20 August 2008

Estudo Sociológico da Alma Portuguesa (Disfarçado)

Sempre apreciei os artistas de rua, na existência secreta que levam à margem de toda a sociedade, livres duas vezes, porque vão aonde querem e têm só o essencial. O meu paraíso privado é a escadaria imensa do Sacré-Coeur, em Montmatre, Paris, onde (e aqueles que viram Amélie lembrar-se-ão disso) dezenas destes bons saltimbancos encantam os transeuntes com o seu talento. Em tempo de Verão, não é raro encontrá-los nas artérias nocturnas das cidades junto à praia. Na outra noite, junto ao Casino da Figueira, ali estava: um malabarista jogando com o fogo, logo depois da estátua viva da mulher-borboleta. Impressionante. Alguém por trás de mim comentou: “Com tanta habilidade não deve ser português”. Esta frase é todo um programa.
Não acreditamos em nós próprios, maldizemo-nos (dizemos mal de nós e fazemos disso um desporto): temos a sinceridade de nos sabermos, no geral, homens sem qualidades. Que haja génios em Portugal, como o Gonçalo M. Tavares, é puro acidente, e nada tem a ver com o facto de serem portugueses; como o Euromilhões quando calha em Portugal calha em Portugal porque calhou (mas podia ter sido na China até, conquanto a China fizesse parte da Europa). O primeiro-ministro leva um lenço à cabeça, para apagar o suor e o medo, e pede-nos que não sejamos tão pessimistas porque tudo está bem e temos o Magalhães. Como não havemos de dizer mal de nós, se fomos nós que o elegemos? Com tão pouca habilidade para governar, é sem dúvida português: “Os lusitanos não se governam nem se deixam governar”, Júlio César dixit.
Esta falta de habilidade geral anda a preocupar gravemente a Ministra da Educação, que propõe agora instituir (a ver se estimula a habilidade, que é tão tímida) um prémio monetário de quinhentos euros que será entregue ao melhor aluno de cada escola, no final do Secundário. Escandalizou-se meio mundo com a notícia, incapaz de compreender que nenhum aluno se vai esforçar por tirar melhores notas na pauta para ter notas na carteira. Algumas notas soltas sobre o assunto. Temem os sociólogos, os psicólogos e outros –ólogos que esta medida fomente uma competitividade pouco saudável entre os alunos, mas isso revela um desconhecimento profundo da alma portuguesa. O português, efectivamente, tudo faz para ganhar mais uns tostões, desde que isso não implique trabalho. Exemplo: são vários os prémios de mérito nas universidades (com recompensas monetárias bem superiores a 500€); isso, porém, não trava a altíssima taxa de reprovações. Se a Ministra pretende reduzir o insucesso escolar, e é isso que pretende (engraçado que este mesmo verbo, em inglês, signifique fingir), escolheu o método errado. Quem tira boas notas (falamos aqui das notas de topo, claro) fá-lo, na maioria dos casos, como resultado de uma cultura de excelência inculcada cedo na criança pelos pais (não pelo país – um acento faz toda a diferença entre a verdade e a mentira) e, paralelamente, por um imperativo pessoal, outrora chamado brio. Excluem-se destas considerações os alunos de medicina.
Esses, empurrados por um sistema errado, são forçados a competiram estupidamente entre si, eliminando-se mutuamente por questões de centésimas. É por isso uma autêntica revolução o que o reitor da Universidade do Algarve veio anunciar no início do mês em relação ao novíssimo curso de medicina da sua universidade, que abrirá para o ano. Serão tidos em conta na admissão dos candidatos, como critérios verdadeiramente relevantes, a “atitude humana” ou a “experiência de vida com pessoas vulneráveis”. Enfim se entende que um médico tem de ser tão profissional quanto pessoa: só gostamos do Dr. House na televisão. Uma razão para não nos maldizermos: estamos a ganhar juízo, e em grandes quantidades (esperamos agora que isso não cause nenhuma indigestão). Nota importante, todavia: quem está a preparar o curso é um estrangeirado (outro que teve de partir), catedrático no King’s College, em Londres.
P.S.: O malabarista “com tanta habilidade” era alemão.

0 comments: