14 December 2007

Desmocracia

Se excluir um ou outro inquérito académico para o qual algum colega tenha pedido a minha colaboração nos corredores da universidade, penso nunca ter sido interrogado para um estudo a sério. Confesso também que, na realidade, procuro evitá-los e sempre que noto, à distância de cinco passos, um desses inquisidores de rua, armados de bloco, mudo a minha marcha. Aparentemente, a minha pouca colaboração não parece afectar grandemente a produção dessas estatísticas: diariamente, toda uma nação se psiacanalisa sem Freud nas manchetes dos jornais, sempre prontos a revelar mais um qualquer diagnóstico da nossa triste condição.

Estas últimas duas semanas foram pródigas – será a proximidade do final do ano, propício sempre aos balanços? – em estudos de toda a ordem. Ficámos a saber que, de todos os países da Europa, o nosso é o solitário que regista uma descida no Índice de Desenvolvimento Humano, mesmo se é também o único da Zona Euro para o qual a OCDE prevê uma aceleração no ritmo de crescimento. O relatório PISA 2006, sobre o estado da educação nos vários países da OCDE, e cujas conclusões foram agora reveladas, confessa que apenas a Grécia, a Turquia e o México conseguem piores resultados que Portugal. De todos os países, somos aquele com menos alunos a atingirem a nota máxima nos exames do PISA. Apenas um em cada quatro portugueses – diz a GFK, empresa especialista em estudos desta natureza – crêem que a sua situação pode vir a melhorar para o ano; no pessimismo, só os japoneses nos ultrapassam.

O nosso auto-retrato não é feliz, não pode ser feliz: para o concluir, bastaria ter assistido à bem concebida série de António Barreto e Joana Pontes, Portugal: Um Retrato Social, exibida no início do ano no canal público. Um estudo, porém, chamou-me, entre os demais, a atenção. Nele se dizia que um em cada dez portugueses “considera bom um governo militar”. Tal resultado, mais que qualquer outro aspecto, coloca a nu o falhanço da democracia portuguesa, na sua forma e prática actuais. Os próprios deputados, quase um em cada três, considera que se perde muito tempo em democracia com questões sem importância.

Tome-se, por exemplo, a discussão, no Parlamento, há uma semana, sobre os sucessivos ataques do Governo às várias liberdades dos cidadãos. O Governo e o PS responderam criticando o PC, por exemplo, pela recente expulsão de Luísa Mesquita, numa variante do ataque ad hominem – falácia argumentativa simples e frequente. Quando o PSD, por sua vez, investiu, o PS lembrou que a Madeira era “um jardim de exemplos da falta de democracia”. Tudo quanto os socialistas apontaram, somos forçados a reconhecê-lo, tem a sua razão – sucede, porém, que ignoraram totalmente, nas suas respostas, as críticas que lhes foram dirigidas. Quando um assunto desta importância resvala para uma mera troca de galhardetes entre as diferentes bancadas, é caso para, parafraseando Hamlet, exclamar: “Algo está podre na República de Portugal!”.

Perante esta des-mocracia, esta negação da verdadeira democracia, é natural, mas alarmante, que as pessoas comecem a considerar a possibilidade de um regime forte. A única maneira de combater esta tendência errada é credibilizando este moribundo regime, doente às mãos quer de uma elite política oportunista, quer de um povo comodista. A democracia está mal – mas o mal não está na democracia. Não nos esqueçamos, como dizia Churchill, que “a democracia é a pior forma de governo – se excluirmos todas aquelas outras formas que, de tempos a tempos, vão sendo experimentadas”.

Mulheres Seminuas e Verdades Cruas


A Juventude Socialista (JS) tem um novo outdoor. O objecto, espreguiçado por alguns amargurados metros quadrados, proclama pomposo sobre um fundo azul: “Desde 2005 mais de 54.300 estágios profissionais”. No canto inferior direito, ao lado de uns bonequinhos coloridos e dançantes, lê-se: “O futuro já começou”. A ocupar o lado esquerdo do cartaz, há um rapaz contente, abraçando pela cintura uma loira e uma morena. Dalguma forma, este outdoor é o símbolo final da política moderna. Passo a explicar.

Os partidos, sob recomendação do omnívoro capitalismo, converteram-se em empresas. As declarações de Menezes na semana passada, defendendo que o PSD deve “profissionalizar-se, passando a funcionar como uma empresa”, constituem uma imaculada expressão do tempo presente. Tendo um produto a vender – o programa político –, a empresa-partido recorre ao marketing para o divulgar junto dos clientes e consolidar a sua posição no mercado: assim se explica o outdoor da JS, a meio do mandato do mandão Sócrates, louvando as “vitórias” do executivo rosa. Mesmo aqueles sem qualquer formação na área da publicidade não ignoram que, numa sociedade infantilmente sexual como a nossa, a presença de uma figura feminina atractiva num anúncio é um artifício popular para promover o produto – exemplo disso é a última e parva campanha da TV Cabo, em que os serviços oferecidos pela empresa surgem encarnados em três raparigas que se querem de boas formas curvas. No outro dia, de resto, indo às compras com um amigo meu, até nas embalagens de queijo encontrámos uma imagem de uma mulher em biquini. Seguindo pois os mais eficazes métodos da publicidade, a JS, como boa empresa, resolveu colorir o cartaz com a já mencionada imagem do rapaz feliz em dupla companhia feminina. O partido que foi responsável pela criação, no tempo de Guterres, de um Ministério para a Igualdade, cola pelo país outdoors de um explícito machismo, denegrindo a mulher à condição de produto físico. Graças a Deus que os partidos não têm vergonha.

Empresas que são, necessitadas de vender, os partidos recorrem, para alargar a sua quota de mercado, a par e par com as mulheres seminuas, às semi-verdades, quando não mesmo à mentira. Isso, de resto, é uma prática comum nesse habitat: Durão Barroso veio ainda recentemente declarar sobre a famigerada Guerra do Iraque que “houve informações que me foram dadas, a mim e aos outros, que não corresponderam à verdade” – antes que Durão o tivesse reconhecido, já a realidade o confirmara há muito, infelizmente. O cartaz da JS obedece a estas técnicas de ocultação da verdade, amigas da publicidade. Eufóricos, os pupilos socialistas rejubilam com as medidas em prol dos jovens (dizem no seu site), com os 54.300 estágios (!) profissionais do cartaz. Esquecem deliberadamente os dados recentemente revelados pelo Instituto Nacional de Estatística. Segundo este, a taxa de desemprego – que se situa já nos 7,9% - subiu entre aqueles com menos de 35 anos. De acordo com a mesma fonte, a grande maioria dos 106 mil empregos que o governo reclama ter criado, por exemplo, só foram possíveis graças ao acentuado crescimento dos contratos a prazo: os contratos sem termo, pelo contrário, reduziram-se. Seria contudo estranho pedir aos jovens outro comportamento, quando o governo do seu próprio partido envereda pelas mesmas tácticas. Ainda na sexta, o Tribunal de Contas veio denunciar como, através de uma metodologia manhosa, o Ministério da Saúde apresentou resultados assaz positivos, quando, na realidade, a situação do Serviço Nacional de Saúde se deteriorou. E estas são verdades cruas que nenhum cartaz consegue disfarçar.

P.S.: Na impossibilidade de se encontrar o cartaz da JS para ilustrar este post, servimo-nos, em homenagem ao título, do anúncio da Channel com a nossa amada Keira Knightley -perdoem-nos.

Ensaio Sobre a (Má-)Criação

Coisa estranha, a criação artística: ninguém adivinha os favores com que conquistar a caprichosa inspiração – o seu orgulho não se deixa dobrar com preces. Como em peregrinação ao santuário dela, vagueava, perseguindo-me, em círculos pelo quarto, sem que com isso procurasse aquecer-me contra o novo frio (como Garrett insinua na abertura das Viagens), antes buscando assunto para a crónica, como o movimento procriasse ideias. Hábito caricato. Herdámo-lo, quiçá, dos alunos peripatéticos de Aristóteles, que caminhavam em diálogo com o mestre pelos pórticos jardinados do Liceu. A divagar, dizem, se vai ao longe – literalmente, se os pés acompanharem a cabeça. Nem no espaço, nem na imaginação, porém, eu avançava, enquanto circum-navegava os cantos do meu quarto. Índios americanos, esperamos que a nossa dança circular nos traga a chuva da inspiração. Perante a aparente esterilidade da técnica, recordei em desespero as palavras de um amigo meu, que proclamava ser necessário violar a musa, talvez inspirado por um conto dessa seminal série da banda desenhada que é Sandman.

Não é, vê-se, coisa simples, a criação. Que o diga João Botelho ou Alexandre Valente, os protagonistas do escândalo que rebentou em torno de Corrupção, filme que estreia amanhã no nosso Cine-Teatro. O produtor, Alexandre Valente, descontente com a montagem final de João Botelho, o realizador, arrogou-se o direito de proceder a uma nova montagem, mais curta. Face a isto, o realizador exigiu que o seu nome não fosse creditado. O produtor, esse, alegre, tem vindo defender-se descomplexado para a televisão, sem entender o profundo ridículo de que se vai cobrindo aos olhos da comunidade cinéfila: receio mesmo que não encontre nenhum realizador para um próximo projecto. Alexandre Valente gaba-se de ter tornado o cinema numa mera mercadoria, como a arte fosse plasticina ou uma wikipedia, moldável por quaisquer mãos.

