26 February 2005

Ilações das Eleições

1. O gozo do espectáculo há muito se perdera: a vitória rosa era já antes da noite claramente afirmada, firmada em sondagens (aquelas que Santana contava processar) e no comum senso (para muitos sonso). Insosso deve pois ter sido o êxtase socialista, desprovido do gosto do inopinado. A dúvida inquietante era ainda a maioria absoluta, mas até o sabor de tal surpresa roubou Sócrates aos seus, de tão certo estar nela. Talvez por tudo isto, o desfile que é costume no triunfo não se viu cantado por caravanas de carros correndo a cidade. Lamento o gordo sucesso: é o cessar dum debate que era tão preciso e que o absolutismo dispensa.

2. O descalabro laranja é ímpar e imparável se acentuou à medida que o sufrágio se terminava. Santana é o fenómeno axial que percorre, unindo e dando coesão, todo este naufrágio. A seta laranja surge-me aos olhos desfasada da realidade, quando a comparo com a linha dos resultados. Mas tal queda era uma aposta previsível, até pecou por não ter sido mais. Santana retratou-se, retractando-se do fracasso, a ele mesmo, num discurso de muitos gumes e facas. O bebé morreu estrangulado nos tubos da própria incubadora. Fez-se de mártir para o bem do partido, partindo dele. Terá setenta virgens à espera no céu.

3. Os comunistas e o seu partido satélite (ou direi mais parasita?) ecológico recuperaram o seu terceiro posto, acompanhando a suprema subida da esquerda. Também no nosso concelho conseguiu inverter os resultados tendencialmente descendentes, ganhando pouco menos que uma centena de votos. Eis mais um caso em que a mudança de líder recompôs a marcha: a rouquidão de Jerónimo ainda teve força para cantar vitória.

4. Os democrata-cristãos sofreram uma ligeira derrota quando olhando para o passado, mas uma forte desilusão se considerarmos o futuro a que se candidatavam. Portas abriu a porta para um substituto, no melhor discurso da noite: viu-se um político sem hipocrisia, ave rara nesta selva que é a política nacional. Era tal a translucidez do seus discurso sem rodeios e malabarismos demagógicos ou vitimizantes que o fez, se não um vencedor, por certo não um vencido. Como Santana, a saída de Portas abre um futuro mais promissor do seu partido. O seu sempre sorriso não abafava o quase-ódio que lhe era movido por uma camada da população a um nível irracional, mas que latejava forte. Um novo líder não terá tal estigma absurdo, mas real.

5. O Bloco fracassou, como os populares, os seus objectivos declarados, mas isso quase se torna irrelevante quando olhamos para a sua astronómica subida (bastante previsível e aqui pecou-se por defeito). Tal passo de gigante já amputou o Bloco, contudo, de duas daquelas que eram, a meu ver, das características mais apelativas dele: a inexistência da imagem dum líder e a rotatividade dos lugares no Parlamento, cujo fim Louçã já anunciou. O risco do Bloco é tornar-se um partido institucionalizado, como todos os outros. A adesão que recebe nas camadas mais jovens apresenta-se-me como consequência de ser um partido muito recente, cuja ascensão pode ser seguida por uma nova geração, a primeira posterior à Revolução dos Cravos, tendo em conta que já passaram 30 anos.

6. Um dos maiores ganhadores da noite não foi falado. Não convém muito, especialmente num país onde cientistas políticos o intitulam de ‘antidemocrático’. Falo do voto defendido por um nobelizado português no seu mais recente livro e pelo Movimento Um Rumo Para Portugal (www.umrumoparaportugal.com): o voto em branco sofreu um incremento fenomenal. Calculo que esse politólogo, em consonância com o dito na entrevista que concedeu à revista ‘Pública’, esteja agora a “olhar com atenção” essa “subida interessante”. O voto em branco quase duplicou quando comparado com 2002, atingindo os 1,81% e saldando-se em mais de 103 mil votos. Em Lisboa foi a sexta força política e valeria um deputado. Na nossa terra sofreu um aumento de aproximadamente 175% face às legislativas anteriores, atingindo os 250 votos, mais que todos os partidos menores somados, que se ficaram pelos 148 votos. O voto em branco provou ser uma opção digna de crédito e promete grandes surpresas para o futuro. o corvo

Crónica Inédita


O Quinto Império do Cinema Português

Alguns dir-me-ão ignorante e um filho da massa. Mas a minha opinião é descendência somente de mim próprio. O que aqui venho anunciar é a decadência do cinema português. O cinema português está morto. E o pior é que na sua urna cerrada vê a casca de noz que era o universo onde Hamlet era rei! E assim cego vai...

