tinha de escrever uma crónica). Pareciam-me uma acumulação infantil de faits divers, de maior ou menor dimensão. Recordei as palavras de Swann, personagem homónima do primeiro volume do Em Busca do Tempo Perdido, de Proust: “O que eu censuro nos jornais é obrigarem-nos todos os dias a dar atenção a coisas insignificantes, ao passo que lemos três ou quatro vezes na vida os livros em que há coisas essenciais”. Mais: “Já que rasgamos febrilmente todas as manhãs a cinta do jornal, então devíamos mudar as coisas e pôr no jornal, sei lá, os... os Pensamentos de Pascal”. Belíssima ideia: teria assim, facilmente, sem dúvida, matéria para muitas crónicas.
Pelo contrário, os media, nomeadamente as televisões, insistem em reportagens absolutamente irrelevantes, com o único intuito de entreter o espectador – a notícia, coisa séria, antes matéria dos arautos, é agora apregoada por jograis. Não menos intrigante, para mim, é a forma como se conseguem escrever jornais diários inteiramente dedicados ao desporto (por amor à verdade não digo futebol). Como se mantêm os canais noticiosos vinte e quatro horas no ar: acontece na terra tanta coisa? Não deixa de ser curiosa esta nossa bisbilhotice moderna pela novidade, que amanhã é já antiga (pergunta brincalhona: são possíveis novidades de ontem?). As pessoas querem opinar sobre tudo (algumas até escrevem crónicas).
O paradoxo maior é que, no fim, com tanta informação, andamos, regra geral, mal informados (o paradigma desta verdade será talvez o caso Maddie). O incessante fluxo de notícias impede que estas sejam aprofundadas devidamente, quer pelos espectadores, quer pelos próprios media. Proponho fazer-se a seguinte experiência: entre os jornais de dois dias seguidos, deixar passar uma semana. Levar-se uma semana para ler bem e calmo o número de um jornal, conhecer-lhe as notícias e protagonistas a fundo. Rejeitar a descartabilidade do objecto (há uma certa nova, chamada Boa, que se mantém actual, dizem, já há dois mil anos).
Um esquema como o proposto resultaria ainda noutras vantagens. O jornal do dia seguinte, publicado, porém, apenas uma semana depois, guardaria já só as informações fundamentais, resistentes ao teste do tempo como um bom relógio à água; os editores, com o conhecimento do que se tinha entretanto passado, seriam mais criteriosos na escolha dos artigos, privilegiando os mais completos e essenciais. Nada de coisas irrelevantes: teríamos um jornal concentrado como sumo de laranja. O Jornal da Mealhada, por ora, ainda não aderiu a esta ideia revolucionária: já pensou o leitor quanto não teria ganho se não tivesse desperdiçado o seu tempo a ler esta pequena crónica inútil de um escritor sem assunto?

20 August 2008

Estudo Sociológico da Alma Portuguesa (Disfarçado)

Sempre apreciei os artistas de rua, na existência secreta que levam à margem de toda a sociedade, livres duas vezes, porque vão aonde querem e têm só o essencial. O meu paraíso privado é a escadaria imensa do Sacré-Coeur, em Montmatre, Paris, onde (e aqueles que viram Amélie lembrar-se-ão disso) dezenas destes bons saltimbancos encantam os transeuntes com o seu talento. Em tempo de Verão, não é raro encontrá-los nas artérias nocturnas das cidades junto à praia. Na outra noite, junto ao Casino da Figueira, ali estava: um malabarista jogando com o fogo, logo depois da estátua viva da mulher-borboleta. Impressionante. Alguém por trás de mim comentou: “Com tanta habilidade não deve ser português”. Esta frase é todo um programa.
Não acreditamos em nós próprios, maldizemo-nos (dizemos mal de nós e fazemos disso um desporto): temos a sinceridade de nos sabermos, no geral, homens sem qualidades. Que haja génios em Portugal, como o Gonçalo M. Tavares, é puro acidente, e nada tem a ver com o facto de serem portugueses; como o Euromilhões quando calha em Portugal calha em Portugal porque calhou (mas podia ter sido na China até, conquanto a China fizesse parte da Europa). O primeiro-ministro leva um lenço à cabeça, para apagar o suor e o medo, e pede-nos que não sejamos tão pessimistas porque tudo está bem e temos o Magalhães. Como não havemos de dizer mal de nós, se fomos nós que o elegemos? Com tão pouca habilidade para governar, é sem dúvida português: “Os lusitanos não se governam nem se deixam governar”, Júlio César dixit.
Esta falta de habilidade geral anda a preocupar gravemente a Ministra da Educação, que propõe agora instituir (a ver se estimula a habilidade, que é tão tímida) um prémio monetário de quinhentos euros que será entregue ao melhor aluno de cada escola, no final do Secundário. Escandalizou-se meio mundo com a notícia, incapaz de compreender que nenhum aluno se vai esforçar por tirar melhores notas na pauta para ter notas na carteira. Algumas notas soltas sobre o assunto. Temem os sociólogos, os psicólogos e outros –ólogos que esta medida fomente uma competitividade pouco saudável entre os alunos, mas isso revela um desconhecimento profundo da alma portuguesa. O português, efectivamente, tudo faz para ganhar mais uns tostões, desde que isso não implique trabalho. Exemplo: são vários os prémios de mérito nas universidades (com recompensas monetárias bem superiores a 500€); isso, porém, não trava a altíssima taxa de reprovações. Se a Ministra pretende reduzir o insucesso escolar, e é isso que pretende (engraçado que este mesmo verbo, em inglês, signifique fingir), escolheu o método errado. Quem tira boas notas (falamos aqui das notas de topo, claro) fá-lo, na maioria dos casos, como resultado de uma cultura de excelência inculcada cedo na criança pelos pais (não pelo país – um acento faz toda a diferença entre a verdade e a mentira) e, paralelamente, por um imperativo pessoal, outrora chamado brio. Excluem-se destas considerações os alunos de medicina.
Esses, empurrados por um sistema errado, são forçados a competiram estupidamente entre si, eliminando-se mutuamente por questões de centésimas. É por isso uma autêntica revolução o que o reitor da Universidade do Algarve veio anunciar no início do mês em relação ao novíssimo curso de medicina da sua universidade, que abrirá para o ano. Serão tidos em conta na admissão dos candidatos, como critérios verdadeiramente relevantes, a “atitude humana” ou a “experiência de vida com pessoas vulneráveis”. Enfim se entende que um médico tem de ser tão profissional quanto pessoa: só gostamos do Dr. House na televisão. Uma razão para não nos maldizermos: estamos a ganhar juízo, e em grandes quantidades (esperamos agora que isso não cause nenhuma indigestão). Nota importante, todavia: quem está a preparar o curso é um estrangeirado (outro que teve de partir), catedrático no King’s College, em Londres.
P.S.: O malabarista “com tanta habilidade” era alemão.

27 July 2008

A Palavra & O Poder / O Poder das Palavras

Logo na primeiríssima crónica deste ano escrevi que as eleições americanas seriam o acontecimento mais importante de dois mil e oito. As políticas dos EUA atingem-nos a todos (o Iraque tem alguma responsabilidade no preço do petróleo que nos inflaciona a gasolina). Contudo, mantive-me calado sobre o assunto. Eis, porém, que agora Obama veio à Europa. Esteve na semana passada em Berlim, onde foi recebido por mais de duzentas mil pessoas. Muitos lhe louvaram o discurso; outros, contudo, repetem que são apenas palavras bonitas.
Quando se fala de Obama, o seu exímio manejo da palavra é apresentado como fraqueza. O discurso político actual, de facto, fundamenta-se não tanto na palavra, mas muito mais no número. A estatística foi a ciência que triunfou e essa matemática corrompida despejou as palavras do seu significado, só pelo pecado delas não serem números também. No império da imagem, a própria palavra foi reduzida a esse estatuto superficial. A política, em última análise, destruiu a língua, de tanto ter escavado às palavras o seu significado real, para, vazias, as usar a seu capricho e sem que implicassem um compromisso. Por isso, ninguém acredita no que dizem os políticos, porque não há nada ali para acreditar: as palavras estão ocas.
O milagre de Obama foi ter reinventado a língua, como se cada palavra nascesse quando ele a pronuncia. Em Obama, as palavras são o que são, com todo o seu peso. O homem moderno esqueceu-se que o poder da palavra é infindo: Deus criou o mundo falando. Obama voltou a ancorar a palavra na realidade, devolvendo-lhe a sua essência, o seu significado. Daí o sucesso da sua campanha: já não nos recordávamos do que era a verdade a palpitar debaixo da pele das palavras. “Palavras, palavras, palavras”, assim resmungam os detractores de Obama. Este é um mundo mais pobre, este a que chegámos, este, dos ateus da palavra. Percebe-se. Vai-se a uma livraria e os romances, na sua maioria, não dizem nada, são fracos, mas volumosos, todavia. A palavra enquanto processo de enunciação e revelação da verdade oculta das coisas e da vida tornou-se uma arte pouco praticada. Políticos prometem o que nunca quiseram cumprir.
E eis que chega alguém que nos recorda a função primordial do verbo e nos convence do poder verdadeiro das palavras verdadeiras de mudarem o mundo. Change: mudança – é essa a palavra em que Obama permanentemente insiste. Quando se repete muitas vezes uma mesma palavra, duas coisas podem acontecer: ela fica descalça de todo e qualquer significado que possa ter, como sucedeu na política moderna, ou concretiza-se, porque a palavra é mágica (é nisso que acreditam as crianças, como dizia possivelmente Proust). Só quem odeia a poesia pode não gostar dos discursos de Obama e, rancoroso, criticá-los pela sua força. Obama recolocou a palavra, inteira e concreta, no centro da política, onde ela antes era só uma muleta.
“We are a people of improbable hope”, “Somos o povo de uma esperança improvável”, confessou o candidato democrata, em Berlim, na semana passada, naquele que nem foi um dos seus discursos mais brilhantes, mas onde, porém, pululavam pequenas pérolas como esta. Tudo é improvável na campanha deste homem: até a sua vitória está longe de ser certa. É improvável também que Obama consiga levar a bom porto todas as suas propostas ou que cumpra com sucesso tudo quando promete: quando, porém, fala, o que diz, di-lo convicto e sem disfarces. Quando Obama diz emprego diz emprego e não diz votos. E isto é uma revolução. Qualquer que seja o resultado das eleições em Novembro, Obama conseguiu já o que eu teria considerado impossível para os homens de hoje: restaurar a fé perdida nas palavras. Obrigado.

Persona

Quando visitei Paris, no Verão passado, recordo-me de, ao passar em frente ao Hôtel de Ville (o cenário em que se beijavam os dois amantes da famosíssima foto de Robert Doisneau), se encontrar aí um poster gigantesco com a imagem de Ingrid Betancourt (a França sempre fez do seu resgate uma causa nacional). Nada me fazia adivinhar que, quase um ano mais tarde, Ingrid conheceria, de facto, a liberdade. No meio do regozijo geral, só uma voz se calou: a do PCP. No seu primeiro comunicado à imprensa, não se encontrava uma única palavra de contentamento pelo fim do cativeiro dos quinze reféns. Na Assembleia, recusou-se a subscrever o voto de congratulação aprovado pelos demais partidos, propondo um outro, da sua lavra, insistindo em não condenar as FARC, em virtude da duvidosa amizade que os comunistas mantêm com a guerrilha colombiana, por ambos partilharem a mesma ideologia marxista.

Não me interessa aqui zurzir no PCP, que assim se descredibiliza e desonra a esquerda, mas antes reflectir sobre a forma como a pessoa saiu do centro da discussão política, para ser suplantada pelo fundamentalismo ideológico ou pelo seu oposto, o relativismo da conveniência (também chamado Realpolitik). O PC cometeu, dos dois, o primeiro pecado. Acima de toda a ideologia está o homem (neste caso concreto que discutimos, a mulher). Nenhum valor é absoluto, porque sujeito à régua da pessoa: “O homem é a medida de todas as coisas”, dizia bem Protágoras. Honra, verdade, justiça: nobres que sejam – e são – estes valores, devem cair aos pés da pessoa, a quem devem servir. Até Deus, neste particular, se inclina ante o homem: a incapacidade de o perceber foi o que esteve na base desse erro colossal que foi a Inquisição, em que se julgou justo matar por crime de lesa-divindade (o mesmo mau juízo o fazem hoje os radicais islâmicos). De igual doença e cegueira morre o capitalismo, que, com a sua tónica no lucro, perdeu a pessoa para ter a máquina (estava tudo na 25ª Hora, de Gheorghiu – urge reler!).

O segundo pecado que apontámos não é, contudo, menos grave que o primeiro. Apagar a pessoa do discurso político em função de conveniências & convivências é igualmente trágico. É a isso que o mundo, por exemplo, tem vindo a assistir no caso do Zimbabwe (e também aqui o PCP foi o único partido do Hemiciclo que se absteve aquando da aprovação de um voto de condenação da situação política daquele país). Dias depois das mais que fraudulentas «eleições» no país, os líderes africanos receberam Mugabe, o «novo» presidente (esse mesmo que Sócrates convidou para a Cimeira EU-África), no Egipto, tendo o presidente do Gabão afirmado que “acolhemos Mugabe como um herói”. Percebe-se a condescendência: o autor da afirmação já se encontra ele mesmo no poder há quarenta e um anos. Entretanto, soube-se que os EUA usaram em Guantánamo técnicas de tortura chinesa e que os guardas tiveram formação específica sobre as mesmas. A UE, há coisa de quinze dias, aprovou a Directiva do Retorno, para controlar a imigração, de uma severidade impensável, para escorraçar aqueles que, mais e mais, contribuem para a sua construção (muito literalmente).

Neste vomitado de notícias, dá vontade de perguntar: e as pessoas? Que silêncio sobre os métodos ilegais de Mugabe pode calar a fome e o sangue dos zimbabwianos (ou o das vítimas do Darfur, cujo governo assassino é apoiado por essa China a que vamos agora todos lamber as botas nos Jogos Olímpicos)? Como é possível que os guardas de Guantánamo vissem à sua frente terroristas, mas não pessoas, impossíveis de serem torturadas? Como não vê o Parlamento Europeu o desespero daqueles que arriscam tudo por uma esperança chamada Europa e os recambia de volta para os seus países, como se tratassem de produtos com defeito que se devolve à fábrica? Perderam-se, na política, as pessoas. Só há já números, palavras, abstracções. Não entendo não entendo não entendo. Como é que chegámos a isto, meu Deus? Como é que saímos disto, meus homens?

04 July 2008

Os Dias da Ment-ira

Há muito – tenho já saudades! – que não pratico o meu hobby favorito: atacar a excelentíssima Ministra da Educação e a sua trupe iluminada. Perdoe-se-me a crueza dos termos, politicamente incorrectíssimos, mas “a ira tem, porém, seus privilégios”, como escreveu Shakespeare no Rei Lear. Estes, contudo, mais que os dias da ira, são os dias da mentira (e não é abril, sequer). No requiem pela educação, a furiosa secção do dies irae (na cabeça ribombam os acordes de Mozart) foi substituída, parece, pelo dies mendacii, o da mentira.
A política tornou-se, de facto, a arte de bem mentir. A expressão peca por redundância: toda a arte é fingimento (“O poeta é um fingidor”, dizia Pessoa), mas, como explicava a protagonista de V de Vingança, o filme: “Os artistas utilizam mentiras para revelar a verdade enquanto os políticos as utilizam para esconder a verdade”. A grande vantagem da mentira hoje é ser fácil demonstrar cientificamente que é verdadeira. Já Sócrates, esse heterónimo de Platão, dizia no Hípias Menor: “o mesmo homem que mente é o que diz a verdade”. E assim a Ministra proclama: foram reduzidas de maneira extraordinária as negativas nas provas de aferição. E esquece-se: isso está longe de se traduzir num maior domínio da disciplina pelos alunos, antes reflecte uma simplificação excessiva das provas, como critica a Sociedade Portuguesa de Matemática. A Ministra vende-nos uma verdade falsa (só um tempo como o nosso podia ter engendrado este paradoxo lógico). As estatísticas, barro fácil de moldar conforme mais sirva ao oleiro, são apresentadas como espelho do real, quando nem espelho nem real são: são caricatura.
As estatísticas são hoje o bunker do governante, que nele fechado vai ignorando a cidade que se desmorona à sua volta. Hitler, nos seus últimos dias, enterrado debaixo de terra entre paredes e corredores de cimento, movia divisões imaginárias no seu mapa de guerra: assim age o político, armado dos seus números, geografias de uma realidade imaginada, falando de um mundo fantástico, irmão da Terra-Média de Tolkien ou da Nárnia de Lewis. Pouco importa que, na prática, muitos alunos pouco ou nada saibam; o importante é assegurar o seu “direito a ter sucesso”, como lhe chamou Margarida Moreira, Directora Regional de Educação do Norte, a responsável pelo badalado caso Charrua, no ano passado. Por isso, recomenda que se afaste da correcção das provas “aqueles professores que têm repetidamente classificações muito distantes da média”, o que, neste contexto, significa, naturalmente, os mais exigentes.
Creio que tanto esmero não seria necessário: os exames já são, em si mesmos, assaz simples, como várias vozes têm confirmado. Importantes são os resultados, nem que para isso se recorra ao facilitismo. O lema destes novos pedagogos – devo escrever pedabobos? – parece ser o velho “laissez faire, laissez passer” – deixai fazer, deixai passar. É uma política coerente para um governo liderado por um primeiro-ministro que adquiriu a sua licenciatura da forma por todos conhecida. Ao contrário do que muitos então disseram, esta não é uma questão frívola, antes revela uma forma de ser, onde o que conta é o título, o grau, o diploma, o inglês técnico.
Veja-se a mirabolante ideia da Ministra de agora instituir um Dia do Diploma, a saber, dia doze de Setembro, em que se procederá à entrega dos certificados aos alunos que tenham concluído o Secundário no ano anterior. Trata-se da importação de uma tradição americana, bem conhecida de todos por causa dos filmes. Depois das sorridentes e televisivas entregas de computadores, a entrega de diplomas. Há-de ser giro fazer uma festa e gastar mais dinheiros públicos a distribuir papéis aos alunos. A mentira, Deus!, é uma coisa tão alegre.

Senhoras e Senhores, o Apocalipse!

Tive a ocasião de, na semana passada, entre exames e trabalhos, ler um dos clássicos da nona arte, Watchmen, de Alan Moore e David Gibbons, evereste dos comics americanos, desconstrução moderna, de realismo bruto, das estórias de super-heróis, obra cuja grandeza nem eu mesmo, por ora, consigo apreender totalmente. Gostaria de lhe dedicar a crónica, mas seria difícil justificar essa escolha egoísta perante o leitor, com todos os acontecimentos da semana passada. A crónica, porém, poderia bem copiar o início da BD, com uma estranha personagem desfilando um cartaz avisado e avisando, a lançar o tom do que se segue: o fim está próximo.
Quem me conhece, sabe como, mascarado de Nostradamus, prevejo regularmente para 2052 o fim do mundo. Conto a anedota com sucesso em vários jantares de gala, mas ninguém me acredita e em vão prego a minha escatologia barata. Esta consciência permanente do fim, dizia-o Steiner, é dos nossos traços mais distintivos enquanto europeus: mas, coisa triste, parece que hoje já não há muita gente interessada em ser europeu – perguntem aos irlandeses. Sócrates, abatido, chora em São Bento: lá se foi o tratado “porreiro” que era “fundamental para a minha carreira”. O não irlandês cria, de facto, uma situação embaraçosa: se, ignorando o referendo, os líderes europeus resolvem (e parece ser isso que se cozinha) avançar com o Tratado na mesma, mais razão terão os críticos do texto quando rabujam contra a falta de democracia no processo de ratificação do bicho, que dizem amamentado em secretárias ministeriais, longe do povo. Por outro lado, a Europa, obesa de vinte e sete países, precisa de agilizar as velhas instituições, para bem de todos eles, e Lisboa era uma efectiva possibilidade disso, quero crer. Na ressaca do referendo irlandês, conversava com um amigo meu, poeta e lúcido, desgostoso com o resultado, sobre que futuro a partir daqui para o projecto europeu, sem conseguirmos achar respostas ou consolos. No meio disto tudo, a Europa, cansada, velha, fuma um cigarro – e espera, ainda mais.
Portugal, porém, provou outros aperitivos do apocalipse. A paralisação dos camionistas, tivesse durado um pouco mais, teria deixado provavelmente o país sem pernas para andar, ou noutra perspectiva, precisamente apenas com as pernas para andar, de carro parado na garagem. Sem carta de condução e hibernado em casa a estudar para os exames, não notei as prateleiras vazias nos supermercados ou as filas para abastecer nas bombas: tudo me chegou pela televisão. Pouco me importa aqui discutir a legitimidade do protesto, mas não posso deixar de sublinhar a incompetência do governo e sua resposta tardia, demasiado tardia. Se não me demoro demais neste ponto é porque outro é o meu intuito. Por ora, ainda que nada lesta, a actuação do governo conseguiu apaziguar os ânimos e adormecer a situação. O problema, porém, será daqui a uma década e meia, mais ou menos, altura em que o preço do petróleo disparará não por causa da especulação, como agora, mas sim por, pura e simplesmente, o ouro negro começar a escassear. Um qualquer comentador, que a memória não me deixa recordar quem era, perguntava no outro dia que fizeram os governos desde o primeiro choque petrolífero, em 1973, para evitarem que, no futuro, se conhecesse a mesma situação. Seria injusto dizer que nada foi feito, mas ainda há muito, muito a fazer – e pouco, pouco tempo.
Outros sinais do apocalipse: no Zimbabwe, onde o povo morre à fome, a mulher do presidente gasta mais de 50.000€ em compras, na Itália, durante a cimeira mundial sobre a crise alimentar (piada negra do destino). Leio tudo isto e desanimo, confesso. Há quem diga que sou um pessimista incurável (e insuportável, também). Escrevia o jornalista americano George Will: “a coisa boa em se ser um pessimista é que nós estamos sempre ou a ter a confirmação de que tínhamos razão ou a ser agradavelmente surpreendidos”. Prefiro, de longe, a última opção.

Filosofias, Robôs & Companhia

Espantam-se os meus amigos quando eu lhes falo na necessidade de começar a trabalhar activamente na construção de uma filosofia robótica. Estou assaz ciente de que será sempre, em maior ou menor grau, um exercício de especulação – como podemos nós, humanos, saber o que é estar no mundo como robot? – mas, contudo, estou convencido que é altamente necessário. Os meus colegas riem-se, e dizem que o meu amor pelo Matrix, essa obra-mor da ficção científica, me toldou o discernimento. O futuro, porém, é cada vez mais um assunto do presente (1).
Li no Público de sexta passada que cientistas de Pittsburgh, nos EUA, conseguiram que dois macacos comandassem um braço mecânico, ao qual não tinham ligação física, graças a alguns eléctrodos – da largura de um cabelo humano! – instalados no seu cérebro. Dava vontade de falar em telepatia: o rigor científico não o permite, contudo. A equipa de investigadores salientava a importância desta descoberta para as pessoas gravemente paralisadas, mesmo se a tecnologia ainda precisa, naturalmente, de ser aperfeiçoada. A simbiose entre máquina e homem avança a passos cada vez mais largos. O último número da Sábado, curiosamente, trazia precisamente uma entrevista a Kevin Warwick, o primeiro cyborg da história, ele que já teve instalado um chip que lhe permitia automaticamente abrir e fechar portas ou acender e desligar luzes. O ex-homem-máquina pretende em breve fazer novo implante que deverá permitir comunicar directamente entre dois cérebros humanos, descartando assim a fala, que ele rotula de “barulhos estúpidos” e “forma primitiva” de comunicação.
Como escritor e agricultor da palavra, assusta-me – não me assusta mais porque não me convence – esta possibilidade do fim da linguagem que, de resto, só um cientista limitado pela sua matemática pobre poderia conceber ou desejar sequer. O homem, aliás, não se encontra preparado para uma conversa translúcida, sem a mediação da palavra e do silêncio. Esta nova tecnologia a desenvolver por Warwick pretende também explorar a capacidade de o ser humano interagir com aparelhos tecnológicos meramente a um nível mental, como os macacos de Pittsburgh provaram ser possível. Ainda que um pouco exagerada, a previsão do investigador de que em 2050 os cyborgs serão uma realidade comum não é impossível, nem sequer improvável.
Esta possibilidade coloca-nos perante a questão última: o que é o homem? Subitamente, o indivíduo comum vê-se forçado, por força do futuro que espreita, ao exercício da filosofia. As implicações, contudo, estão longe de se resumirem a esse campo. Os cyborgs, por exemplo, serão preferidos naturalmente pelos empregadores para uma série de trabalhos, devido às suas superiores capacidades, filhas dos seus mais diversos implantes tecnológicos: seremos forçados a criar quotas de humanos puros nas empresas? Não pense o leitor que o presenteio aqui gratuitamente com uma visão apocalíptica do futuro: não receio este cenário, apenas insisto na urgência de o começar a pensar e resolver. A verdade é que o ser humano atingiu as portas do palácio da criação e está à beira de as transpor: podemos, enfim, mudar-nos a nós mesmos, ao ponto de nos confundirmos. Há coisa de duas semanas, o Reino Unido legalizou a criação de híbridos humanos, embriões com 0,1% de material genético de origem animal (essencialmente bovinos ou coelhos). Proclamava um bom professor meu que assistimos verdadeiramente ao nascimento de um minotauro: a mitologia faz-se realidade. O que é o homem, pois?
Filosofia robótica? Precisamos dela, sim; mas também, e muito, de uma filosofia do homem: aparentemente, esquecemo-nos do que é isso (ser homem é duro e mais fácil é não pensar).

1. Não posso deixar aqui, a este propósito, de saudar a Câmara da Mealhada pela inauguração da nova zona wi-fi no Jardim Municipal.

Crónica Sem Solução

Quem me conhece sabe bem como aspiro a ser cinéfilo e sonho ser realizador. Não foi inocente, na plantação do desejo, a reabertura do Cine-Teatro Messias, que me trouxe o cinema montanha mágica a mim, maomé. O cinema como arte, porém, descobri-o em casa com esse filme de que me tornei pregador: Dogville, de Lars von Trier (2003). Os meus amigos mais próximos, todos eles sofreram o meu apostolado: Dogville, afirmo-lhes, é a prova final que temos todos de atravessar como homens, a esfinge última que guarda a tebas da nossa humanidade e a cujas questões, édipos, temos de responder. A cada espectador a fita assombrará conforme for mais incómodo; para mim, sobre as demais, uma interrogação emerge depois dos créditos: será legítimo ao bem, para triunfar sobre o mal, recorrer precisamente ao mal? Até hoje a pergunta atormenta-me, sem que lhe ache resposta, encravado em insónias morais.
Dogville era uma parábola, mas a realidade encarrega-se de fazer descer as abstracções ao quotidiano, e a especulação filosófica ganha, subitamente, o vestido de dilema político com a situação catastrófica em que o ciclone Nargis amortalhou a Birmânia. Era perturbador interrogarmo-nos, como já o fizemos aqui aquando do tsunami do sudoeste asiático num exercício de teodiceia, sobre o absurdo porquê disto, a razão metafísica de tamanho holocausto: quase metade das vítimas, até agora, são crianças (“Mas as crianças, Senhor,/Porque lhes dais tanta dor?”). Outra catástrofe, porém, se abate agora sobre o país: a tirânica Junta Militar, que apodrece há décadas no poder – a mesma, lembram-se?, que no final do ano passado esmagou a sublevação dos monges budistas, a efémera revolução de açafrão –, está a impedir a entrada no país da ajuda humanitária da comunidade internacional. Há um milhão e meio de sobreviventes que, sem nada para comer e sem cuidados médicos, correm sérios riscos de morrer. Apesar deste cenário, a Junta recusa-se a atender os telefonemas de Ban Ki-Moon, secretário-geral da ONU.
O autismo do regime birmanês imola, a cada dia, novas vítimas. Há navios da União Europeia carregados de alimentos às portas da Birmânia – impossibilitados de prestar ajuda. A questão de Dogville assume agora, pois, uma formulação muito material: deve a ONU obrigar a Junta, ainda que pela força, a aceitar o auxílio da comunidade internacional? Teoricamente, sim. Os países-membros das Nações Unidas consagraram em 2005 a “responsabilidade de proteger” (R2P, abreviam os ingleses), isto é, comprometeram-se a intervir – militarmente, se for preciso – se um Estado, dalguma forma, se revelasse incapaz da sua função primeira: proteger o seu povo. A ideia do R2P é prevenir situações como o genocídio do Ruanda, a que o mundo assistiu calmamente, entre dois cigarros. Como, porém, já alguns vieram argumentar – nomeadamente Bernard Kouchner, ministro francês dos Negócios Estrangeiros e co-fundador dos Médicos Sem Fronteiras –, a presente situação da Birmânia poderia bem justificar a invocação do R2P. A União Europeia e a ONU, contudo, não parecem muito amigas dessa sugestão.
E aqui eis-nos de novo na questão moral fundamental: é justo que se derrube, pela violência, um regime violento para salvar o seu povo da morte? No fundo: os fins justificam os meios? Ou continuaremos a trilhar a muito provavelmente inglória estrada das negociações? Qual o maior crime moral: transvestir os bons de maus, incorrendo em incoerência, ou, à custa de um pacifismo firme, compactuar com um pequeno genocídio? Reconheço a frustração que, para o leitor, deve ser esta crónica: não apresento, de facto, qualquer solução. Muito humildemente, logo no início, reconheci não ter a chave para essa pergunta que me dilacera desde há tanto, águia que me devora o fígado de prometeu. O tempo, porém, não perdoa: milhares de bocas esperam a resposta que lhes daremos. Quem ousa uma decisão?

Crónica de um Jovem Democrata de uma Jovem Democracia

Entre grande escândalo e censura desvelou o Presidente da República, na cerimónia parlamentar do 25 de Abril, a ignorância dos jovens a nível de questões políticas. Aflito, apontou os criminosos, e não ilibou os partidos. Teve o mérito, pelo menos, de, durante, digamos, uma semana, ter posto meio Portugal a discutir o assunto. Sou o primeiro a reconhecer que os resultados do estudo da Universidade Católica encomendado especialmente por Cavaco Silva para o efeito são, a seu modo, preocupantes. No meio da discussão que se ergueu, porém, poucos atentaram no resto das conclusões do inquérito, tão ou mais interessantes do que as outras.
Leio uma síntese dos resultados do estudo. Os jovens, dizem, desvalorizam o voto como instrumento político, considerando-o pouco eficaz. Queixam-se da oferta partidária existente (metade não se identifica com partido algum) e da dicotomia esquerda/direita em que o debate político parece mover-se ainda (consideram esta distinção irrelevante, aliás). Estão ansiosos por reformas, profundas, e parte afirma mesmo a necessidade de uma mudança radical. Defendem uma maior taxa de mulheres em cargos políticos, novas formas, mais eficazes, que facilitem aos cidadãos a participação na tomada de decisões políticas. Valorizam mais os candidatos que os partidos – e argumentam a favor desta mudança de foco. Colocam a política em último lugar, sepultada: “outro valor mais alto se alevanta”, como a família, amigos, hobbies, religião, voluntariado ou o trabalho. Assinam muitas petições e não hesitam em boicotar produtos.
Leio tudo isto – e revejo-me no retrato. Penso em tantos dos meus colegas e amigos – e sinto-os iguais. A política em Portugal, entre jovens – seja-me permitida a aproximação – sofre hoje o mesmo mal que a religião: a simples menção dela é suficiente para afastar os potenciais ouvintes. Tenho um amigo meu que – e isto, acreditai-me!, é verídico –, quando, em dia triste, pretende enxotar a depressão sentimental, vê a ARtv, o Canal Parlamento, para se rir e animar. Compreendo-o e, tivera eu tempo para ver televisão (só a estreia da quarta temporada de Perdidos, no próximo domingo, me arrastará de novo, tal força da gravidade, para o sofá da sala) partilharia do seu entretenimento. Os políticos, em regra, falam mal e falam mentira: como querem que os queiramos ouvir? Os poucos que se filiam em partidos não o fazem tanto por convicção como por esperança de que, no futuro, isso lhes possa ser útil (os partidos são ainda redes de clientelas). Há, pois, os que têm cartão de sócio – e outros que não passam cartão nenhum aos partidos.
Hoje são eles, espante-se!, o principal problema da democracia. Tal como a vanguarda revolucionária comunista, se conseguiu tomar o poder, pela sua dedicação total a esse fito, perdeu de vista a realidade daqueles que, teoricamente, dizia servir, assim, do mesmo modo, todos os partidos hoje, obcecados em conseguir uma fatia do bolo guloso do poder, esqueceram o povo – e o povo futuro, os jovens, esqueceram-nos, por sua vez: perante “gente surda e endurecida”, melhor ficar calado. Errado, contudo, seria supor que tal visão significaria uma resignação dos jovens. Pelo contrário, face à falência evidente dos partidos como corpos efectivamente capazes de solucionar os problemas que nos atingem, os jovens assumem eles as responsabilidades. O estudo da Universidade Católica confirmava isso: se poucos se inscrevem em Juventudes partidárias, muitos, porém, entregam-se a projectos de voluntariado.
A grande reinvenção da democracia, creio, ocorrerá precisamente no tempo em que os partidos forem relegados para segundo plano, deixando de ser a força omnívora no esquema político. Não sei exactamente em que moldes tal operação se processará, mas é a ela que se referem os jovens do inquérito quando falam em “reformas profundas”. Recordemos: a nossa é uma jovem democracia – está só a atravessar a idade do armário: por isso os jovens a entendem.

Contra Fa(c)tos,...


A falar é que a gente se entende, diz o velho provérbio; contudo, modestos, é a escrever, por ora, que nos queremos entender. A entrada em vigor do acordo ortográfico parece, de facto, inevitável, e a coisa mereceu mesmo honras de editorial aqui, no Jornal da Mealhada. Meio povo anda a discutir o assunto, e todos ajuízam e se apaixonam. Como escritor e poeta-em-crise, o caso interessa-me de sobremaneira: falamos da matéria-prima da profissão, as palavras. Pesei pois os dois pratos da balança, e como uma nossa senhora disse que sim.

Choca a muitos que a língua seja regulada por decreto, mas por decreto ela se fixou: foi D. Dinis, “o plantador de naus a haver”, que obrigou a que os documentos oficiais, antes redigidos em latim, o fossem doravante na criança língua lusa. Por lei se sacudiu o ph e sózinho ficou sozinho sem acento companheiro. Outros refilam por um pequeno conselho de sábios e políticos pretender impor, do alto, a forma como a língua de milhões é escrita. Percamos a inocência: o português é, já hoje, determinado por um restrito e severo tribunal de linguistas, constantemente empenhado em enfiar num corpete essa mulher, a língua, que já quer andar de biquini. Dizem que empregue não pode ser empregado, mesmo se o novo particípio passado já se tornou corrente há muito – dizem isto, e muito mais. Pelo contrário, o acordo conserva a variedade lexical, procurando tão somente a harmonização ortográfica entre as muitas variantes.