O que, contudo, mais me entristece é o facto de as pessoas pactuarem com esta fraude. É bem possível que o arrogante produtor alcance o seu objectivo: que Corrupção seja o filme português mais visto de sempre. Se, suponhamos, um vendedor de arte modificasse uma tela, de imediato esta ficaria excluída de qualquer leilão. É pois caso para repetir a recente pergunta do realizador Pedro Costa: “Porque não exiges do cinema o mesmo que exiges à pintura ou à arquitectura?”. Ninguém admira um Siza Vieira para relaxar – continuamos, porém, a teimar ver o cinema como mero entretenimento e não como arte. Tenho sempre o hábito de ficar até ao final do genérico do filme na sala de cinema, quando já as luzes se acenderam e as senhoras da limpeza arrumam as pipocas mortas no chão: de alguma forma sinto que, permanecendo ali, olhando o desfile dos nomes de quantos participaram na construção da obra, lhes presto homenagem. Ai!, tempo triste, este, em que as pessoas, bem pelo contrário, indiferentes a isso, acorrem até às salas para ver um filme sem assinatura.

A prepotente atitude de Alexandre Valente é um gesto óbvio de má-criação, no duplo sentido da palavra: por um lado, manifesta um desrespeito enorme pelo realizador e pela Arte; por outro, porque é, muito literalmente, uma má criação, um péssimo produto, que alicerça o seu sucesso na polémica em torno do livro que lhe deu origem e nas cenas de sexo, essenciais hoje a qualquer filme português que procure o sucesso comercial: nisto descamba o capitalismo artístico. Nisto e na justa greve que os argumentistas americanos iniciaram na semana passada contra os grandes estúdios e cadeias de televisão e que põe em risco, por exemplo, séries tão bem-amadas como Lost ou 24. Entre outras coisas, exigem os argumentistas – e bem – que as empresas partilhem com eles os lucros resultantes das vendas de DVDs.

Com filmes como Corrupção, para quando a greve dos espectadores?

28 October 2007

O Deserto do Real

Há, no Matrix, essa obra magna da ficção científica, uma cena, ainda no princípio, em que o protagonista abre um livro do filósofo francês Baudrillard, Simulacros e Simulação, em cujo interior guardava alguns materiais informáticos. Porque, como os fãs aprenderam, tudo no filme dos irmãos Wachowski tem um significado, também eu, movido pela curiosidade, procurei saber mais sobre a obra do pensador francês. Esta inicia-se com uma reflexão baseada num conto de Jorge Luis Borges, titã da escrita, que, por sua vez, se inspirou em Lewis Carroll. O argentino imagina um mapa tão perfeito que corresponderia, ponto por ponto, ao próprio território que cartografava. Baudrillard usa a estória como uma metáfora: para o francês, o mapa triunfou sobre a realidade, e hoje a nossa vida desenrola-se no mapa, e não já no mundo real que ele encobre – desse apenas subsistem restos dispersos.

O real tornou-se, a bem dizer, irrelevante. Temos aqui um dos mais crus diagnósticos da nossa sociedade pós-moderna, onde tudo parece; nada, porém, é. Numa sociedade destas, a Estatística adquire particular destaque. Ela é, por excelência, a ciência da imagem, projecção do real que se quer fazer passar por ele. Neste mundo-mapa, em que o real foi soterrado sob o peso das suas variadas representações, transforma-se o retrato na cousa retratada (parafraseando Camões). Como Borges, também o génio de Poe intuiu a verdade do nosso tempo em O Retrato Oval. Nesse conto do mestre do gótico, certo pintor vai desenhando, em toda a graça e detalhe, a sua amada, sem se aperceber, contudo, que, lentamente, a vida dela é transferida para a tela. Quando o artista, por fim, contempla a sua obra, perfeita, olha a mulher – ela estava morta. É este, hoje, o estado das relações entre a realidade e o mundo fictício em que nos movemos.

Vem esta reflexão a propósito do novo Estatuto do Aluno, aprovado, faz hoje uma semana, pela Comissão Parlamentar de Educação, apenas com os votos favoráveis do obediente PS (Partido Sócrates). O diploma, que tem como principais objectivos, supostamente, combater o abandono e insucesso escolares, prevê que, para os alunos que excedam o número de faltas, os professores façam uma “prova de recuperação”. O PS defende a medida com o seu desejo de “uma escola pública inclusiva” que não exclua “por conta, apenas, de um determinado número de faltas”. Este novo Estatuto, na realidade, iliba os absentistas, concedendo-lhes uma possibilidade de recuperação à qual, em virtude do seu ostensivo desleixo, não deveriam ter direito. Torna-se possível a um aluno, teoricamente, faltar o ano inteiro e, ainda assim, passar de ano, bastando para tal ter um resultado positivo na dita “prova de recuperação”. Claro que as reprovações, graças a esta artimanha, vão diminuir: bem sublinhou Vasco Pulido Valente no Público que estas provas “pelo nome já indicam a sua natureza e o seu fim”.

Na prática, portanto, estatisticamente, se estas medidas entrarem em vigor, haverá uma redução assinalável no insucesso escolar. Deste modo, uma vez mais a imagem usurpará o lugar do real – e o mapa triunfará, de novo. É irrelevante que todos esses alunos que vão ser salvos graças às ditas “provas de recuperação” transitem sem quaisquer conhecimentos que lhes permitam enfrentar o ano escolar seguinte. O que interessa é a estatística, o retrato: e esse é positivo – mesmo que artificial. O mais grave, porém, é que, depois, serão sobre estas estatísticas – tão distantes da realidade quanto os funcionários da 5 de Outubro estão do quotidiano escolar – que novas medidas serão tomadas (ou não). O real, sublinhamos, ficou para trás há muito tempo: tudo são construções de imagens sobre imagens. É sobre uma ficção que trabalhamos, numa ficção nos movemos e existimos: eis a hipoteca da realidade. Como diz Morpheus, personagem do Matrix, citando Baudrillard: “Bem-vindos ao deserto do real”.

Sobre O Uso de Máscaras

No dia sete de Outubro, tendo-se deslocado a Montemor-o-Velho para assistir ao lançamento de um qualquer projecto, o primeiro-ministro foi recebido por alguns manifestantes. Nitidamente arreliado, acusou o PCP de ser o responsável pelos protestos: “Onde quer que eu vá [os comunistas] fazem manifestações, utilizando os seus dirigentes sindicais. A polícia, com a alegação de a manifestação não se encontrar autorizada, procedeu à identificação de alguns sindicalistas, isolou o grupo com fitas e apreendeu uma faixa. A “festa da democracia” – expressão cunhada por Sócrates – parece já não ser, afinal, assim tão engraçada. O fascinante neste episódio é o desmascaramento de Sócrates, mesmo se este se disse não ofendido. Subitamente, revela-se a sua incapacidade de lidar com as críticas de que é alvo, bem como o seu profundo orgulho, exposto a nu o artificialismo da sua persona pública e o seu sorriso falso.

Procurando evitar desagrado igual quando o primeiro-ministro, dois dias depois, fosse à Covilhã, alguém, vigilante (e anónimo), mandou, na manhã seguinte, dois polícias visitarem a sede do Sindicato dos Professores da Região Centro, donde levaram algum material de divulgação da acção de protesto prevista e autorizada para o dia seguinte. A governadora civil de Castelo Branco veio logo esclarecer que esta se trata de “uma actividade rotineira da PSP”. Julgava eu – erradamente, vejo – que a função normal das forças da autoridade era não tanto controlar o exercício da liberdade, mas antes garantir a segurança dos cidadãos. Oficialmente, essa foi, de facto, a justificação: a diligência foi destinada a averiguar situações com “significado para a segurança” do primeiro-ministro, e o próprio Corpo de Segurança Pessoal deste foi contactado. Calculo que pouco importará o facto de a manifestação nem sequer ter sido convocada pelo sindicato dos professores mas sim pela União dos Sindicatos de Castelo Branco.

Em parte, estes ataques aos sindicatos de professores já tinham sido anunciados pelo primeiro-ministro, a 5 de Outubro, quando sublinhou que “o governo não ataca os professores”, afirmando ser necessário não confundir “professores com sindicatos”. Daqui se subentende que quem é então atacado são os sindicatos. Aparentemente, o problema é estes confundirem “o direito à manifestação com o insulto”, como acusou Sócrates em Montemor. O Ministro da Administração Interna, Rui Pereira, veio já esclarecer que “é preciso ter cuidado com o tipo de palavras que se colocam nas faixas”, porque “não se pode insultar as pessoas”. Toda esta insistência no insulto recorda-me demasiado o caso Charrua: lembram-se?

Questionado sobre o caso Covilhã, o secretário de Estado adjunto da Administração Interna afirmou que “se começamos a sustentar que na aplicação da lei, em relação a quaisquer manifestações ou expressões críticas ou de aplauso, há uma margem para se extravasar a lei [...] abre-se a porta para situações que podem ser melindrosas e depois exigirão medidas de correcção de intensidade maior”. Assusta-me imaginar o que possam ser estas “medidas”. Por sua vez, interrogado sobre o sucedido na Covilhã, Sócrates aconselhou a “esperar pelos resultados” do inquérito. A espera foi curta: menos de uma semana depois, o caso foi convenientemente arquivado sem resposta e sem vergonha. Tudo indica que a acção dos polícias não foi ilegal. Não sei como reagir: se fique descansado, por tudo ser conforme a lei; se fique inquieto, por a “lei” o permitir.

Recordo aqui uma estória grega, para explicar a origem do género cómico, segundo a qual certos camponeses atenienses, cansados da exploração de que eram alvo por parte dos habitantes da cidade, se dirigiram a Atenas e, aí, insultaram abertamente aqueles que os oprimiam. Contudo, temendo retaliações futuras, prudentes!, mascararam-se, para não serem identificados. Talvez seja tempo de os manifestantes portugueses, como os gregos, começarem, neste jogo de máscaras e hipocrisias, também eles, para sua segurança, a mascararem-se...

