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No outro dia o capitalismo esteve aí a estrebuchar. Não fiquei com pena nenhuma do capitalismo (para que quereria eu uma pena feia, a estragar a minha plumagem?). Subitamente, começou-se a falar na necessidade de “
moralidade” (assim mesmo: foi esta a palavra usada) no mercado. Depois do “
socialismo de rosto humano”, o “
capitalismo de rosto humano”, ironizava com humor e verdade um
blogger (não recordo quem: li tantos – que me perdoe!). Quanta inocência cabe entre uma gravata e um colarinho!
O capitalismo é, em si mesmo, um sistema absolutamente imoral. Que, regra geral, os partidos de raízes mais ou menos cristãs sejam advogados da liberdade dos mercados – a Juventude Popular, não esqueçamos, propôs, no ano passado, a abolição do salário mínimo, com o argumento de que este era um entrave a essa mesma liberdade do mercado – é um daqueles mistérios políticos absolutos e patetas, tão inexplicáveis como, para a ciência, o facto de o pato ser o único animal que não produz eco. O sistema capitalista, na forma em que o conhecemos desde a II Guerra Mundial, baseia-se essencialmente numa lógica de consumo assente na associação falaciosa entre ter e ser. A primeira geração pós-guerra, cobaias da nova experiência capitalista, acertadamente entenderam a sua mentira: chamou-se a isso
anos 60 e
hippies. Mas quando crescemos perdemos os sonhos como os velhos perdem os cabelos – e os revolucionários viraram os mercenários do sistema.
O capitalismo nasce do conceito da posse que é, por natureza, individualista (o verbo
possuir só tem as três primeiras pessoas do singular: no plural substitui-se por
partilhar). O capitalismo é esse sistema em que a palavra
bem só existe no plural, material. Empilhamo-nos de coisas com que nos prometeram a felicidade. O objecto das nossas acções, imperceptivelmente, passou da
pessoa para a
coisa, para a
pessoa acabar em
coisa (essa é, ainda, a mais válida definição de capitalismo). Uma doutrina centrada no
ter tem de arruinar o
ser. Falamos de um sistema que assenta na ganância de multiplicar permanentemente (tal como se procriam mil pipocas de uma mão cheia de grãos de milho) o capital, por imenso que seja. Porque é uma sociedade do
ter, é também uma sociedade do entre-
ter: desse modo apenas se pode esconder o tédio, o absolutíssimo tédio que brota de uma vida mentirosa. Sendo uma doutrina de vencedores, o capitalismo pressupõe automaticamente
vencidos: os marginais, os pobres (um quinto da população portuguesa, creio).
A intuição do erro fundamental que é este sistema primata tem naturalmente suscitado reacções. Ridículo seria agitar de novo bandeiras vermelhas (do sangue) e foices (das vidas ceifadas). Algumas alternativas foram sendo desenvolvidas. O “
comércio justo” (popularíssimo aqui na Inglaterra, onde a omnipresença divina compete com a ubiquidade do café
fairtrade) será talvez um dos casos mais bem sucedidos, mas também digno de nota é o projecto da
economia de comunhão, lançado por Chiara Lubich, fundadora do Movimento dos Focolares, que defende uma repartição dos lucros tripartida, em que uma parte substancial destes é directamente aplicada em favor dos mais pobres (a ideia surgiu numa visita às favelas paulistas). Uma revolução mais profunda, mais íntima, é ainda necessária, contudo: a ganância dos especuladores tem a sua contraparte no consumismo do homem normal. Diz-se que Sócrates, um dia, percorrendo o mercado de Atenas, vendo as bancas, comentava com os discípulos: “
Tanta coisa que eu não preciso!”. Os nossos centros comerciais multiplicam-se como cogumelos (e são todos venenosos, estes). Quando conseguiremos
de-ter esta obsessão de
ter?