Protestam os detractores, afirmando que essa unificação não sucederá, visto que, para certas palavras, guardar-se-á a dupla grafia, como facto e fato, que quer Portugal, quer Brasil, poderão continuar a escrever à sua maneira, sem que, contudo, nenhuma das ortografias seja censurada, qualquer que seja o lado do Atlântico do escriba. Argumento certo, mas falacioso: não encontramos tal variedade dentro mesmo do nosso português europeu? Veja-se a alternância entre ou e oi, em vocábulos como touro/toiro ou louça/loiça. Há aqueles a quem faz espécie a queda das consoantes mudas, mas Batista, assim mesmo, sem p, encontra-se já como apelido.

Argumentam alguns que todas estas razões não apagam a evidência incómoda: mesmo com acordo, o português do Brasil e de Portugal continuarão a ser fundamentalmente distintos. O objectivo do acordo, porém, nunca foi esconder essa diferença entre os dois idiomas, como fora ela coisa feia e vergonhosa, mas tão somente, com humildade, a todos dar a mesma escrita das palavras, na impossibilidade de dar mais. Ónibus pode nunca vir a ser um autocarro, mas ao menos não será, de um lado do Atlântico, ônibus, e do outro, ónibus. Uns, indignados, vão mais longe, afirmando que no momento em que o nosso país ceder ao Brasil (como se o Brasil, noutras coisas, também não cedesse a nós – e acreditem, há gente tristíssima por ver morrer o trema), será a norma brasileira a usada para fins internacionais. Só uma mentalidade colonialista pode temer essa mudança de paradigma no português; só um espírito cego pode negar que essa operação está já em curso e se concretizará, com acordo ou não. À medida que o Brasil cresce, a nível económico e demográfico, o português tal e qual como é praticado nas terras de Vera Cruz vai-se impondo como a norma, substituindo a variante europeia. De resto, enquanto língua internacional em congressos e afins, o português só subsiste por causa do Brasil.

E África nisto? Já alguém reparou que os PALOP são sinceramente favoráveis ao acordo? Escritores como Agualusa e Mia Couto, de Angola e Moçambique, respectivamente, já manifestaram o seu apoio à iniciativa. Está, de facto, na altura da lusofonia não ser mais um palavrão político para se materializar numa realidade. Este acordo, no respeito pelas diferenças, unifica-as, contudo, numa base comum: a escrita, expressão mais elevada de uma mesma língua.

O Desejo do Inútil

Hugo Pratt, um dos autores maiores do século XX, criador do imortal Corto Maltese, tendo sido, uma vez, criticado pela aparente inutilidade da sua profissão, confessou em resposta o seu desejo de ser inútil: a expressão dá mesmo título a um magnífico livro de entrevistas com o desenhador. Não raras vezes, quando me interrogam sobre o meu curso, perante a pergunta inevitável “para que é que isso serve?” (posta, por vezes, na variante, mais atenta ao futuro e ao emprego, “para que é que isso dá?”), gostava de poder responder do mesmo modo, evocando o meu capricho e gosto pela inutilidade, como Pratt.
Vivemos no que eu costumo definir como uma sociedade romana, eminentemente prática e pragmática. Se dos gregos se dizia que, para eles, tudo quanto era útil tinha de ser belo, dos latinos comentavam as más línguas, acertadas, o oposto: tudo quanto era belo tinha de ser útil. Não é sem razão que a economia triunfou sobre a política, subjugando-a: onde a política era, na origem, o combate pela utopia, um discurso sobre o que deve ser, a economia é, hoje, o manuseamento amargo do real, um discurso sobre o que pode ser, quando não mero discurso sobre o que é. Esta obsessão pelo fazível dita, por exemplo, entre as ciências, o triunfo da tecnologia. Hoje, a aferição da verdade assenta no proveito último que as coisas nos podem dar.
Muitas canetas e tinteiros se sangraram em redacções apaixonadas a propósito do recente caso de violência escolar no Porto, que o YouTube trouxe para a praça pública. Poucos, contudo, parece-me, reflectiram sobre por que razão não estava a aluna a fazer o que, naquele contexto, dela se espera: estar atenta à aula (alguns, pelo contrário, defendiam mesmo o direito da estudante a estar desatenta, se assim lhe aprouvesse, conquanto não perturbasse os demais). Pouco me importa aqui falar da falta de respeito demonstrada (sobre isso, outros, mais e melhor que eu, escreveram), mas sim sobre o profundo desinteresse que o manuseamento do telemóvel em contexto lectivo explicita. Espantarei alguns, creio.
O episódio da vergonha sucedeu numa aula de francês. Mas qual é, de facto, o interesse em estudar uma língua démodé, como o francês, especialmente hoje, num mundo em que todos compreendem o inglês? Entendo a indiferença da aluna perante a lição da professora. Mais: qual a vantagem de conhecer as bases da trigonometria, ou os maiores exportadores de cereais a nível mundial, ou de ler Os Lusíadas? De que serve saber o quotidiano dos camponeses e dos nobres na Idade Média, ou todos os detalhes do funcionamento do intestino delgado, ou a fórmula exacta para calcular a gravidade? Tudo isto são matérias que se estudam até ao nono ano. Sejamos sinceros: metade destas coisas, nenhum de nós as recorda já, e, a bem dizer, reconheçamos que mentimos quando procuramos convencer-nos da sua suma importância. Na sociedade que fabricámos, bem mais do que de conhecimentos, fala-se hoje de competências. Daí a aparição nos currículos escolares de mirabolantes disciplinas como Área de Projecto.
Esta é uma sociedade que desvalorizou o conhecimento, porquanto a maioria deste não é, de facto, útil: é meramente um exercício daquilo que nos faz mais humanos – daí ser tão precioso. É preciso inculcar nas crianças, desde a primária (aí apenas se podem plantar estas sementes), o culto da inutilidade, o saber pelo saber, sem quaisquer pretensões pragmáticas. Hoje temos inúteis (muitos, até), não temos inutilidade, porém. Uma é a receita contra isto: a curiosidade. Quando perguntaram a Pratt o que o guiou a vida toda, foi isso precisamente que ele respondeu: “a curiosidade intelectual”. A aluna da Carolina Michaelis tinha razão: a aula, é verdade, pouco valor prático tinha. Porém, tacanhos são os que se encerram nesses juízos. Amasse ela a curiosidade, tivesse sido educada para a amar, o telemóvel, esse grande hipnotizador (como aquele ladrão italiano do momento), há muito se teria reformado, derrotado.

ilustração pedida emprestada a http://binoculosqb.blogspot.com/

03 July 2008

O Cambista de Cadáveres


Estudava, quando o meu irmão me sugeriu vermos um filme. Esconjurei o trabalho, e sentámo-nos juntos para a sessão. Roubei da estante O Bom, o Mau e o Vilão, de Leone, que tinha comprado recentemente e desconhecia. O filme, um clássico consumado, explicou-me as razões da sua grandeza, e eu rendi-me também ao génio do western. Uma cena, perto do fim, logo me impressionou, manifesto simples – de incomparável sobriedade cinematográfica – de denúncia da inutilidade da guerra. Homens, irmãos, atiram-se violentamente uns contra os outros por uma estreita, estúpida ponte de madeira, objecto do desejo de ambos os exércitos. A ponte não serve para nada (só para lutar). Os soldados, coitados, têm de se embebedar para ousarem combater. O protagonista, ante o absurdo espectáculo, apenas comenta, incapaz de entender (cito de cabeça): “Nunca vi tal desperdício de homens”.

A cena toda ganha novo significado, se acrescentar que vi o filme no dia triste em que se celebraram – o termo é quase macabro, neste contexto – os cinco anos da invasão do Iraque. Subitamente, fomos todos de novo chamados a uma realidade que, entretanto, o tempo acabara por varrer, com discrição, para debaixo do tapete da memória. Os media – as estatísticas confirmam-no – dão cada vez menos cobertura ao conflito: na CNN, por exemplo, só 1% das notícias diz já respeito ao Iraque. Os espectadores cansaram-se do espectáculo: a bem dizer, não era particularmente criativo, e a pirotecnia das explosões diárias acabou por aborrecer. Os cadáveres amontoam-se longe (menos de cem mil): o seu cheiro, em decomposição, não chega às nossas narinas ocidentais.