14 October 2007

Do Budismo

Retomei na semana passada um conto em que trabalhei durante as férias. Ao descrever um particular movimento de alma da personagem principal, veio-me à lembrança, como recta ilustração dele, uma velha parábola budista. Não me recordo onde a li pela primeira vez (quiçá, no bom Siddharta, de Herman Hesse?). A estória revolve em torno de um homem que, atingido por uma seta embebida em veneno, se recusa a ser tratado sem antes saber quem o feriu – perecendo antes que tal informação consiga ser averiguada. Pretende a parábola ensinar que o homem não deve ocupar-se com especulações filosóficas bizantinas; antes, face à realidade do sofrimento, superá-la. Curioso que a minha mente tenha regurgitado esta memória agora que se fechou o mês de Setembro, em que tanto se falou do budismo.
Tudo começou com a vinda do Dalai Lama a Portugal. O acontecimento acabou abafado pela polémica em torno dele, degradante espectáculo da diplomacia portuguesa. O governo português, “como é óbvio”, recusou-se a receber o Prémio Nobel da Paz. E, como é óbvio, o governo provou-se ridiculamente patético com essa sua atitude. Submisso como um cão, Portugal curvou-se (é esse o costume oriental de saudação) perante a China. Eis que somos governados por quem valoriza o dinheiro acima do homem. Não me devia ter surpreendido, porém, com essa apóstata inversão de valores: este é o mesmo governo que sempre assim os ordenou e dessa forma justificou o encerramento de vários serviços públicos pelo país. Da mesma maneira – vergonhosa, esperada – o PCP veio servilmente em defesa da madrasta China. É revoltante, como um ultimato inglês, esta submissão a uma das maiores ditaduras do mundo. Pelo contrário, Angela Merkel, a chanceler alemã, recebeu, uma semana depois, o Dalai Lama, como é obvio. Convenientemente para o governo, o telejornal da estação pública ignorou por completo o acontecimento, como nota Eduardo Cintra Torres no Público de sábado. Porém, já em Dezembro, mês em que se comemora a Declaração Universal dos Direitos Humanos, Portugal, coerente e contente com a sua hipocrisia, deverá abrir as suas fronteiras a outro ditador: Robert Mugabe, presidente do Zimbabwe. Causa-me impressão que um país destes esteja à frente da presidência da UE – causa-me impressão que eu seja um cidadão desse país.
Os monges budistas têm também chamado a si as atenções pelo papel proeminente que estão a desempenhar na chamada “Revolução de Açafrão”, na Birmânia. Subitamente, os media começaram a falar desse país, do longo lento e mudo sofrimento de uma ditadura de quarenta e cinco anos. “Todos somos responsáveis por tudo perante todos.” – esta frase de Dostoievsky, que conheci via Simone Beauvoir (O Sangue dos Outros), hoje, num mundo globalizado, em que, à imitação de Deus, tudo sabemos, e cada canto do mundo é uma casa vizinha, é mais do que nunca verdadeira, carregando-nos de uma responsabilidade de que não nos podemos, sem prejuízo moral próprio, escudar. Várias campanhas têm sido lançadas estes últimos dias e petições diversas, por exemplo, correm apressadas pela Internet. Também a comunidade internacional tem vivamente repudiado a repressão de que estão a ser alvo os manifestantes. O futuro, porém, está longe de estar seguro – e tudo pode ainda terminar num imperdoável massacre, do qual seríamos todos culpados. A acção urge. Contudo, a China é possivelmente o único país capaz de forçar efectivamente a Junta Militar a abrir o regime, devido à importância das relações económicas entre os dois países. Infelizmente, Pequim não preza particularmente a democracia ou a liberdade dos povos. Triste mundo este em que os direitos humanos são negociados com base em questões económicas. Como na China. Como em Portugal. Parece-me que não precisamos de criar, como insensatamente sugeriu Maria José Nogueira Pinto, uma Chinatown: Portugal é já, neste campo, um Chinacountry.

16 September 2007

Realportugal


Ofegante, pedi autorização para passar à frente na fila, comprei o bilhete, corri para a plataforma e saltei para a última carruagem. Sentei-me e descansei da minha maratona. Subitamente, ainda nem tínhamos chegado à Estação Velha, o comboio parou na linha. Cinco minutos depois, persistia na sua birra de não andar. Cansado de mais para ligar o mp3, resolvi ouvir a conversa que, duas filas à frente, se desenrolava entre algumas passageiros de idade.

«Trabalhamos para ganhar uma miséria», desabafava uma senhora junto à janela (chamemos-lhe G.). A frase deu o mote: começou a rabujar-se contra as regalias dos políticos. Do seu lugar solitário, um viajante (digamos, B.) contribuiu: «Todos querem ir para o poleiro. Ao fim de quatro anos têm reformas». A outra resmungou que por isso é que já não punha os pés nas eleições. A mais nova do grupo (tratemo-la por H.), algures nos seus cinquenta, afirmou que insistia em ir às urnas, mas votava em branco. B. avisou-a contra isso: tinha já estado em mesas de voto e sabia como os votos em branco eram por vezes adulterados, aconselhando-a por isso a votar sempre nulo, com uma cruz de alto a baixo. H. agradeceu o alerta.

G. retomou a conversa para lançar nova invectiva contra os privilégios da classe política. Tinha sido revelado no talkshow da Fátima Lopes que mesmo o ex-presidente ainda tinha guarda-costas. H. mostrou-se particularmente indignada: asseverava que n’ As Tardes da Júlia tinha estado uma mãe a quem, por causa de negócios da droga, haviam morto o filho e cuja cabeça estava a prémio. «Mas essa, que precisava, não tinha protecção policial: teve de ser a Júlia a garantir que a protegiam à saída do estúdio». O filantropismo televisivo, de facto, continua sempre capaz de me surpreender. «Estes são grandes programas para se descobrir certas coisas», rematou a mulher, convicta da sua palestra.

Inevitavelmente, chegou-se ao caso Maddie. «Agora já ninguém os apanha», declarou H. firmemente. «Quem vai mantendo este caso são os governantes, porque assim ninguém fala do governo», explicou B., entre gestos fortes. Alguém acrescentou que os McCann mantinham amizades com altas chefias do Estado. G. passou então à acusação: «Aquela mãe... Ela tem má cara: não engana ninguém». H., que parecia sempre actualizada, completou: «Diz-se que na Inglaterra fizeram um perfil dela e que tem os traços todos de quem matou a menina». G. prosseguiu a leitura da sentença: «Nem uma lagrimazinha deitada! Ao menos a mãe da Joana ainda foi lá chorar para as televisões». Foi então que B. lançou a sua bomba: «Nós em Portugal ainda estamos muito atrasados sobre esta caso. O meu genro, que é da Alemanha, diz que lá já veio nos jornais a dizer que eles pertencem a uma seita de orgias em que matam crianças para as luxúrias deles». A conversa prosseguiu, e por fim regressaram a outros temas nacionais. Em jeito de sumário, H. suspirou: «É o país que temos: temos de nos contentar».

Dentro de mim, recalcava-se uma vontade de rir. Assistira a um exercício totalmente gratuito de especulação barata, cujas teses não resistiriam à mais superficial leitura de um jornal dito sério. Ao mesmo tempo, porém, abatia-se sobre mim uma tristeza: era isto o país. Há a chamada realpolitik: bem-vindos ao realportugal. Ali estava a falta de esperança no futuro, a descrença total na classe política, a manipulação fácil pela televisão, a especulação tonta e, finalmente, dramática, a resignação. Isto, mais que tudo, preocupou-me. É que, como dizia José Manuel Fernandes no editorial do Público há uma semana: “Nenhum país, nem nenhum povo, nem nenhum indivíduo, conformados com os seus destinos, podem mudá-los”.

03 September 2007

O Nojo (Em Dois Tempos) ou As Vantagens da Internet

1. A Internet, corolário tecnológico da democracia, é, possivelmente, a maior invenção do século XX. Espaço inédito de expressão, experiência sociológica anarquista, a web é a manifestação por excelência da vox populi: veja-se, por exemplo, a facilidade com que hoje é possível a qualquer utilizador criar uma petição online e divulgá-la por e-mail ou na blogosfera. Servindo-se dessa possibilidade nova, um dos autores do blogue Hotvnews 2.0, espaço dedicado ao cinema e à televisão, redigiu uma furiosa invectiva contra o quarto canal, disponível em http://www.petitiononline.com/offitvi/petition.html, onde pode ser subscrita.

A irritação do autor e de quantos já assinaram a petição deve-se aos novos horários para que a TVI relegou The Office: O Escritório. Versão americana de um original inglês que apenas posso vivamente recomendar, esta série de culto foi inclusive vencedora do Emmy de Melhor Série de Comédia em 2006, encontrando-se de novo na corrida ao prémio este ano. A TVI, que tinha adquirido os direitos, cancelou, ao fim de duas semanas em Julho, a emissão de The Office, apenas para a retomar em finais de Agosto com um episódio às cinco e dez da manhã.

O nojo – esse é o único sentimento que me invade perante a atitude do canal de Queluz. O nojo – e a revolta, acrescentaria. Esta petição reveste-se de um valor simbólico: ela não protesta apenas contra o tratamento dado às séries, mas contra toda a política de programação da TVI e o seu telelixo. Ouso mesmo mais: esta petição é quase um manifesto não só contra o quarto canal, mas contra todas as estações generalistas e a sua lógica estupidificante, contra a forma como sistematicamente exorcizam de si os programas de qualidade. Ainda este Verão, tempo sempre mais propício à preguiça de ver televisão, verifiquei essa verdade. E, ao contrário do que se possa argumentar, não se trata – ou não é isso o fundamental – de uma questão de audiências, mas sim de uma alergia patológica ao Bom (ou inveja dele). De que outra forma se explica que a SIC, por exemplo, a 17 de Agosto, tenha relegado para a uma e quinze um filme como o Senhor dos Anéis III, que, como é sabido, tem um imenso público? Chega disto.