Há poucas semanas estreou nas salas portuguesas o mais recente filme de Manoel de Oliveira: ‘O Quinto Império – Ontem como Hoje’. E, de facto, eu anseio pelo Quinto Império do cinema nacional, essa utopia tão bela!, porque ontem, como hoje, a sétima arte lusa morre, morre lenta, e não virá mais numa manhã de nevoeiro, que as bilheteiras só abrem à tarde. A fita mais vista no ano passado (‘Shrek II’) teve o quádruplo dos espectadores de todas as películas lusitanas juntas. E, curioso!, anexo ao artigo onde o soube, expressava-se o espanto de incompreensão desta situação, não percebendo ninguém ao certo o sucedido.

Ai, é este argueiro na vista que nos tolda! E com uma trave assim cravada no olho, dificilmente a câmara sonha com beleza na sua imagem, que nunca se viu míopes fazendo fitas, só neste país onde tudo ocorre e decadente o cinema morre. O cinema português está invadido por um complexo de inferioridade, por uma arreigada convicção da existência duma sétima arte própria e lusitana, mas a tal ponto o filmado é típico português que as salas se enchem na sua contemplação. Ah, ironia, quão doce és! E ah, cegueira, quão oportuna!

E falam que é arte o que o ecrã grande revela a meia dúzia de loucos que se aventuram no deserto de Alcácer-Quibir da cinematografia lusa, e afirmam que é genialidade. Não, não é arte nem génio, é mau jeito. Há quem, como a revista francesa Cahiers du Cinéma, exalte João César Monteiro (o homem por detrás da absolutamente negra ‘Branca de Neve’) e Manoel de Oliveira. Mas hei de dar crédito a uma revista elitista, desfasada, que manifesta uma falta absoluta de respeito pelo leitor/espectador? Insultando o público só resta mesmo elogiar o realizador; se não, quem compraria tal publicação?

Não, não é arte nem génio, é mau jeito e é mau gosto. Os filmes portugueses pecam em cada cena que a bobina descobre e ao espectador expõe. Primeiro, em Portugal não há uma classe de actores, mas há muitos actores sem classe. É frustrante saltar de película em película e achar sempre os mesmos actores, eternamente, como se cá dispuséssemos somente desses poucos que se repetem em cada monótono filme português. Segundo, as partes técnicas da fita são descuradas duma forma repugnante. Raras, raríssimas!, são as bandas sonoras; o tratamento de som é nulo; o de imagem, menor; e os argumentos, frequentemente, são inócuos e enfastiadiços.

O cinema português é claustrofóbico. Porém, eficaz é o seu acérrimo esforço para exorcizar os espectadores. A cinematografia portuguesa carece terrivelmente dum sentido de marketing. Eu não posso honrar um morto cuja existência (falarei melhor se escrever não-existência?) desconheço. O nosso cinema é um fantasma que, infelizmente, não assombra nada, muito menos o escuro das salas de cinema– essas são para ele casas abandonadas. «Existir é ser percebido.», dizia Berkeley, e o cinema português não existe porque não é percebido, notado.

Mais grave, porém, é quando isso tenta. Os produtores portugueses não têm noções cinematográficas. E, assim, se parte numa loucura sebástica para a feitura dum trailer. Para o homem de cinema português, um trailer é uma cena tediosa do filme passada a eito. Para além do mais, os filmes circulam nos círculos restritos de Porto e Lisboa, mas como podemos ansiar que eles mais se espalhem pelo país se não são vistos? Este é o nosso ciclo vicioso...

Anseio pelo dia em que alguém tiver a coragem de fazer um filme dito americano (esse conceito vago que define para o invejoso cinema nosso tudo o que tem sucesso) em Portugal. Dito curto, um Filme (escrito com letra capital). Nesse dia os corvos– minha raça!– poderão rejubilar-se com os cadáveres de fitas passadas enfim enterradas (que elas agora ainda se contorcem em convalescença funérea). Nesse dia, terá nascido o Cinema Português: é a aurora do Quinto Império, e o Ontem não será como Hoje. o corvo

Publicado a 16 de Fevereiro de 2005

Hipocentro: alma

E o maremoto tudo levou (e lavou). Ficaram paisagens macabras de destruição para os olhos chocarem a alma. Afirmou o fotógrafo Cartier-Bresson que num retrato procurava o silêncio dalguém. Talvez seja por isso que não conseguimos ouvir os gritos de pranto e revolta nas fotos que chegam às redacções dos jornais. Contudo, causou espanto, facto irmão do 9/11: tal como a pequena igreja junto às torres desabadas que sobreviveu intacta, assim se conservaram muitos dos Budas da Tailândia. As imagens de Deus resistiram e questionam-nos: onde estava Ele naquele dia? A inevitável pergunta da teodiceia que nos assalta...

Se a pergunta se nos ergue, é pela nossa concepção judaico-cristã de Deus, que Lhe chama criador, bondoso, omnipresente, omnisciente e omnipotente. Ora como se explica que um Deus assim tenha composto um mundo tão tosco, que se agita em convalescenças várias, carrascas de tantos? Parece-me a questão tão pertinaz, que sou tenaz em querer aqui indagar o crer. É que o hipocentro de toda este drama é, no fundo, nossa alma.

Tarefa árdua e labuta complicada. Se Deus criou o mundo e suas leis, que a ciência tão bem revela, devia ter feito nossa casa sem mácula e bela. Mas a orbe flutuante que é o mundo, sabemo-lo bem, é longe da perfeição e sempre dela aquém, imperfeita como a humana natureza. Ora então Deus ou não a criou ou ela sozinha degenerou. Se, porém, ela decaiu pergunta-se se o Criador já não saberia que isso ia acontecer. Se não sabia, não é omnisciente, e logo se vê privado do sábio adjectivo. Mas se sabia, então não é bondoso, pois criou um mundo que iria tornar-se mau e causar sofrimento aos seus filhos, os humanos.

Se Deus não fosse criador (podendo assim continuar a ser bondoso e omnisciente), ou a matéria se teria desenvolvido por si, ou seria obra duma força maligna. Então atormenta a alma a interrogação inquieta sobre porque Deus não o corrigiu. E de novo duas vias nos são dadas: ou Deus não é omnipotente (e como tal não o podia emendar) ou não é bondoso, e não está pois interessado em o remendar. Pela primeira escolha, em vez dum senhor omnipotente, teríamos um peripotente, isto é, com muito (peri, em grego, muito) poder, mas não um infinito e desmesurado, como a dor que abala a terra hoje. Seguindo a segunda, voltaríamos à terrível ideia de Descartes dum génio demoníaco acima de nós.

A minha mente inclina-se a arriscar mais uma tentativa de reabilitar o Deus criador. Ele poderia ainda criar o nosso planeta, não fora Ele omnipotente. Se ele não fosse omnipotente, estavam esclarecidas as falhas da orgânica geóloga da nossa casa, pois significaria que Deus não poderia ter feito melhor na sua peripotência. Mas para que continuasse a ser um ser bondoso, teria também de não ser omnisciente, pois se soubesse a priori que a sua criação era defeituosa e traria, em virtude disso, grande sofrimento ao humano género, então, Deus, sabendo tal, se persistisse na sua criação, seria cruel.

Todavia, houve outra via ainda não mexida que se agita para ser considerada. Parte da negação do Mal, dizendo que ele não existe enquanto algo autónomo. Limita-o a uma ausência de Bem. Como certo filósofo expôs: «Não há trevas, somente ausência de luz.» Deste ponto de vista, toda a catástrofe era só fruto duma falta, ausência de Deus. Mas se assim fosse, Deus não seria omnipresente, pois só a sua peripresença poderia justificar a sua ausência momentânea.

Há ainda, porém, quem proclame que do Mal pode vir grande Bem e que Deus não permitiria o sucedido, se dele nada de positivo se retirasse. Mas se quer ilibar Deus com este argumento, é, horror!, como se afirmássemos que para Deus os meios justificam os fins.

A terra é fecunda em turbulências nas nossas existências, inquirindo-nos com dúvidas que reclamam as nossas respostas ou, pelo menos, pensamento. Podia temer que Ele fosse só ilusão, mas a alma que em mim arde o nega. A existência de bondade neste mundo é algo tão sobrenatural como a existência de Deus. Obtive-se o maior volume de dádivas de sempre para ajudar as vítimas do Sudeste asiático e da Somália. Esta última repetidamente esquecida nos telejornais, que África é bom que fique na penumbra: choca ver o mal que se quer esquecer...Corvos, crocitai e acordai os homens! o corvo

Publicado a 2 de Fevereiro de 2005

Partidário

Na rotunda da Nacional 1, que atravessa a Mealhada como um rio e que deixa que se vire para Casal Comba, confrontam-se dois grandes cartazes, um socrático, outro santanista. Sendo pendulares minhas migrações, todos os dias os confronto e sucessivamente, estranho!, eis que encontro o socialista rasgado, mal colado ou desaparecido. Não percebo o bizarro caso, se vem de humano ou natural erro. O que é certo é que o laranja, desta feita, não fez publicidade enganosa: resiste realmente colado às chapas metálicas onde o puseram «contra ventos e marés».

Esses cartazes, que agora aí se erguem, continuam estrada fora até Coimbra, onde não menos inocente é a campanha. É de espantar ao forasteiro os ternurentos anúncios que pululam na cidade, anunciando a «brevemente uma realidade» do hospital pediátrico que enfim chega para substituir o já rendido à idade. O que é curioso é que esse novo edifício de Coimbra só agora vê começados os alicerces. É um brevemente demorado, aquele que nos prometem, se considerarmos que em Portugal não há obra sem atraso, como a Biblioteca da Mealhada...

Esta campanha, neste período do campeonato, surge suspeita a meus olhos e a de tantos outros, nomeadamente a CDU, que já contra ela protestou. Mas as diversões desta pré-campanha não se fecham aqui. Ainda na mesma cidade, foi com surpresa (já devia há muito ter aprendido a não me espantar com estas estultices que grassam pelo país!) que reparei num cartaz do CDS desgastado pelo tempo e uso que ostentava uma velha lista de candidatos por Viseu. Erro da agência que devia colocar os cartazes, que acabou por cobrir o erro com um anúncio do PSD. No mínimo caricato, mas não o é toda a política portuguesa agora?

Temos pena que o espectáculo das listas tenha durado tão pouco, pois quão divertido se afigurou! Auto-retrato da política portuguesa. Os dois únicos partidos com possibilidade de ganhar mostraram gostos e práticas masoquistas, com facadas auto-infligidas, se quisermos utilizar a mais recente terminologia política. Meio PS atacou PS, protestando pelos lugares atribuídos nas listas, e o mesmo, em escala mais grave, sucedeu com o PSD. A ânsia de poder causa sempre conflitos. É uma virtude desse pomo da discórdia que tantos almejam.

A situação política que temos em Portugal neste momento é, nalguns fortes aspectos, análoga àquela da América em Novembro passado. A escolha no país para lá do Atlântico era complicada: quer um, quer outro dos candidatos não se revelava minimamente competente para o lugar; se Bush já tinha esbanjado provas da sua inabilidade política, Kerry também não oferecia muito mais segurança nem uma visão para o futuro animadora. O panorama luso é uma réplica menor deste: dum lado, temos Santana; do outro, Sócrates; sem que nenhum se apresente como um sério estratega que possa solucionar as questões do país.

A alternância irritante e partilha do poder entre estes dois partidos maiores, apenas quebrada pela entrada do PP nestes dois últimos governos, é desanimadora. Basta observar o sector da educação, aquele que me atinge mais directamente, que tem sido alvo de sucessivas reformas de inúmeros governos, que não conseguem acordar num modelo pedagógico. Em Portugal, não se consegue ter um fio unitário de poder coerente: cada governo resume-se a moldar as coisas à sua forma, não reciclando o que herdou, mas destruindo-o por completo.

De facto, este é um mal intrínseco à democracia do nosso país. Para que um partido da oposição possa alcançar o poder, tem necessariamente de contrariar e combater as medidas tomadas pelo executivo em posse. Se prometer o mesmo, ninguém votará nele, pois que compensam as rédeas do poder em mãos diferentes para o mesmo galope? Só certificando que vai alterar as políticas do governo a que se opõe nas mais diferentes áreas é que a oposição pode ansiar sair vencedora nas urnas. Em conquistando S. Bento, logo renega e deita fora as velhas medidas anteriores e tudo renova e faz a seu jeito. Mas quatro anos depois, o mesmo lhe sucederá. E, assim, nos achamos presos neste ciclo vicioso...