Estava no meu nono ano quando a guerra começou. Na altura, lembro-me, activista de pé descalço, desenhei uma campanha que – o meu quixotismo reivindicava essas altas metas – podia mesmo, imaginava, chegar a Bush (a inocência da ideia pede-me que a não narre aqui). Espanto-me como ainda haja quem defenda a justeza da invasão, alicerçada no que hoje sabemos ter sido uma mentira orquestrada: a (in)existência de armas de destruição massiça. Por outro lado, porém, a tese simplista de que interesses petrolíferos ditaram a guerra também nunca me convenceu: de resto, os seis milhões de barris que o Iraque, actualmente, de acordo com as expectativas iniciais dos americanos, deveria estar a produzir diariamente, estão reduzidos a perto de dois milhões e meio, apenas. Até nisso, tudo na invasão correu mal.

A democracia, ao contrário do que Bush imaginava, não se prega pelas armas, e o falhanço no Iraque não é mais do que o desmoronar dessa doutrina expansionista bem-intencionada (a esse propósito, é urgente rever Manderlay, de Lars von Trier, reflexão perturbadora sobre esta e outras questões para este século novo). Esta democracia made in usa também não saiu muito favorecida com casos como Guantanamo ou Abu Ghraib. Ainda este mês, de resto, Bush vetou uma lei que interditava o uso de tortura nos interrogatórios. A América hipotecou assim todo o seu plafond moral e, ao fim de oito anos, muitos confundem o ódio a Bush (justificado) com o ódio aos EUA (palerma): a imagem externa dos “States” foi danificada de uma maneira que só as próximas eleições, em Novembro, poderão curar.

Ésquilo, possivelmente o mais belo dos dramaturgos gregos, chamou uma vez a Ares, deus da guerra, o “cambista de cadáveres”: descrição amarga de uma realidade crua. Hoje, de facto, os EUA são tão vítimas do conflito como as restantes facções em jogo no terreno. É pueril a atitude de quem insiste em, neste estado das coisas, continuar a resumir aos americanos as culpas do paiol em que se tornou o Iraque. Cinco anos depois, aonde é que chegámos? Menos ainda sabemos para onde vamos. Na véspera dos cinco anos do conflito, novo atentado: uma mulher fez-se explodir, quatro mortos. “Nunca vi tal desperdício de homens” - e de mulheres.

18 March 2008

Marchas Populares

No primeiro dia do mês, a cidade acolheu o campeonato nacional de marcha, levando ao corte dalgumas das principais artérias da cidade e à abertura de outras improvisadas. Tenho de agradecer a Susana Feitor e João Vieira o terem forçado à inauguração de uma ligação entre a minha escondida rua e a da estação de comboio, pequeno atalho útil que, contudo, um só dia me serviu: a passagem foi já entretanto encerrada. A experiência, porém, por curta que tenha sido, bastou para ouvir – até de desconhecidos, que arriscaram conversa comigo – elogios ao prático e rectilíneo caminho que se abriu, paralelo à linha de comboio.

Isto das marchas parece, de facto, estar hoje na moda. Sábado passado, os professores promoveram a intitulada «Marcha da Indignação», reunindo cem mil manifestantes (avassalador número). Por repetidas vezes crocitei neste espaço o meu desagrado pela actual Ministra e o seu gabinete: não pude, por isso, deixar de rejubilar perante tal manifestação de força dos docentes, a quem, não me podendo unir em corpo, me juntei em espírito e, agora que escrevo, em letras. O PS, amedrontado, em vão quis responder com uma marcha de rua também, mas o beija-mão já foi transferido entretanto para um discreto pavilhão no Porto, entre quatro paredes.

Podia (e isso tenta-me como uma maçã) falar – seria óbvio, é o tema quente – sobre a situação insustentável que se atingiu na educação. Outro, porém, é o fenómeno que me atrai: esta nova vaga de marchas populares (e ainda não estamos no tempo dos santos). Há quem a tema e quem a saúde. Já ouvi rumores de PREC, já li comparações com esse tempo que eu não vivi: os ânimos andam exaltados. A questão, porém, permanece (Pacheco Pereira dedicou-lhe a sua última crónica no Público): porque estão as pessoas a sair à rua? Augusto Santos Silva acusa forças “de natureza anti-democrática” e faz lembrar a irritação de Sócrates quando este, confrontado com as manifestações populares em Montemor-o-Velho em Outubro passado, acusou o PCP e os sindicalistas de as orquestrarem. O governo falha em perceber que nenhuma força de carácter político ou afim poderia, por exemplo, mobilizar o assombroso número de professores que se manifestaram em Lisboa. Na realidade, muitos confessaram às televisões e jornais ser a primeira vez que participavam em acções de rua, e outros tantos sublinharam o seu carácter apolítico: é porque não acreditam nos partidos que as pessoas estão, enfim, a sair à rua.

Falo em nome de uma geração desencantada, a minha. Robert Redford, conhecido actor e cineasta, numa entrevista a um canal britânico a propósito do seu mais recente filme Peões em Jogo, explicava que os jovens se tornaram tão indiferentes à política por nunca terem conhecido uma liderança moral. Porque deixámos de acreditar que os partidos possam resolver os problemas que afectam a sociedade, carregámo-nos nós com essa responsabilidade, independentes. A internet oferece a plataforma ideal para essa contracorrente: veja-se a reportagem que o Público dedicou, aquando da marcha dos professores, aos blogues da autoria destes e ao seu papel na discussão pública dos decisões ministeriais, como o A Educação do Meu Umbigo, um dos mais frequentados (por mim também) de toda a blogosfera portuguesa.

Há, porém, uma fresta de esperança. Veja-se o fenómeno Obama, nos EUA, em que os jovens estão a desempenhar um papel importantíssimo. Estamos famintos de mudança, de ventos novos, que arejem o ar bafiento do establishment político. Não podemos por isso deixar de nos alegrar com o anúncio de um novo partido, por enquanto um movimento apenas. Não cremos nos velhos partidos, mas aos novos estamos talvez dispostos a dar uma chance (veja-se o caso sintomático do BE, que, quando surgiu, procurando vender-se como corpo estranho ao sistema, ganhou uma boa base de apoio juvenil, que fomentou o seu crescimento). Dêem-nos razões para acreditarmos no futuro, esse tempo desempregado, como nós, os jovens.

O Rasganço

Steven Spielberg renunciou, em meados do mês, ao seu cargo de conselheiro artístico dos Jogos Olímpicos de Pequim, acusando a China de pouco fazer para travar o genocídio em curso no Darfur. A propósito do gesto do realizador, o Diário de Notícias conversou com Vicente de Moura, presidente do Comité Olímpico de Portugal, que exprimiu a sua tristeza com a decisão do cineasta americano, alegando que “não compete ao desporto tomar posições políticas”. O entrevistado afirma mesmo que boicotar os Jogos de Pequim “seria um completo disparate”. Parei o jornal (estava também já na última página), e espantei-me (com boca aberta e tudo, em grande teatro).

Dalguma forma, a entrevista é um espelho polido do tempo presente. Nela, com clareza, se mostra a cesura operada na nossa sociedade entre as várias esferas da acção humana: há muito abdicámos do homem completo. “Deixemos a política para os políticos”, proclama Vicente de Moura. Se a política é, de facto, coisa de políticos e políticos apenas, acabem-se as eleições universais. O presidente do Comité Olímpico português defende-se, invocando o artigo 51º da Carta Olímpica, que proíbe o envolvimento de atletas e dirigentes em movimentos de natureza política. Coisa cobarde esta, de ter a lei como toca para hibernar a consciência. Antígona, a doce filha de Édipo, teria muito a ensinar aos homens de hoje (as mulheres, de resto, são por excelência as professoras dos homens).

Estranho mundo este de heterónimos. Questionado sobre o Darfur, Vicente de Moura reconhece que “a minha posição enquanto cidadão é óbvia”, mas logo a seguir, “como presidente do Comité Olímpico de Portugal”, garante não poder responder à pergunta. Quantos homens podem habitar um homem? Ganhámos a peste de Aristóteles: a de tudo arrumar em categorias. Os direitos humanos, aparentemente, são do âmbito da vida cívica; não da profissional: já o devíamos ter aprendido pela análise do capitalismo – o importante é singrar. Falando do boicote aos Jogos de Moscovo, Vicente de Moura reconhece: “Quem não foi perdeu a oportunidade da sua vida e muitos ficaram esquecidos.” Há um genocídio em curso no Darfur, tacitamente apoiado pela China, mas, apesar disso (saibamos relativizar as coisas), é mais importante que os nossos atletas não esbanjem esta oportunidade de subir ao pódio.

Eis o ser humano rasgado, que hipotecou a sua unidade. Noutro tempo, dizia Terêncio: Sou humano, e nada do que é humano me é estranho. Quantos podem hoje afirmar o mesmo, nesta época em que, todos especialistas numa coisa qualquer desinteressante, perdemos a capacidade de comunicação entre a filosofia, a arte, a religião, a ciência, o desporto e a política? A cisão entre estas grandes áreas da expressão humana é um dos maiores entraves ao progresso.