2. Espaço de liberdade absoluta, viveiro de freelancers, a Internet constitui-se à margem dos circuitos convencionais de informação controlados pelos media. Assim, pelo trabalho vigilante dos bloggers, notícias que, doutro modo, não teriam cobertura, chegam à esfera pública: sucedeu isso, por exemplo, com o caso da licenciatura de Sócrates, divulgado pelo Do Portugal Profundo. Da mesma maneira, o Kontratempos, de Tiago Ribeiro, denuncia agora a presença, entre as listas de convidados da Festa do Avante, de algumas delegações suspeitas.

Estarão na Quinta da Atalaia, ao que parece, representantes dos respeitáveis partidos comunistas de Cuba, do Vietname, da Coreia do Norte e da China: impecável lista de ditaduras. Com estas presenças, é caricato (ou revelador) que um dos temas em destaque no ciclo de debates a promover na edição deste ano da Festa seja precisamente, de acordo com o Jornal de Notícias, “as ameaças ao actual regime democrático de Portugal”. Já a edição do ano passado não escapou à polémica, quando foi denunciada a presença na Atalaia de um stand da revista oficial dos guerrilheiros da FARC, grupo que a União Europeia classifica de terrorista. O PC, curioso!, discorda deste rótulo, argumentando que se trata de “uma organização popular armada que há mais de 40 anos prossegue a luta pela real democracia na Colômbia e por uma justa e equitativa redistribuição da riqueza”. A prossecução desses nobres fins, estou certo, justificará os raptos e mortes perpetrados pelas FARC. Alguns, no ciberespaço, apelam já ao boicote da Festa da Atalaia. Urge que as “amizades” do PC comecem a ser discutidas publicamente: leia-se, a esse propósito, a peça laudatória de Miguel Urbano Rodrigues intitulada Guerrilheiras das FARC, disponível no site do Avante!. Haja vergonha: da nossa parte, só sobra o nojo. ■ o corvo

25 August 2007

O Despertar da Mente

Entre os leitores deste texto, algum porventura mais cinéfilo terá reconhecido no nome da crónica o título do penúltimo filme de Michel Gondry, estreado em 2004, com Jim Carrey no papel principal. O famoso actor interpretava nessa película Joel, um homem que, desiludido com o fracasso da sua última relação amorosa, resolve recorrer aos serviços de uma novíssima empresa dedicada à eliminação de memórias com o objectivo de apagar todas as recordações da mulher que amara e assim ultrapassar a dor que o acomete.

Vem a referência cinematográfica a propósito de uma breve notícia, já do mês passado. Assuntos mais urgentes, contudo, adiaram o seu tratamento aqui neste espaço crocitado. Segundo o Público, então, uma equipa da Universidade do Colorado terá concluído, em estudo publicado na Science, que “as pessoas conseguem suprimir memórias específicas num dado momento, através de um treino repetitivo”. Se o jornalista sublinhava as eventuais utilizações positivas da descoberta – por exemplo, para as vítimas de stress pós-traumático –, menos optimista foi a minha reacção, que na novidade descobria um potencial perigo.

Já o brilhante Borges, na sua História da Eternidade, relembrava: “Sabe-se que a identidade pessoal reside na memória e que a anulação desta faculdade implica a idiotia”. Para Platão, tudo era, de resto, reminiscência. A nossa identidade reside, efectivamente, no nosso passado, o operário do nosso presente. Apagar memórias, por desagradáveis que sejam, é um exercício de amnésia, de desfiguração do eu. Freud demonstrou como acontecimentos desagradáveis, recalcados na ânsia de esquecer, acabam por influenciar o comportamento. O psicanalista esforçava-se, nas suas palavras, por substituir o id pelo ego, trazer o inconsciente ao consciente: só deste modo o doente compreenderia as causas profundas dos seus medos e desejos. Ousa-se agora o contrário: recalcar essas memórias ao extremo de apagá-las.

Se, de facto, o que distingue duas pessoas é, essencialmente, as suas memórias, então, alguém a quem se elimine uma lembrança não é, por certo, depois da operação, a mesma pessoa que era antes: passa a ser alguém diferente, digno mesmo de outro nome. Há, nisto tudo, também um sinal da progressiva e maior assimilação do homem à máquina: tal como num computador, eliminam-se “ficheiros” do cérebro humano. Receio passarmos a ter semipessoas, preenchidas de lacunas; pessoas felizes somente porque esquecem, como os tristes lotófagos da ilha onde Ulisses desembarcou no seu périplo errante, narrado na Odisseia.

Este é, de resto, um tempo que valoriza o esquecimento e a tudo dá prazo de validade, atitude perigosa, pois o passado é a chave para perceber o presente e prevenir o futuro. A memória é um dos cinco pontos cardeais da essência da Europa, na opinião de George Steiner, que a define como lieu de la mémoire no seu importante ensaio A Ideia de Europa. Pude comprová-lo na minha ida a Paris, em inícios do mês: as ruas enchiam-se de lápides relembrando quantos tinham tombado em defesa da cidade na Segunda Guerra Mundial. Deparei-me mesmo com uma inscrição dessas que celebrava “um francês”, caído no sítio onde se erguia a placa: nem sequer lhe sabiam o nome, mas persistiam em relembrá-lo, todavia.

Esta contracorrente, insistindo em recordar num tempo de esquecer, anima-me. Para concluir, recorro a essa linguagem verdadeira que desaprendemos com o tempo: a mitologia. Um dos dois corvos de Odin, deus primeiro do panteão nórdico, chamava-se Memória. O par de pássaros era o símbolo da sua omnisciência. Julgo a alegoria decifrada.

A Sociedade Aberta e Seus Inimigos - Parte III

Concluímos nesta crónica a enumeração das figuras que representam, pelas suas acções, uma ameaça para a sociedade aberta. Os seus dois detractores que aqui apresentamos têm em comum a tentativa – inédita entre os demais que aqui temos vindo a indicar, cujos poderes, escassos, tanto não permitiam – de controlar/silenciar os media, o dito “quarto poder”.

4) Rui Rio, Presidente da Câmara do Porto. Reconhecemos ser estranho, num jornal local, criticar a actuação do presidente de uma câmara que nem pertence ao nosso distrito. Perdoe-nos o leitor esta pequena heresia, mas sentimos que, na lista que temos vindo a fabricar, a omissão de Rui Rio descredibilizá-la-ia, porquanto isso equivaleria a encobrir alguém que, pelo seu comportamento, provou já repetidamente não aceitar com especial agrado o exercício da liberdade. Alguns, dotados de memória – um bem cada vez mais raro e subestimado hoje –, lembrar-se-ão de quando o presidente da câmara do Porto atribuiu subsídios aos agentes culturais da cidade mediante a condição expressa de estes não criticarem o executivo camarário: ei-la!, a lealdade, de novo, tão querida aos inimigos da sociedade aberta! Também antigo é o diferendo mantido com o Jornal de Notícias e o Público: contra-ataca o primeiro no site oficial da câmara e o segundo nos “direitos de resposta” que, ao abrigo da lei, faz publicar; ambos em termos tão aguerridos que devem, ao observador atento, causar desconfiança. Esta não disfarçada “oposição à oposição” ganhou atenção mediática, porém, quando, no dia seguinte ao da manifestação “silenciosa” frente ao Rivoli, o site da câmara publicou um texto, onde noticiava, em tom nitidamente crítico, a participação de David Pontes, director adjunto do JN, no dito cujo protesto. O facto de um munícipe, no exercício legal dos seus direitos de cidadania, ser denunciado no site camarário – uma aberração numa sociedade aberta – parece, contudo, inteiramente justificável a Rui Rio, porque «pode ajudar a explicar muita coisa». Certamente que sim: explica toda a razão que o JN tem nas críticas que tece a este executivo. Porém, mais revoltante é que, sem consentimento do próprio, David Pontes foi filmado a participar na “manif” e o vídeo foi colocado online, a acompanhar a notícia que registava o caso no site. Este gesto representa um atropelo inominável de um dos mais básicos direitos do sujeito: o direito à imagem. Há algo de Big Brother na atitude. Note-se, por fim, que, apesar de o site da câmara criticar o director adjunto do JN pela participação na manifestação, não se faz qualquer referência à realização desse mesmo protesto, que contou com mais de mil pessoas. Confusos? Nós, pela nossa parte, estamos bastante elucidados.

5) José Sócrates, Primeiro-ministro. Sócrates figura nesta lista por demérito próprio e não apenas pela complacência para com os “erros” dos seus ministros que demonstrou no último sábado no Parlamento: o debate foi profundamente revelador ao não revelar nada. O engenheiro sem Ordem pôs ainda em tribunal, recentemente, o autor do blogue Do Portugal Profundo, aparentemente por difamação e denúncia caluniosa. O assunto da licenciatura de Sócrates, continuando nebuloso, mostrou, porém, um primeiro-ministro que, na ânsia de afastar de si as suspeitas, acabou por se contradizer (logo quando mandou retirar, do site do Governo, o título de engenheiro) e contradizer também documentos que depois vieram a público, falhando em esclarecer o caso completamente. Porém, eis agora António Caldeira, que sempre deu a cara – ao contrário de tantos outros –, processado, por ter, com a questão da licenciatura, destruído, definitivamente, o estado de graça do primeiro-ministro. Que Sócrates procura refrear os media vê-se, por exemplo, no novo Estatuto dos Jornalistas. Nesta «festa da democracia», espero eu, agora, não levar também com um processo em cima! ■ o corvo

10 July 2007

A Sociedade Aberta e Seus Inimigos - Parte II

Continuamos a listagem não exaustiva já iniciada na crónica anterior das figuras mais proeminentes que, de alguma forma, ameaçam a sociedade aberta e livre como a conhecemos.

3) António Fernando Correia de Campos, Ministro da Saúde. O afastamento da ex-directora do Centro de Saúde de Vieira do Minho, Maria Cardoso, é mais uma manifestação da acentuada sensibilidade do actual executivo. De acordo com o despacho da exoneração, Maria Cardoso foi demitida “por não ter tomado medidas relativas à afixação [...] de um cartaz que utilizava declarações do Ministro da Saúde em termos jocosos, procurando atingi-lo”. Não se acrescenta, contudo, que, por sua vez, essas “declarações do Ministro da Saúde” ofendiam os profissionais daquele serviço. O cartaz em questão reproduzia uma entrevista concedida por Correia de Campos ao Jornal de Notícias, a 6 de Agosto de 2006, onde este declarava: “Nunca vou ao SAP, nem nunca irei! [...] Porque não têm condições de qualidade. Têm um médico e um enfermeiro e conferem uma falsa sensação de segurança.”. As bases devem respeitar as chefias; estas, porém, podem livremente desdenhar do trabalho dos seus dependentes.

A lealdade – conceito importante em que os adversários da sociedade aberta baseiam as suas invectivas – funciona num só sentido. Não se espante, considerando os traços que vimos serem próprios dos inimigos da liberdade, que Maria Cardoso tenha sido acusada pelo ministro precisamente de “deslealdade”, por não ter prontamente mandado retirar a entrevista. Por outro lado, num exercício de obstinada lealdade, um membro da Juventude Socialista denunciou o caso aos seus superiores, que, depois, fizeram chegar a notícia às cúpulas. É caso para relembrar as palavras avisadas de Jorge Coelho: “Quem se mete com o PS, leva!”.

Outro pormenor que merece destaque é o facto de Maria Celeste ter sido pressionada para abrir um processo disciplinar contra o médico que afixara a entrevista e a rematara com um curto comentário irónico. Porém, ao contrário de Margarida Moreira, da DREN, criticada na crónica anterior, Maria Cardoso, numa atitude louvável, recusou-se a fazê-lo, sendo consequentemente demitida. Se seria ainda possível, por parte dalguns, defender que, efectivamente, não era muito correcto uma entrevista assim estar exposta num centro de saúde, é já, contudo, difícil – a partir do momento em que se percebe que a razão da demissão foi a recusa de Maria Cardoso em instaurar um processo contra o médico – não suspeitar que estamos perante um exercício de violência política.



Em defesa do ministro, a Secretária de Estado da Saúde, Carmen Pignatelli – que aqui inscrevemos no rol dos inimigos da sociedade aberta – considerou que a liberdade de expressão deve ser exercida nos “locais apropriados”, a saber, “nas nossas casas, na esquina do café (?), e com os nossos amigos”. Note-se a incorrecção das palavras, porquanto o professor Charrua foi precisamente denunciado por um “amigo”. Muito segura das suas afirmações, sem pudor, exclama: “não tenhamos vergonha de dizer isto”. Não tenhamos nós, de facto, vergonha de dizer isto: a liberdade está a ser, já nem muito veladamente, ameaçada, por comportamentos dos seus opositores como os acima descritos. Ao caso Vieira do Minho, como este já foi apelidado, vem-se juntar o de Fernando Portal, alegadamente afastado, ao fim de dezassete anos, da presidência do hospital de S. João da Madeira por críticas à política de encerramento das urgências do ministério, caso que remonta já a Maio. Pouco a pouco, vai-se revelando a verdadeira natureza deste ministério que de saudável, sinceramente, tem pouco.
o corvo

A Sociedade Aberta e Seus Inimigos - Parte I

O título da nossa crónica remete para o conhecido livro homónimo de Karl Popper, escrito durante a II Guerra Mundial, onde o filósofo procede a uma crítica implacável daqueles que considera serem os ideólogos do totalitarismo e opositores das democracias liberais. Inspirados pelo exemplo, e porque a nossa sociedade livre, filha do 25 de Abril, está hoje sob ataque cerrado, procedemos no seguinte texto a uma identificação dos seus principais inimigos.

1) Margarida Moreira, Directora Regional de Educação do Norte. Nela, traço recorrente dos adversários da sociedade aberta, o ódio à liberdade surge associado à megalomania: José Manuel Fernandes, director do Público, com doce ironia, afirma que a de Margarida Moreira é «proporcional ao seu volume». Assim, a Directora da DREN, como protectora dos oprimidos, na sua importante entrevista ao DN de dia 14, reconhece que quebra o silêncio apenas porque sente ser sua “obrigação” defender a instituição que coordena e os que nela trabalham. O discurso de Margarida Moreira é ainda, como seria expectável, pautado por súbitas, mas coerentes, manifestações de apoio a práticas autoritárias. «Defendo uma liderança forte», confessa. A entrevista tem este duplo mérito de, por um lado, permitir a análise do perfil psicológico do inimigo típico da sociedade aberta, por outro, de fornecer dados relevantes para uma análise mais profunda do “caso Charrua”. Margarida Moreira afirma ter sido avisada do insulto de Charrua, primeiro, por SMS, depois, por meio de uma participação escrita. Quanto mais dados emergem sobre este acto bufão, tanto mais detestável ele se torna a qualquer espírito livre – apenas aos inimigos da sociedade aberta ele não repugna; não transparece, de facto, uma única nota de condenação nas palavras de Margarida Moreira. Pelo contrário, a própria parece sugerir que quem, por exemplo, num contexto desportivo, insulta os árbitros, deve também ele ser punido. Os resultados do processo disciplinar movido contra Fernando Charrua foram entretanto revelados. Este é acusado de «grave desinteresse pelo cumprimento dos deveres gerais de lealdade e correcção». No tempo de Salazar, era também preciso ser-se leal: declarava-se mesmo, por segurança, «activo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas». Sobre este caso, ainda, acrescente-se que é particularmente sintomático que o mesmo insulto (“filho da p...”), quando dirigido ao primeiro-ministro, num ambiente privado, resulte num processo disciplinar; quando dirigido aos jornalistas, frente às televisões, por Alberto João Jardim, seja saudado com a permissividade do costume.

2) Maria de Lurdes Reis Rodrigues, Ministra da Educação. Esta mostrou a sua clara conivência com a actuação de Margarida Moreira ao reconduzi-la no cargo, em despacho também assinado pelo primeiro-ministro, a 5 de Junho. Ao fazê-lo, incorre em todos os crimes de que a outra é acusada no tribunal da liberdade. A Ministra, enquanto superiora política, terá ainda de se justificar pelo estranho afastamento da Associação de Professores de Matemática (APM) da comissão de acompanhamento do Plano da Matemática. Aparentemente, sob pressão repetida de um seu subordinado, Luís Capucha, a APM viu-se forçada a abandonar a já referida comissão em consequência das críticas que teceu publicamente ao funcionamento desta. Note-se que tropeçamos, de novo, no dever de “lealdade” – já invocado no processo de Charrua – que parece proibir críticas aos órgãos para os quais se trabalha ou com os quais se colabora, sob pena de afastamento dos mesmos. É próprio dos inimigos da sociedade aberta, por um lado, refugiarem-se no silêncio, fugindo às críticas, por outro, incentivarem-no, porquanto assim nem críticas há. Assiste-se à apologia do silêncio quando o exercício da liberdade se faz pelo uso da palavra. A prepotência, que isolámos já enquanto traço distintivo do adversário da liberdade, reencontramo-la na Ministra que, muito recentemente, ao ser confrontada com o acórdão do Tribunal Constitucional que declarou inconstitucional a repetição dos exames no ano passado, afirmou que voltaria a tomar a mesma medida. Em suma, inimiga da liberdade – e da razão.
o corvo

Os "G " Feitos Num 8

A cimeira dos G8, em Heiligendamm, na Alemanha, concluiu-se, enfim. Se alguma atenção os media lhe concederam, isso fica-se a dever não tanto ao trabalho dos políticos ali congregados, mas às manifestações violentas de alguns protestantes anti-globalização. Curioso é que, pesadas as verdades, no fim destes encontros, que, pouco a pouco, se foram infiltrando no quotidiano anual do mundo ocidental, ambas as partes ganharam o mesmo, que foi terem perdido. De facto, os líderes que, ritualmente, se reúnem, já provaram ter tanto sucesso nas suas aspirações quanto os manifestantes estão perto de travar a globalização e destruir o capitalismo.

O conclave dos ricos anunciou sexta-feira ao mundo que contribuiria com sessenta mil milhões de dólares para a luta contra a sida, a tuberculose e a malária em África. A declaração, porém, omitiu, convenientemente, o pormenor de que metade desse dinheiro virá dos EUA, que já antes tinham prometido essa ajuda. O texto não remete também para nenhuma data em concreto. Um prazo, contudo, tinha sido estabelecido na cimeira dos G8, há dois anos (por altura do celebrado Live Eight). Então, os governos haviam prometido duplicar a ajuda ao desenvolvimento africano até ao final da década. A verdade cruel, todavia, é que, ao invés, essa ajuda tem vindo a decrescer depois de 2005. Que necessidade há pois que se juntem agora para renovar a mentira das edições anteriores? De boas intenções, arde o Inferno.

Os oito companheiros manifestaram ainda – dizem os jornais – a sua preocupação com a situação ignóbil do Darfur, apelando a que os autores das “atrocidades” sejam julgados. O frenesim eufemístico da política moderna! No Darfur está em curso um genocídio: e por esse nome a Morte deve ser convocada. Os líderes das grandes potências, mais uma vez jogando com a ambiguidade da indefinição, prometeram ainda novas medidas contra o Irão, caso este não suspenda o seu programa nuclear. A avaliar pelo cumprimento de outras promessas do grupo, Ahmadinejad, o polémico presidente do Irão, poderá continuar calmamente a brincar à destruição de Israel, à qual já este mês se referiu novamente. O tom irónico destas palavras não deverá ocultar a gravidade da situação. Os G8 abordaram, de facto, questões essenciais: simplesmente, recuperando a sentença dos velhos Gatos, “falam, falam mas não fazem nada!”.

Claro que, naturalmente, não é fácil atingir um consenso quando um dos elementos de peso dos G8, a Rússia, por um lado, de acordo com a Amnistia Internacional, tem fornecido armas ao Darfur, por outro, sistematicamente, veta sanções que o Conselho de Segurança da ONU tem tentado impor ao Irão. A Rússia é, cada vez mais, uma peça central no xadrez do mundo: ainda há uma semana, ameaçou apontar mísseis a alvos europeus. O Kremlin parece, no entanto, ser assaz querido ao nosso primeiro-ministro, o qual foi recentemente à Rússia. O aspecto mais mediático desta deslocação toda foi, certamente, o jogging de Sócrates. O fait-divers não nos deve distrair, contudo, das suas afirmações, que não auguram nada de bom. “Ninguém queira começar a dar lições seja a quem for”, disse. Se há algo a que sou sensível, e me repugna com especial fervor, é a hipocrisia. Dói-me que Sócrates faça tábua rasa dos atropelos constantes do regime de Putin aos direitos humanos. Justificadamente, a delegação russa da Human Rights Watch exprimiu já a sua indignação com as afirmações do Primeiro. São as opções éticas do nosso bem-amado governo. Porém, igual indignação me causou a posição do Partido Comunista relativamente à censura de que foi alvo a RCTV, canal venezuelano, oposto ao regime, a que o presidente Hugo Chávez não renovou a licença de emissão. O PCP, no seu site, defende nitidamente a medida – coisa triste, muito triste.

O mundo enferma e, entre os sorrisos das fotografias, ninguém tem a coragem da chapada necessária. ■ o corvo

Anedota Triste

Há, entre a democracia e a ditadura, um amplo espectro político que aceita desvios a alguns traços-base de cada um desses dois regimes sem que, por isso, um se transforme no outro. Assim, a efémera primavera marcelista, não obstante certas liberdades arriscadas, era, ainda, um autoritarismo. Do mesmo modo, o regime de Putin, na Rússia, permanecendo uma democracia, contempla, porém, com vertigens (que induzem a queda), o precipício da ditadura. Ora, se Moscovo está já no final desse nebuloso espectro que separa os dois regimes, Portugal, longe ainda, inicia-se nessa travessia obscura, timidamente – ou não.

Muitos indícios têm vindo a acumular-se que confirmam esta suspeita, porém, nenhum tão vergonhosamente explícito como a recente suspensão de um funcionário da DREN (Direcção Regional de Educação do Norte): Fernando Charrua, professor de inglês (sinto-me tentado a um “comentário jocoso” envolvendo o termo “inglês” e uma alusão sub-reptícia à licenciatura do primeiro-ministro: o exemplo alheio cala-me as palavras), ex-deputado do PSD. Este, em conversa privada com um colega, terá feito um piada sobre o curso de Sócrates. Um outro funcionário, contudo, tendo ouvido a observação satírica, relatou a anedota à directora do serviço, Margarida Moreira. Esta tomou as medidas “adequadas”. No dia seguinte, chegado ao emprego, o professor tinha o computador bloqueado, o e-mail fora lido e ele estava suspenso.

Há um pormenor, em todo este caso, que me choca quase tanto quanto a suspensão em si de que foi vítima o professor, a saber, o facto de o e-mail de Charrua ter sido devassado. Isto é próprio de regimes totalitários. Quando se atinge estes extremos, é porque eles já não existem – tudo é válido. Declaro aqui, solenemente, que já não confio no Estado. O seu longo nariz (de pinóquio, de tanto mentir) intromete-se em todo o lado. Bem-vindos à “claustrofobia democrática” que Paulo Rangel denunciava no 25 de Abril.

Margarida Moreira justificou a suspensão por “poder haver perturbação do funcionamento do serviço”. Gostava, sinceramente, de perceber esta última afirmação, pois não consigo (e já puxei muito pela cabeça, ao ponto de a ter arrancado) entender como pode uma piada rápida perturbar a DREN. Ai, que maquilhagens da verdade inventam! E, clarifique-se, é aqui irrelevante para o caso se se tratou mesmo de um “comentário jocoso” ou de um insulto: se alguém, de resto, tinha de apresentar queixa, era o visado, o próprio primeiro-ministro.

Este, para “serenizar” os portugueses, veio dizer – cinco dias depois! – que ninguém será sancionado pelo exercício da liberdade de expressão. Comentava Constança Cunha e Sá no Público que um primeiro-ministro ter de vir dizer isto transparece muito do actual clima. A ministra da educação, que recusa ir ao Parlamento, e o seu ministério têm procurado fugir à polémica. Maria Lurdes Rodrigues confessa não ter “nenhum sinal ou motivo para duvidar do [...] correcto funcionamento [...] da DREN e dos seus serviços”. Porém, o ministério está também envolto no escândalo. A 26 de Abril, o secretário-geral da educação assinou o despacho de suspensão de Fernando Charrua. Ao contrário da ministra, eu tenho razões para duvidar não só do funcionamento da DREN, mas da 5 de Outubro.

O outro Sócrates, o verdadeiro, morreu por falta de liberdade de expressão; o regime do novo, asfixia-a: a sua popularidade continua, porém, em alta. Ficaremos calados a assistir? É nosso dever reflectir no que, democraticamente, está ao nosso alcance fazer. A Declaração da Independência dos EUA diz que as pessoas estão dispostas a aceitar os erros de um governo enquanto estes forem suportáveis, mas que, atingido um certo ponto, revoltam-se. Questiono-me se faltará muito, por este caminho, para aí chegarmos... ■ o corvo

13 May 2007

Rádio Macau



Confesso, sinceramente, que não tenho um tema para esta crónica. Sentei-me na cadeira, li os jornais da semana de lés a lés e só confirmei a velha sentença do Eclesiastes 1.9: “nada há, pois, novo debaixo do sol”. Algum leitor pode ficar espantado com a arrojada afirmação. Houve nada menos que três eleições (Madeira, França, Timor), outras foram prometidas (Lisboa) e uma criança desapareceu (Algarve). Porém, a vitória de Ramos-Horta era adivinhável, a de Sarkozy expectável e a de Jardim inevitável. Rói-me um medo por dentro sussurando-me maledicente as palavras d'O Leopardo de Lampedusa:é preciso que alguma coisa mude para que tudo fique na mesma”.

Carmona, filho mal-comportado, foi “expulso” do poder. Porém, no fundo, que novidade há numa câmara de Lisboa em crise e num autarca arguido – as duas coisas em risco de se tornarem um pleonasmo? Ainda recentemente, a PJ foi a Gondomar de Valentim Loureiro e Fátima Felgueiras foi acusada de eliminar elementos de acusação. E, claro, Jardim ganhou. Mas todos estes factos não significam nada, obviamente!

Por fim, o desaparecimento de Maddie tem ocupado gordamente os horários nobres dos telejornais: nem isto, contudo, é, infelizmente, novidade – Alice continua demasiado marcado no nosso espírito para que possamos esquecer isso. Porém, como o filme de Marco Martins desencantadamente revela, o interesse dos media é passageiro e superficial e, acima de tudo, desonesto, porquanto, mais do que com o drama pessoal, está procupado com as audiências baratas. A excessiva cobertura mediática do caso tem sido alvo de críticas, com muitos a sugerirem que tem sido empolado devido à origem estrangeira da vítima que tem levado a uma mobilização policial para, literalmente, inglês ver – e, mesmo assim, como o revelam os tablóides britânicos, o inglês não está contente.

A leste (e a oeste), nada de novo, portanto. Encontrei, na minha pesquisa, reconheço, meia dúzia de notícias engraçadas, insuficientes para fazer uma crónica. O primeiro prémio da bizarria é arrecadado definitivamente pelo Hamas que, durante um mês, terá mantido um programa infantil semanal de apologia à resistência armada, cujo apresentador se vestia como o Rato Mickey. Recomendo uma busca rápida no YouTube para ver excertos das aterradoras emissões. O problema dos fundamentalismos atingiu uma tal dimensão que, veja-se!, o Grande Oriente Lusitano organizou um encontro em Lisboa para debater a questão, isto numa altura em que o Serviço de Informações e Segurança confirmou que terroristas, inclusive da Al-Qaeda, têm usado Portugal como país de passagem, fraude e falsificação de documentos.

Por cá, o troféu da bizarria vai para a Segurança Social, que exigiu a uma mulher, dada como morta pelo sistema há sete anos, que provasse estar viva, por meio de certidão. O absurdo é, todavia, mitigado por um mea culpa já assumido. Ao mesmo gesto de retractação não se prestou o Tribunal da Relação de Coimbra, cujo acordão sobre o caso do sargento Luís Gomes é chocante, referindo-se ao militar como “actor-encenador privilegiado do teatro da vida da criança-vítima”, acusando-o de ter forjado um “mundo de encantamento”, uma “ficção de realidade familiar”, induzindo na menor “laços de amor”, “criando-lhe uma personalidade para o futuro, como se de animal de estimação se tratasse”: tudo pelo “interesse pessoal e egoísta de ter um filho”. Não se trata de emitir aqui qualquer juízo sobre o caso – o qual, de resto, nem tenho acompanhado muito de perto – mas sim de constatar o teor do texto.

Mas que a Justiça está mal também não é, enfim, novidade. O mundo está monótono. Abriu esta semana, em Lisboa, uma delegação de Dennis Hope, que clama ser dono da lua e vende terrenos no nosso satélite. Quiçá, por lá, a realidade será mais interessante. Por enquanto, preso à terra, vou ouvindo os velhos Rádio Macau , cantando, com eles, o célebre verso do refrão: “Já não há nada de novo, aqui, debaixo do sol”... o corvo

29 April 2007

Novos Oportunismos


Há, em Fight Club, essa icónica antologia satírica do mal de vivre finissecular, uma cena em que o protagonista, Tyler Durden, com uma pistola apontada à cabeça de um pequeno lojista, depois de este ter confessado que abandonara, por falta de empenho nos estudos, o seu curso de Biologia (a sua ambição era ser veterinário), ameaça o homem de morte caso, nos próximo dias, ele não reentrasse na Universidade e prosseguisse aquele seu emprego menor, em detrimento do seu sonho, que deixara por preguiça. Idílico, Tlyer termina: “Raymond K. Hessel, amanhã será o dia mais belo da tua vida. O teu pequeno-almoço vai saber melhor do que qualquer refeição que alguma vez tomaste”.

Evoco a cena à laia de prelúdio de uma breve reflexão sobre a mais recente campanha do Governo, Novas Oportunidades. Nela – como alguns, por certo, terão já observado, ainda que, tanto quanto me foi dado ver (mas eu também sou distraído), nenhum cartaz tenha sido afixado na nossa cidade – personagens célebres aparecem em profissões vulgarmente consideradas menores, tentando-se apresentar isso como consequência da não prossecução dos seus estudos. Assim, naquele que é talvez o cartaz mais divulgado, Judite de Sousa aparece numa banca de jornais com a legenda “Esta é a Judite Sousa que não acabou os estudos”.

Os anúncios rapidamente causaram celeuma. Manuel Alegre, indignado, chamou a atenção para a forma como ostensivamente se desvalorizavam certas profissões, representando os que as desempenham como perdedores. Se o objectivo da campanha – a luta contra o abandono escolar – é, certamente, louvável, o mesmo não se passa com o método escolhido. Como comentou José Diogo «Gato» Quintela, na sua crónica dominical no P2, esta campanha é a modos que «abrutalhada». No fundo, Tyler Durden no Fight Club e o Governo parecem padecer dos mesmos vícios de comunicação, mau grado as suas boas intenções. Não é isso que, porém, mais me choca, embora também partilhe das reticências expressas pelo deputado-poeta.

Aquilo que me irrita no cartaz é a associação simples entre estudos e sucesso. Primeiro, porque, como todos nós sabemos pelos mais variados exemplos do quotidiano, muitos são os que, sem acabar o curso, triunfam nas suas áreas e tantos outros os que, tendo o «canudo», estão longe da excelência dos primeiros. Segundo, porque aqueles que hoje cursam sabem não ter – quantas vezes! – lugar no mercado à sua espera. Magoa-me particularmente o anúncio com Pedro Abrunhosa, em que este aparece como mero arrumador de uma sala de espectáculos – é que, há cerca de um ano, a revista económica Dia D dedicou uma reportagem aos jovens licenciados que, para susbsistirem, aceitavam empregos fora da sua área e uma das entrevistadas, precisamente, ganhava a vida a indicar os lugares num qualquer teatro.

É esta mentira suprema que me revolta. A ordem natural das coisas parece mesmo funcionar ao contrário: se os que completam os estudos trabalham atrás de balcões e em cinemas, os que não os completam, ascendem, se necessário, até às cúpulas. Estas mentiras e incoerência do Governo, porém, são mais amplas. Veja-se: o partido que, por meio do Ministério da Justiça, num guia lançado depois do 25 de Abril, incentiva os funcionários a denunciaram casos de corrupção, é o mesmo que, poucos dias antes, recusou, na Assembleia, pela terceira vez, a criação do crime de enriquecimento ilícito. Isto tem, na terra em que eu cresci, o nome de hipocrisia. Como hipócrita é o discurso de austeridade do Governo: não porque, per se, seja errado, mas porque é inconsistente, como bem demonstrou o Tribunal de Contas, que voltou a criticar as nomeações excessivas do Executivo. São os “jobs for the boys”!

Novas oportunidades? Novos oportunismos! o corvo

24 April 2007

Nacionalismos

Madrugadores pontuais da cidade despertante notavam, frente à Câmara, o autocarro. Pormenor intrigante do invulgar cenário, algumas dezenas de jovens deambulavam em torno do transporte verde. Pouco depois das oito, embarcavam ordeiros e a camioneta arrancava. Assim começava para eles o Dia da Defesa Nacional. Para aqueles porventura mais estranhos ao assunto, diga-se que esta jornada veio substituir a antiga recruta e a sua obrigatoriedade estender-se-á para o ano às raparigas. Mancebo enfim maior de idade, acompanhei esta leva.

Não é minha pretensão proceder aqui a uma descrição exaustiva do dito cujo dia, sobre o qual, entre os jovens, correm as mais variadas anedotas reais. Infelizmente, a minha visita ao Aeródromo de Maceda (Ovar) não foi tão profícua em casos e ditos caricatos. Relembro, contudo, a explicação dada por uma militar para a proibição do consumo de bebidas alcoólicas na messe: «antecedentes negativos» – gosto de imaginar o que o eufemismo pode encobrir. A mesma precaução suponho que tenha presidido ao aviso do militar que, antes do hastear da bandeira, nos pediu que, solenemente, não nos ríssemos. O público, esse, só manifestou sincero interesse, no seu nacionalismo de mercenário, na sessão da tarde, dedicada às questões fundamente práticas, leia-se, aos agradáveis salários e confortáveis vantagens de uma carreira de armas. De resto, desinteressadamente suportámos o Dia nublado.

Pouco tempo volvido sobre esta experiência, na longe Lisboa, como que em resposta a esse nacionalismo tépido, o PNR col(oc)ou um cartaz no Marquês, destinado à polémica. Lembro-me de, no Secundário, agarrar um pequeno papel que afincadamente dois jovens distribuíam à saída. Só depois de atravessar a passadeira olhei para o impresso, com uma reprodução da estátua de D. Afonso Henriques e palavras de ordem semelhantes às do cartaz do PNR. Voltei-me veloz para trás, porém não vi já o que desejava descobrir. Atrás de mim, tinha vinha uma rapariga de cor: quanto não gostava de saber se também lhe distribuíram o flyer!

Se narro este pequeno episódio, é apenas para reforçar a ideia de que, longe de ser um fenómeno novo, este nacionalismo anacrónico e desproporcionado tem-se vindo a instalar entre nós lentamente e – aqui reside o busílis do problema – entre grupos jovens. Disso é sintomática a criação, em 2005, da Juventude Nacionalista (JN). O mal, porém, é geral. Há coisa de dois meses, por exemplo, recebi um mail alertando para supostos raptos de crianças por chineses nas suas lojas. Isto é tão xenófobo como o outdoor de José Pinto Coelho e dos seus. Porém, muitos persistem em repassar estas mensagens mentirosas.

Animado pela recente vitória de Salazar n' Os Grandes Portugueses e com a polémica em torno do Museu em Santa Comba Dão, o nacionalismo radical vai ganhando espaço público. Mesmo na Covilhã, onde fui passar a Páscoa, encontrei num mural alusivo ao 25 de Abril a seguinte inscrição, que vim mais tarde a saber, por meio de uma reportagem do Público, ser da autoria da JN: “hipocrisia censurar opiniões”. A frase podia estar gravada no segundo cartaz do PNR na rotunda do Marquês, que recorre a igual defesa. Sinceramente, concordo que mesmo partidos com opiniões desta natureza não devem ser proibidos de expressar os seus pontos de vista, pelo que o vandalismo de que foi alvo o primeiro cartaz me parece não só incorrecto mas também uma resposta medíocre quando comparada com a intervenção do Gato Fedorento. Contudo, o caso não é cómico, antes se reveste de andrajos trágicos, transversal a países cujo futuro inquieta: na Rússia, enquanto Kasparov era preso, uma manifestação de extrema-direita decorria sem entraves. No xadrez estranho do mundo, quem adivinhará a próxima jogada?

o corvo

04 April 2007

Quando Marilyn Encontrou Albert


Estava entre amigos, a almoçar, quando, à cabeça da mesa, alguém, espontaneamente, perguntou, entre duas garfadas descontraídas: “ viram o novo programa da TVI?”. Num só coro, as cabeças ergueram-se, como suricates, e rapidamente se instalou uma vilipendiosa troca de comentários. Ingénuo, a medo, interrompi: “Mas que programa é esse?”. Animados pelo fogo e fôlego da discussão, explicaram-me em palavras simples e curtas a essência da coisa: oito mulheres, regurgitações do estereótipo louro herdado das actrizes americanas, fechadas numa casa com oito nerds desleixados, ambas as partes tentando aprender da outra, respectivamente, a inteligência e a beleza – era esta a premissa de A Bela e o Mestre.

A descrição lembrou-me o famoso mito urbano do encontro entre Marilyn Monroe e Albert Einstein. Diz a estória que, tendo-se ambos cruzado numa festa, a diva se terá voltado para o cientista e sugeriu: “Devíamos ter um filho! Imagine se ele tivesse a minha aperência e o seu cérebro!”, ao que o físico replicou: “Imagine se tinha a minha aparência e o seu cérebro”.

Abanei a cabeça, enquanto as minhas amigas continuavam a criticar o machismo inerente à estrutura do programa. Alguns rejeitam esta crítica, afirmando que o novo reality show é igualmente preconceituoso no que toca aos homens. Porém, isso não é mais que uma falácia politicamente correcta pois se a mulher é correntemente, na sociedade materialista, pensada enquanto objecto sexual – e assim aparece retratada em A Bela e o Mestre; o homem, pelo contrário, não é concebido, no imaginário colectivo, como propriamente culto, antes, numa cultura de valorização do exterior, aparece, moldado por Hollywood, fisicamente trabalhado. Assim, o programa acaba por acentuar um estereótipo machista em relação à mulher, mas o inverso não sucede no que diz respeito ao homem.

Porém, ainda mais do que o sexismo de base do programa, inquieta-me a vitalidade do incessante e, aparentemente, infindável filão dos reality shows. Numa altura em que vividamente se discutiu, por ocasião dos cinquenta anos do primeiro canal, o serviço público, chegando mesmo algumas vozes a sugerir a sua extinção, julgo que, se há, na sua grelha, programas de qualidade duvidosa certamente dispensáveis, parte do mérito da estação reside também nos programas que dispensa, precisamente os reality shows. Este fenómeno da “tv real” confirma uma tendência que outros indícios há muito verificaram: mais e mais, desvaloriza-se a privacidade da pessoa, elemento constituitivo da sua dignidade e liberdade. É sintomático – mais, é macabro – que o protótipo de todos estes programas, o Big Brother, tenha ido buscar o seu nome ao universo totalitário orwelliano. Não é difícil, portanto, estabelecer uma ligação, por muito distantes que inicialmente pareçam um do outro, entre este fenómeno e a ressureição popular da figura de Salazar, tornada visível pelo concurso d' Os Grandes Portugueses.

Um exercício interessante, que revela bem a decadência deste género de programas, consiste em seguir o destino de cada um dos participantes depois de abandonar a mansão omnividente. Na semana passada, uma pequena notícia nos jornais sérios e um título de capa nos sensacionalistas davam conta de que “Big Mário”, participante do primeiro Big Brother, fora condenado a sete anos de prisão por roubo qualificado e agravado. Foi a pessoas como estas que metade de Portugal assistiu durante três meses! Mas, também, se é o mesmo Portugal que elege Fátima Felgueiras... ou Valentim Loureiro, o do julgamento televisivo, mais uma expressão deste conceito da “tv real”, da qual os reality shows são apenas a materialização mais bárbara. A mim, confesso, basta-me o reality show da lenta decadência nacional, transmitida em directo de qualquer telejornal, de todas as estações.

11 March 2007

Para O Futuro, Siga Em Frente


Numa cena do aguardado filme Southland Tales, de Richard Kelly, uma personagem, em posição de professora, comenta: “Os cientistas estão a dizer que o futuro vai ser bem mais futurista do que inicialmente previram.”. A observação rebolou-me na cabeça quando, na semana passada, encontrei no Público uma pequena notícia de uma grande curiosidade. A Coreia do Sul – onde se calcula que, entre 2015 e 2020, todos os lares terão um robô - reuniu um conjunto de peritos para conceberem um “código de ética” para estas máquinas. A iniciativa não é inédita: a Rede Europeia de Investigação Sobre Robótica divulgara no ano passado um relatório onde reflectia, por exemplo, sobre a justeza ética da criação de robôs destinados ao prazer sexual dos humanos, lembrando as máquinas do A.I., de Steven Spielberg.
A iniciativa da Coreia do Sul afectará, em primeira análise, as relações entre robôs e seres humanos: poderá, por exemplo, um homem casar com um andróide? Contudo, parece-me interessante reflectir também sobre a consequência de uma tal legislação para os robôs. A máquina é uma criação teleológica, destinada à execução de uma dada função. Não deverá suceder, porém, que, com os avanços da ciência, a máquina se mostre capaz de entender – e não somente obedecer – a sua finalidade e natureza compulsiva desta. O robô dotado dessa consciência estaria, nitidamente, numa condição de servidão inumana, privado da sua liberdade. Deste modo, qualquer corpus ético que se desenvolva não poderá ser do conhecimento do robô. Naturalmente, daqui resulta um intrincado conflito entre uma visão pragmática da robótica e o lado prometeico e genesíaco desta: a primeira concebendo as máquinas como servos felizes, cujo trabalho nos permitiria a nós, seus senhores, reganhar o otium horaciano; a segunda correndo atrás de um novo ser, par do homem, inteligente e crítico. Para que este último existisse, não poderia estar limitado pelo “código de ética”, mas, não preso por este, a sua vontade de servir os humanos seria decerto reduzida, almejando antes uma vida independente.
Procurando explorar estes imbróglios éticos do progresso científico, mas no campo da biogenética, um estudante canadiano concebeu um pequeno animal doméstico, sem pêlo, diferente das demais espécies conhecidas, cuja expectativa de vida é entre um a dois anos, e que pode ser adquirido em lojas seleccionadas, onde se encontra em caixas de plástico, em hibernação, à espera de ser despertado pelo dono. Pormenor importante: é tudo uma farsa. Adam Brandejs procurou com este seu projecto escolar interrogar as pessoas sobre as fronteiras morais da ciência e estudar o consumismo moderno. A sua conclusão, face aos relatos de crianças que pediam aos pais que comprassem o “bicho”, é, acertadamente, que “para toda uma geração, a vida e a ideia de vida estão a tornar-se bens descartáveis”: infelizmente, também nós aqui em Portugal compreendemos isso recentemente. É este o Maio de 68 da ciência, em que se grita pelos laboratórios: “é proibido proibir!” ?
Por vezes, perante tudo, dava vontade de construir o mundo de novo. Mas até essa última utopia parece ter ruído como uma senhora idosa que cai das escadas abaixo. Notícias recentes do Second Life [à letra, Segunda Vida], jogo cibernético onde o utilizador leva uma vida paralela à sua escolha, mostram que, onde existiam todas as condições e a reunião de vontades necessárias para, a priori, gerar uma outra sociedade melhor, esse ideal ficou pelo caminho: entre os utilizadores já circulam drogas, a corrupção já alastrou, as grandes companhias já asfixiam o mercado. Um grupo de utilizadores mais antigos criou mesmo uma Frente de Libertação que, triste ironia!, leva a cabo acções violentas de protesto, em nome do sonho perdido da terra nova e boa. O futuro pode ser, de facto, bem mais futurista do que previsto inicialmente; todavia, em última análise, assemelhar-se-á sempre, e demasiado, ao triste presente. ■ o corvo

28 February 2007

O Estudo da Nação

Um povo mal-acordado tem duas maneiras de se olhar ao espelho de manhã: pelas mãos dos artistas e filósofos, nas metáforas múltiplas da criatividade e do pensamento; ou pelos lábios dos sociólogos e matemáticos, nas estatísticas estatalmente encomendadas. O pequeno mês de Fevereiro enlatou em si, como num metropolitano japonês, ampla quantidade de estudos, revelados na última quinzena: os portugueses, como uma mulher, mediram-se no reflexo de uma montra – e descobriram a sua tristeza.

O mote foi lançado pelo último relatório da UNICEF, que registava que uma em cada cinco crianças em Portugal estava descontente com a sua vida. Só a Noruega, por meio ponto percentual – mania dos países nórdicos de liderarem todas as tabelas e todas as estatísticas!, superava a nossa taciturnidade (derivará esta tristeza comum do bacalhau?). Porém, em compensação, regista-se em Portugal o mais baixo nível, dentro do espaço da OCDE, de «bem-estar educativo», parâmetro que afere, de um modo geral, a qualidade do ensino: possuímos uma das mais elevadas taxas de abandono escolar e os resultados dos alunos portugueses nos vários testes de literacia – a nível de conhecimento científico, somos mesmos os mais fracos – justificam plenamente a nossa humilhante posição. É significativo que Portugal seja o país onde mais jovens (13%) confessam não existirem sequer dez livros em sua casa. Não obstante tudo, ou talvez por isso mesmo, os alunos portugueses são dos que dizem gostar mais da escola (31%) – possivelmente, porque nada (ou muito pouco) se faz lá. É um exercício de humor negro ler os cartas de leitor, assinadas por professores, que chegam aos jornais, relatando peripécias de aulas de substituição ou problemas com o prolongamento dos horários no primeiro ciclo. O problema só secundariamente reside em alunos ou professores, antes se centra nos poderes que lhes são superiores: respectivamente, os pais e o Ministério da Educação, prodígios de incompetência.

Tal como as crianças, também os pais deste país rasgam as vestes e batem no peito, em espectáculo tragicómico de tristeza. Um relatório de meados do mês, por exemplo, dava conta da estagnação das vendas de antidepressivos. Porém, os médicos entrevistados manifestavam o espanto, pois os casos de depressão, a seu ver, haviam aumentado – andamos todos deprimidos.

O jornalista, coitado!, avançava então com a tese da redução do poder de compra para justificar o paradoxo. E, efectivamente, Portugal, revelou dia vinte a UE, está entre os mais pobres dos seus vinte e sete estados-membros. Mais grave é o facto de o emprego não constituir necessariamente uma salvaguarda contra a pobreza: assim, 14% dos portugueses empregados vivem, mau grado o seu salário (esses salários baixos, lembram-se?, que devem atrair os chineses), abaixo do limiar da pobreza – a taxa é o dobro da média europeia; Portugal regista o pior resultado. O elevado risco de pobreza, afirma a Comissão Europeia, justifica-se pelo aumento do desemprego e o baixo nível de escolaridade dos jovens: assim fica comprovado como os dois lados da balança se interrelacionam e, por isso, o Ministério da Educação é quase tão vital para a recuperação económica do país como o da Economia.

Esta precária conjuntura contribui decerto para que Portugal apareça como o país onde se registe menor bem-estar psicológico, num estudo anglo-americano que investigou os níveis de felicidade de quinze nações europeias para os relacionar, surpreendentemente, com os problemas de hipertensão. Consequentemente, Portugal é não só, dos quinze, o mais infeliz: é também o mais hipertenso. E, desengano!, nem no campo se achará a paz que na cidade se perdeu: outra investigação da UE publicada este mês revelou que, em média, a qualidade de vida no campo é inferior à da cidade, sendo tanto pior quanto mais pobre o país. Coerentemente, Portugal aparece nos últimos da lista: eis o estado e o estudo da nação. o corvo