Há que dar um sinal aos partidos de que este esquema caducou e é inaceitável: só com uma maior cooperação entre todos podemos aguardar algo de melhor para Portugal. Mas ninguém pode cooperar chamando-se de oposição...o corvo

Publicado a 19 de Janeiro de 2005

Ano Novo, Mealhada Nova

Estamos a um dia do dia de Reis, que encerrará a quadra natalícia. Entretanto, passámos de ano e começamos a avançar no ainda tenro mês de Janeiro, que se vai desbravando pouco a pouco. Atordoado talvez por estas mudanças cronológicas, estava-me a ser difícil achar assunto para esta crónica, pelo que resolvi fazer dela um cacho de pensamentos sobre o tempo que passámos e o espaço mudado em que agora caminhamos quotidianamente: a nossa terra.

Foi pois assim que no último dia do ano já ido comecei a minha peregrinação pelas paisagens mealhadenses. Se buscava achar algo de novo, tinha, obrigatoriamente, de começar tal caminhada na maior novidade que a terra ergueu: a sua ínclita biblioteca. O parto foi longo, sucessivamente adiado para desespero daqueles que, de forma peripatética, percorriam círculos na sala de espera. Mais dramática a demora foi quando se viu feita a biblioteca e esta apenas esperava o recheio que lhe competia guardar. Que tal período se arrastasse tanto constituiu uma situação quase degradante, acima de tudo exasperante, para os sequiosos de descobrir o nosso edifício do saber mealhadense, agora posto mesmo no centro da cidade.

Na demora tão longa de tudo acontecer podíamos ver um símbolo de como tarda o saber, cuja vinda foi abrandada por um concurso público de mobiliário. Chega quase a ser ridículo, um paradigma de todo o país nosso. Por burocracias que se arriscam a superar os piores pesadelos de Kafka, tudo se delonga conduzindo à loucura qualquer um. E depois, espantam-se os médicos que Portugal seja dos países onde mais anti-depressivos se consomem! Por sorte, não sofri tanto com o atraso de abertura da Biblioteca Municipal que tivesse de tomar um Prozac.

Valeu a pena? Confesso que sim. Deixo de lado a pena satírica, que sou obrigado a elogiar a obra com que nos presentearam, obra essa duma grande qualidade. A BM (Biblioteca Municipal) é de facto um espaço aprazível e onde se respira e vela pelo gosto pela leitura. O espólio literário é devedor de certas contribuições que se fizeram e que só contribuíram para enriquecer mais a quantidade de livros que, esperemos, seja sempre crescente, tanto em número como em qualidade. Mas não só de livros são hoje feitas as bibliotecas. A BM está apetrechada de vários computadores modernos, bem como dum espaço de audiovisuais onde se podem ver comodamente DVDs vários. Também nela achamos um confortável espaço para a leitura de várias revistas, cuidadosamente seleccionadas. Os mais pequenos têm um espaço que é monopólio seu e os deliciará. Fiquei, de facto, deveras surpreendido com a qualidade, material e literária, da Biblioteca e espero poder regressar lá várias vezes, que bem me deixou esse desejo.

Continuei pela avenida abaixo, a tal semaforizada, com semáforos já sem botões para os peões carregarem para mudar a cor do sinal. Não que isso lhes interesse muito: verde ou vermelho, sem carros, é tempo de passar. De facto, parece-me que concelho da Mealhada e sinais de trânsito não são duas expressões muito compatíveis: basta olhar para as recentes alterações no Luso, de modo nenhum felizes. Indo portanto por essa rua, descubro um grande painel branco, ainda embrulhado em plástico transparente, daqueles em que se colocam cartazes publicitários. Poucos o notaram, mas já está lá um cartaz pronto a ser revelado, que surgiu a meus olhos, quando eles se aproximaram bastante do curioso alvo painel, como um verdadeiro roteiro da Mealhada, fazendo uma apologia da terra e as suas virtudes. Esse é pois o lado reservado pela câmara. A mania de ser cidade ainda não abandonou a Mealhada.

Cheguei-me à praça do Choupal onde se resolveu instalar recentemente alguns bancos. Aproveitei para me sentar e descansar. Tenho de admitir que conferiu àquela zona todo um ar dum imenso jardim, que a tornou num belo sítio para se passear, ainda que a sua vegetação não seja mais que erva bem aparada e algumas árvores. Lá achei igualmente uns caixotes do lixo cinzentos, que enviam os meus pensamentos sempre para a minha escola, que possui uns exactamente iguais. Vê-se que há um esforço para uma Mealhada mais limpa. Os caixotes é que não são propriamente dos mais belos...