Veja-se: recomecei as aulas na semana passada. Numa cadeira reflectíamos sobre as várias tentativas de definição do mito. O professor, cansado, concluiu pela impossibilidade de assentarmos numa, pela dificuldade em teorizar o fenómeno. Na aula logo a seguir, porém, outro professor, de área diferente (a bela Filosofia), de imediato aponta no quadro os traços essenciais, delineados com precisão, para que uma qualquer narrativa mereça a distinção de mito. Como é possível tal surdez entre saberes?

Por muito que Vicente de Moura queira mentir a si próprio, desporto e política não constituem duas esferas de acção humana irreconciliáveis. Spielberg agiu bem: Pequim 2008 é para a China o que Berlim 1936 foi para Hitler – uma gigantesca operação de propaganda. Leni Riefenstahl produziu para o ditador alemão um documentário dos Jogos em tudo cordato com a ideologia nazi (Olympia, filme de beleza rara, não obstante): era isso que se pedia a Spielberg. A sua atitude mostra que ainda há, afinal, pessoas íntegras. Seguissem outras o seu exemplo.

14 February 2008

Disparem Sobre O Pianista

Uma amiga minha, estudante de boas notas, abandonou recentemente o curso de Direito para, corajosa, prosseguir o seu sonho de longa data: ser cantora lírica. Marcámos um lanche, para ela me contar a novidade e eu lhe cantar os parabéns. Entre tostas mistas e um sumo, fomos conversando sobre a música e o mundo. Vice-presidente da Associação de Estudantes do Conservatório de Coimbra, L. (guardemos, por ora, o anonimato – em tempo oportuno, daqui por uns anos, talvez descubram, num cartaz do São Carlos, o nome dela) chamou-me a atenção para o ataque que o Ministério da Educação está a (pro)mover contra o ensino da música em Portugal. Eu lera já umas notícias sobre o assunto, e logo na altura achara tudo aquilo muito disparatado (mas essa já é a minha opinião natural sobre várias obras da actual Ministra), mas, após o lanche, resolvi, sherlock holmes, investigar o caso – e o que descobri horrorizou-me.

Depois do ataque ao Sistema Nacional de Saúde, eis o ataque à rede pública de ensino de música, essa arte maior, das artes a maior. De novo, tudo se pratica com boas intenções (o povo e os artistas é que, lá está, são burros, coitados!): desta vez, o alibi é a democratização do ensino da música. Pretende a Ministra que os conservatórios não possam dar aulas (os chamados cursos de iniciação) aos alunos do primeiro ciclo que, doravante, serão iniciados na arte musical na própria escola, no âmbito das actividades de enriquecimento curricular. Uma coisa, porém, não substitui a outra; posso afirmá-lo por experiência própria, eu que tive quer educação musical na primária, quer aulas de piano por fora, numa escola privada. Basta considerarmos que, numa turma, apenas se pode fazer uma sensibilização geral para a música, porque a aprendizagem séria de um instrumento requer um acompanhamento individual: não se pode ensinar piano a uma turma de trinta alunos (vulgarmente, escolhe-se a flauta de bisel, portátil, simples e barata). Para ultrapassar este limitação é que o conservatório oferece uma formação musical especializada, de seis horas por semana, às crianças.

A loucura da Ministra, contudo, não conhece limites, tendo passaporte para todas as fronteiras que pudéssemos conceber. Pretende pois o Ministério extinguir ainda o regime de frequência supletivo do conservatório, o mais comum, que permite ao aluno frequentar paralelamente o ensino normal e o musical, sem que seja obrigado a decidir-se especificamente por um deles. O fim deste modelo traduzir-se-á na perda de 75% dos actuais estudantes do Conservatório de Lisboa. Doravante, apenas o regime integrado estará disponível, o que obriga a que a opção por uma carreira musical de carácter profissional seja feita com somente dez anos. Esta situação – que uma criança, tão nova, seja forçada a decidir o seu futuro – é tão ridícula que, sou-vos franco e aberto, faltam-me palavras para a comentar: não sei que diga – apenas me resta o espanto ante a situação em que naufragámos. Com esta reforma, quem queira aprender um instrumento, sem desejos de fazer da música profissão, não tem mais os conservatórios.

No seminal 1984 de Orwell, todos os ministérios são nomeados pelo seu antónimo: assim, por exemplo, o Ministério da Paz é o responsável por perpetuar a guerra em Oceânia. Da mesma forma, em Portugal, o Ministério da Educação está na verdade encarregue da deseducação geral. Lamento que o novo Ministro da Cultura ainda não se tenha debruçado sobre este problema, contendo a insensatez da sua colega de governo. A música, como toda a arte, exercício humano de transcendência, é uma característica essencial da nossa natureza. Nela se exprime muito da grandeza ou ridículo de uma nação. Mesmo os cépticos e economistas têm de se curvar perante os números: a cultura representa 2,6% do PIB da UE, bem mais que o sector têxtil, a restauração ou o tabaco. Vale a pena investir nela. Estes aspectos financeiros, para mim, porém, são o menos relevante: o importante é a formação de homens, íntegros e integrais.

Contra isso combate o Ministério: contra ele combatemos nós.

imagem: fotograma de Tirez Sur Le Pianiste (1960), de Truffaut.

E Pur Si Muove!

No meu último ano do secundário, a Filosofia, a propósito dos Princípios da Filosofia de Descartes, que então estudávamos para o exame de final de ano, vi Galileo, adaptação cinematográfica da peça homónima de Brecht. O filme, preservado numa velha e corrompida cassete do professor, que o gravara quando fora exibido, gordos anos antes, no quarto canal, figura na lista das mais insossas películas que a minha cinefilia aturou (confesso-vos: aquele coro de garotos que, volta e meia, irrompe filme adentro, ainda hoje me atormenta os sonhos). Quando era miúdo, ria-me com o nome trava-línguas do “velho pisano”, como lhe chamou António Gedeão. O tempo cresceu, e eu com ele, e fui aprendendo a coragem de Galileu e amando o homem, tanto mais que, em pequeno, desejava ser, como ele, astrónomo, na impossibilidade de ser astronauta. O bom cientista, cego pelo Sol, morreu no século XVII.

E pur si muove! E, porém, move-se! Quando se imaginava o processo que a Inquisição lhe moveu já definitivamente enterrado – tão enterrado quanto o próprio Galileu –, eis que um grupo de professores da mais conceituada universidade italiana, La Sapienza, em Roma, resolveu ressuscitar a polémica, enviando uma carta ao reitor da instituição onde se declaravam contra o convite que este havia dirigido a Bento XVI para discursar na inauguração do ano lectivo. Os signatários justificavam a sua posição relembrando a laicidade da universidade, acusando o Papa de se ter pronunciado a favor do julgamento de Galileu num discurso em 1990.

O caso Sapienza permite duas linhas de reflexão: uma, mais geral, sobre a liberdade de expressão; outra, mais particular, sobre o regurgitado confronto entre ciência e fé. A liberdade de opinião está hoje – já o crocitámos repetidas vezes neste espaço – bastante ameaçada. Quem tenha dispensado alguns minutos a ler o discurso de 1990 de Bento XVI terá verificado que o Papa não defende o julgamento de Galileu, antes cita, em contexto próprio, um filósofo que o faz. Porém, ainda que o Bispo de Roma fosse, de facto, favorável à condenação de Galileu (não é), deveria ser livre de exprimir essa sua opinião. A liberdade de expressão comporta também a liberdade de ser idiota. Urge combater o império do politicamente correcto: relembre-se, no ano passado, o caso de James Watson, enxovalhado pela comunidade científica por ter avançado a hipótese de que raça e inteligência podem estar relacionadas. A ideia parece-nos absurda, mas isso não pode justificar a activação imediata de um sistema de censura pública: algumas instituições chegaram, imagine-se!, a retirar a Watson galardões com que o haviam premiado.

Por outro lado, no caso Sapienza, houve uma nítida tentativa de recuperar a antinomia ciência/fé. Nos EUA, este conflito está na ordem do dia, por um lado, devido ao 11 de Setembro, cujas motivações religiosas obrigaram muitos a repensar a natureza das religiões, por outro, por causa da cada vez maior expressão do fundamentalismo cristão americano, trazido para a ribalta com a questão do ensino do criacionismo nas escolas e com a reeleição de Bush. As religiões deparam-se hoje em dia com um grave cenário. Ameaça-as o indiferentismo, fenómeno muito próprio desta chamada pós-modernidade. Esta atitude leva parte dos crentes, como resposta, a procurar exprimir mais radicalmente a sua opção de vida, fermentando os fundamentalismos. Estes, por sua vez, originam nalguns ateus e agnósticos um forte sentimento de indignação, que os convence a extremar as suas posições, assumindo uma postura de crítica aberta ao fenómeno religioso. Indiferentismo, fundamentalismo e ateísmo radical (o «laicismo» dos professores da Sapienza): neste triângulo das Bermudas, a religião vai desaparecendo.

Desaparece – e pur si muove! É que, no fim de contas, a ciência não substitui a religião (Comte tentou fazer isso, e criou essa doutrina abjecta que foi o positivismo: obviamente, nunca tinha lido Fausto, para perceber que a ciência não pode satisfazer o homem). A história, porém, trata sempre de repor a justiça das coisas, com a sua ironia amarga: a Sapienza, riamo-nos!, foi fundada por um papa, Bonifácio VIII. Lá se vai o «laicismo»!

27 January 2008

Tudo O Que Sempre Quis Saber Sobre O Fecho Das Urgências

O ano novo inaugura-se em França – é essa a tradição gaulesa – com o incêndio de centenas de carros nos subúrbios (a crise é geral e não há dinheiro para fogo-de-artifício). Em Portugal, o povo, mais original, organiza manifestações para a festa (a do ano novo, e a “da democracia”, como uma vez a apelidou Sócrates). Desde o começo deste ainda magro ano, temos assistido, de facto, aqui – bem perto de nós –, a repetidos protestos contra o encerramento de mais uma urgência, neste caso concreto, a do concelho vizinho de Anadia.

O povo, coitado!, é muito estúpido: a maioria da população activa, de resto, não tem o secundário completo (por isso, aliás, é que o programa Novas Oportunidades é tão importante!). Se o povo não fosse tão estúpido, compreenderia rapidamente que tudo isto é para o seu bem: o Estado, não o esqueçamos, é uma pessoa de bem. “É só porque toda a gente é tão estúpida/Que há necessidade de alguns tão inteligentes” (escreveu-o Brecht). O Ministro da Saúde, Correia de Campos – pessoa de bem e inteligente –, até foi à televisão (esse meio que é o único que o pobre povo, bruto, compreende), explicar o programa do governo, na estação do governo, como tudo está a ser feito para nosso bem: diga-o a senhora idosa que faleceu no Hospital de Aveiro. Se está calada, é porque consente.

O povo, casmurro, porém, teima em não ceder (e já fizeram mais uma manifestação!). Por isso, o Corvo, em aberta solidariedade com o Ministro, propõe-se nas próximas linhas elucidar definitivamente a questão. Tudo começou a ser preparado há coisa de dois anos: não têm razão, pois, aqueles que criticam o Ministério por ter procedido ao encerramento dos centros de saúde sem ter criado as condições necessárias previamente. Com vista ao desmantelamento do SNS, o governo convocou das trevas um corpo de agentes especiais, treinados (eles mesmos o confirmam) por membros das SWAT – a polícia de elite dos EUA – e dos Serviços Secretos Portugueses: os inspectores da ASAE.

As urgências – o Ministro, clarividente, percebeu-o – só poderiam ser encerradas se mais ninguém ficasse doente: assim se tornariam, de facto, desnecessárias. Em profundo desacordo com Cristo (“Nada há fora do homem que, entrando nele, o possa tornar impuro”: Mc 7, 14), concebeu-se então a ASAE, para que esta, controlando rigorosamente tudo quanto era ingerido pelos dez milhões de portugueses, pudesse, assim, extirpar todos os possíveis focos de doenças, a saber: as bolas de Berlim, os rissóis caseiros e os jaquinzinhos (“E o peixe podre gera focos de infecção!”, já o reconhecia Cesário, o bom poeta, no século XIX!).

A ASAE fecha assim os restaurantes para que o Ministro possa fechar as urgências. Agora, alegrai-vos!, temos restaurantes mais asseados – e asaeados. Como havemos, de facto, de ficar doravante doentes? A partir de agora, qualquer doença só pode ser entendida como um gesto de mesquinha má vontade para com as louváveis intenções do Ministro. O governo, aliás, para que não tivéssemos qualquer desculpa de todo para adoecer, tratou também este novo ano de abolir o nocivo fumo do tabaco (exceptuam-se os casinos: assim o julgou bem, e correspondentemente se interpretou a lei, o inspector-geral da ASAE – mas também isto, acreditai!, é para vosso bem, apenas eu não sou ainda capaz de vo-lo explicar porque eu mesmo não o entendo). A política do governo socrático é, concordai, coerente: ainda recentemente reduziu também o IVA aos ginásios, para que pudésseis trabalhar o vosso físico e cuidar da vossa saúde, na impossibilidade de praticardes jogging no Kremlin.

E as maternidades – perguntais – porquê encerrá-las? Escutai, pois, o Corvo, guarda fiel do Ministro. Percebeu este que, se estamos já perante o segundo ano consecutivo em que a taxa de natalidade regista uma quebra significativa, pouco razão há para manter tantas maternidades abertas. Os governos, neste campo, têm sido bem sucedidos: de tal maneira as condições de vida pioraram, que poucos ousam já dar filhos a um país que os não merece. Outros emigram para ter os filhos (vão a Badajoz). Outros emigram, simplesmente: “Galiza ficas sem homens/Que possam cortar teu pão”.

Nobel Inventou A Dinamite

Aqueles de boa memória lembrar-se-iam, quiçá, ainda do nome de Bali, na Indonésia, dos atentados de há seis anos atrás, encravados entre os dois onzes, o americano e o espanhol. A cidade esgueirou-se de novo para as bocas do mundo graças à cimeira climática que aí decorreu durante a primeira metade de Dezembro. Porque, pela primeira vez, todos os países – mesmo aqueles em vias de desenvolvimento ou até manifestamente pobres – se uniram para redigir um acordo comum, esta conferência revestia-se de especial importância.
Eram grandes as expectativas – ao nível da importância da coisa. Os jornais, para medo nosso, iam anunciando as dificuldades nas negociações, e, pouco a pouco, a esperança redundou na desilusão. Uma ligeira nota de rodapé, dizem, resgatou o acordo, permitindo o chamado Roteiro de Bali. A pressão dos EUA, secundados por alguns países de considerável poder, nomeadamente o Japão e o Canadá, impediu o estabelecimento de metas concretas: tudo isso foi empurrado, como um camelo pelo buraco de uma agulha, para a tal nota de rodapé em que se alude às páginas do relatório do IPCC (Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas) onde se avançam – aí sim – os números que alguns quiseram esconder.
Não são algarismos agradáveis: pede-se aos países desenvolvidos que reduzam até 2020 os seus gases entre 25 a 40 porcento e a todas as nações que, em 2050, as emissões de CO2 sejam metade das actuais. Porém, a não enunciação explícita destes números no documento final limita-o bastante, tornando-o essencialmente num manifesto de boas intenções, e não permite, de modo nenhum, proclamações de vitória. O ambiente é um assunto por demais sério, cuja gravidade ainda não foi totalmente apreendida por todos. Tem-se trabalhado e não negarei os avanços feitos (veja-se, por exemplo, entre nós, o sincero triunfo das campanhas de reciclagem), mas, se ainda há alguma esperança, mesmo se mínima, de ganhar esta luta, ela exige ainda mais de nós, insatisfeita com os progressos registados.
Alguns estar-me-ão já a rotular de pessimista. George Steiner, no seu ensaio A Ideia de Europa, afirmava mesmo que um dos traços definidores do nosso continente é precisamente esta consciência aflitiva de um fim iminente. Talvez, portanto, o meu pessimismo não seja mais do que uma consequência do meu ser europeu. Não deixa de ser curioso que seja precisamente a União Europeia quem mais pugna pelas causas ambientais. Pelo contrário, os EUA, nos últimos anos, têm-se revelado, neste campo, uma força de bloqueio. Isto, porém, sob a batuta de Bush: também por essa razão, entre outras, as eleições americanas em Novembro são, possivelmente, o acontecimento político mais importante deste novo ano.
Nem todos, porém, se encontram necessariamente solidários com esta luta pelo ambiente. Há quem, receoso da mudança, procure proclamar, mesmo se a medo, que o combate contra o aquecimento global pode ameaçar a paz, como o director do Público, defendendo que o crescimento económico, que as metas do IPCC põem em causa, é o que sustenta a actual paz. Esta é uma argumentação sem dúvida original – mas débil, que menospreza o que está verdadeiramente em questão: a nossa sobrevivência enquanto espécie.
O Prémio Nobel da Paz deste ano (perdão, do ano passado) foi para o IPCC (tomo a liberdade de não mencionar Al Gore). A tarefa do IPCC tem sido repetidamente relembrar-nos a bomba-relógio cuja desactivação teimamos em adiar, armados em James Bond, confiantes de que, como sempre nos filmes do espião, no último segundo, silenciaremos o mortal tique-taque. No fundo, o que este Nobel nos lembra é a dinamite sobre a qual caminhamos: que tenhamos isso sempre presente ao longo deste novo ano.