16 September 2007

Realportugal


Ofegante, pedi autorização para passar à frente na fila, comprei o bilhete, corri para a plataforma e saltei para a última carruagem. Sentei-me e descansei da minha maratona. Subitamente, ainda nem tínhamos chegado à Estação Velha, o comboio parou na linha. Cinco minutos depois, persistia na sua birra de não andar. Cansado de mais para ligar o mp3, resolvi ouvir a conversa que, duas filas à frente, se desenrolava entre algumas passageiros de idade.

«Trabalhamos para ganhar uma miséria», desabafava uma senhora junto à janela (chamemos-lhe G.). A frase deu o mote: começou a rabujar-se contra as regalias dos políticos. Do seu lugar solitário, um viajante (digamos, B.) contribuiu: «Todos querem ir para o poleiro. Ao fim de quatro anos têm reformas». A outra resmungou que por isso é que já não punha os pés nas eleições. A mais nova do grupo (tratemo-la por H.), algures nos seus cinquenta, afirmou que insistia em ir às urnas, mas votava em branco. B. avisou-a contra isso: tinha já estado em mesas de voto e sabia como os votos em branco eram por vezes adulterados, aconselhando-a por isso a votar sempre nulo, com uma cruz de alto a baixo. H. agradeceu o alerta.

G. retomou a conversa para lançar nova invectiva contra os privilégios da classe política. Tinha sido revelado no talkshow da Fátima Lopes que mesmo o ex-presidente ainda tinha guarda-costas. H. mostrou-se particularmente indignada: asseverava que n’ As Tardes da Júlia tinha estado uma mãe a quem, por causa de negócios da droga, haviam morto o filho e cuja cabeça estava a prémio. «Mas essa, que precisava, não tinha protecção policial: teve de ser a Júlia a garantir que a protegiam à saída do estúdio». O filantropismo televisivo, de facto, continua sempre capaz de me surpreender. «Estes são grandes programas para se descobrir certas coisas», rematou a mulher, convicta da sua palestra.

Inevitavelmente, chegou-se ao caso Maddie. «Agora já ninguém os apanha», declarou H. firmemente. «Quem vai mantendo este caso são os governantes, porque assim ninguém fala do governo», explicou B., entre gestos fortes. Alguém acrescentou que os McCann mantinham amizades com altas chefias do Estado. G. passou então à acusação: «Aquela mãe... Ela tem má cara: não engana ninguém». H., que parecia sempre actualizada, completou: «Diz-se que na Inglaterra fizeram um perfil dela e que tem os traços todos de quem matou a menina». G. prosseguiu a leitura da sentença: «Nem uma lagrimazinha deitada! Ao menos a mãe da Joana ainda foi lá chorar para as televisões». Foi então que B. lançou a sua bomba: «Nós em Portugal ainda estamos muito atrasados sobre esta caso. O meu genro, que é da Alemanha, diz que lá já veio nos jornais a dizer que eles pertencem a uma seita de orgias em que matam crianças para as luxúrias deles». A conversa prosseguiu, e por fim regressaram a outros temas nacionais. Em jeito de sumário, H. suspirou: «É o país que temos: temos de nos contentar».

Dentro de mim, recalcava-se uma vontade de rir. Assistira a um exercício totalmente gratuito de especulação barata, cujas teses não resistiriam à mais superficial leitura de um jornal dito sério. Ao mesmo tempo, porém, abatia-se sobre mim uma tristeza: era isto o país. Há a chamada realpolitik: bem-vindos ao realportugal. Ali estava a falta de esperança no futuro, a descrença total na classe política, a manipulação fácil pela televisão, a especulação tonta e, finalmente, dramática, a resignação. Isto, mais que tudo, preocupou-me. É que, como dizia José Manuel Fernandes no editorial do Público há uma semana: “Nenhum país, nem nenhum povo, nem nenhum indivíduo, conformados com os seus destinos, podem mudá-los”.

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