04 April 2007

Quando Marilyn Encontrou Albert


Estava entre amigos, a almoçar, quando, à cabeça da mesa, alguém, espontaneamente, perguntou, entre duas garfadas descontraídas: “ viram o novo programa da TVI?”. Num só coro, as cabeças ergueram-se, como suricates, e rapidamente se instalou uma vilipendiosa troca de comentários. Ingénuo, a medo, interrompi: “Mas que programa é esse?”. Animados pelo fogo e fôlego da discussão, explicaram-me em palavras simples e curtas a essência da coisa: oito mulheres, regurgitações do estereótipo louro herdado das actrizes americanas, fechadas numa casa com oito nerds desleixados, ambas as partes tentando aprender da outra, respectivamente, a inteligência e a beleza – era esta a premissa de A Bela e o Mestre.

A descrição lembrou-me o famoso mito urbano do encontro entre Marilyn Monroe e Albert Einstein. Diz a estória que, tendo-se ambos cruzado numa festa, a diva se terá voltado para o cientista e sugeriu: “Devíamos ter um filho! Imagine se ele tivesse a minha aperência e o seu cérebro!”, ao que o físico replicou: “Imagine se tinha a minha aparência e o seu cérebro”.

Abanei a cabeça, enquanto as minhas amigas continuavam a criticar o machismo inerente à estrutura do programa. Alguns rejeitam esta crítica, afirmando que o novo reality show é igualmente preconceituoso no que toca aos homens. Porém, isso não é mais que uma falácia politicamente correcta pois se a mulher é correntemente, na sociedade materialista, pensada enquanto objecto sexual – e assim aparece retratada em A Bela e o Mestre; o homem, pelo contrário, não é concebido, no imaginário colectivo, como propriamente culto, antes, numa cultura de valorização do exterior, aparece, moldado por Hollywood, fisicamente trabalhado. Assim, o programa acaba por acentuar um estereótipo machista em relação à mulher, mas o inverso não sucede no que diz respeito ao homem.

Porém, ainda mais do que o sexismo de base do programa, inquieta-me a vitalidade do incessante e, aparentemente, infindável filão dos reality shows. Numa altura em que vividamente se discutiu, por ocasião dos cinquenta anos do primeiro canal, o serviço público, chegando mesmo algumas vozes a sugerir a sua extinção, julgo que, se há, na sua grelha, programas de qualidade duvidosa certamente dispensáveis, parte do mérito da estação reside também nos programas que dispensa, precisamente os reality shows. Este fenómeno da “tv real” confirma uma tendência que outros indícios há muito verificaram: mais e mais, desvaloriza-se a privacidade da pessoa, elemento constituitivo da sua dignidade e liberdade. É sintomático – mais, é macabro – que o protótipo de todos estes programas, o Big Brother, tenha ido buscar o seu nome ao universo totalitário orwelliano. Não é difícil, portanto, estabelecer uma ligação, por muito distantes que inicialmente pareçam um do outro, entre este fenómeno e a ressureição popular da figura de Salazar, tornada visível pelo concurso d' Os Grandes Portugueses.

Um exercício interessante, que revela bem a decadência deste género de programas, consiste em seguir o destino de cada um dos participantes depois de abandonar a mansão omnividente. Na semana passada, uma pequena notícia nos jornais sérios e um título de capa nos sensacionalistas davam conta de que “Big Mário”, participante do primeiro Big Brother, fora condenado a sete anos de prisão por roubo qualificado e agravado. Foi a pessoas como estas que metade de Portugal assistiu durante três meses! Mas, também, se é o mesmo Portugal que elege Fátima Felgueiras... ou Valentim Loureiro, o do julgamento televisivo, mais uma expressão deste conceito da “tv real”, da qual os reality shows são apenas a materialização mais bárbara. A mim, confesso, basta-me o reality show da lenta decadência nacional, transmitida em directo de qualquer telejornal, de todas as estações.

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