Ali bem perto, não pude deixar de contemplar o ainda em construção Arquivo Municipal, essa magnífica obra de arquitectura moderna, com tanta cor que parece um desenho dum menino de cinco anos e que tem as letras que o identificam todas tortas. É espantoso o imenso esforço que se fez para harmonizar o Arquivo, que as árvores nuas agora revelam claramente, com os prédios envolventes: as cores, por exemplo, combinam perfeitamente (o castanho tem imensa afinidade com o verde pálido e o vermelho forte, todos o sabem). É um belo sítio para se concluir uma peregrinação, pensei eu.

Voltado a casa, percorri os diversos canais em busca dos programas respectivos de passagem de ano. A criatividade das estações televisivas apanhou-me de surpresa: a TVI passava o ano (de novo) à espera da vitória já de todos antecipadamente conhecida do José Castelo Branco; a SIC servia mais Herman e a RTP parecia que tinha ido buscar o programa do ano anterior e se tinha limitado a alterar as referências a 2004 para 2005. A nossa televisão é muito original. À meia-noite, apareceu a Superbock a fazer a contagem decrescente nos três principais canais. Foi talvez a única coisa diferente dos anos anteriores- a publicidade não era a mesma, o que me perturbou, pois não aceitei logo aquilo como a passagem de ano, que agora não é mais do que outro produto comercializável do capitalismo. Bem, as pessoas embebedaram-se e ficaram felizes. Viva 2005! o corvo

Publicado a 5 de Janeiro de 2005


Requiem a Santana (Tocado por violinos de Chopin)

A autópsia foi conclusiva: o infante estava clinicamente morto (mentalmente, há muito assim se achava). As causas exactas não se revelaram claras e os doutores em brancas batas hesitam e ponderam. Os maus tratos familiares terão levado a tal defunto Estado? O espectro da cabala, que hoje tudo domina, floresceu logo numa tese da conspiração. Um corte da ficha de alimentação podia, se podada fora a energia à incubadora do perecido, ter precedido a extinção deste e à sua jovem morte conduzido. E, pena do menino!, foi estranho também seu caso, mas o acaso não se lhe deu para que também este em bamba corda estivesse no morre-acorda do velho Arafat! Ia ser circo divertido de acompanhar...

De circo, já cercados fomos porém durante estes últimos quatro meses que, enfim, se acabam! Caibam aqui todos os números do espectáculo e logo vo-los mostro! Deles, porém, só amostra curta esta crónica acarta, que nestas linhas pouco espaço se arranja sobre o desarranjo do governo e do país. Eis, pois, que enfim o presidente fora manda Santana e o seu populista mando! O mundo santanista que governou esta nação rui por fim! Santana com as suas trapalhadas súbitas foi na semana volvida rejeitado, depois de ajeitado seu governo na quarta anterior. As chaves do poder lhe foram tiradas, depois de se retirarem pelo próprio pé no domingo de há uma semana atrás. E com essa saída do henriquino Chaves de alma traída, a terra se começou a fender para Santana...

Duvido que mais gozo tão divertido tenhamos tido do que nesta curta ocupação do trono por Santana. Honremo-lo: ele foi o nosso Bush, até este presidencial Putsch. Na sua prática do contraditório, entreteve o lusitano auditório, como se de revista do seu parque Mayer restaurado se tratasse. O preço do bilhete foi, contudo, exacerbado: a conta (e a Compta) foi ruinosa. E no deserto político e social a que chegámos não se vê oásis, nem sequer aquele que ele ergueu na larga Praia da Claridade.

O extracto detalhado do talão do concerto mostra o que por consertar ficou. Pior, revela o gosto macabro dos seus actores nas desgraças que eles fizeram subir ao palco. Nem o pó de talco das assessoras de imagem de Santana lhe valeu. O espectáculo foi, no mínimo, mórbido. Primeiro acto: a espera das listas– uma reflexão metafísco-prática sobre a influência das máquinas na sociedade moderna e o controle exercido pelos computadores sobre o indivíduo. Segundo acto: o silenciar os incómodos- um ensaio sobre o lixo televisivo acompanhado de algumas considerações sobre a influência manipuladora dos mass media e passos para a instauração no país do regime italiano de controlo da televisão pelo primeiro-ministro. Terceiro e derradeiro acto: quinta lição de xadrez sobre o movimento conhecido por roque, em que se rodam duas peças nucleares de modo a que uma mais crítica fique mais “resguardada”, num gesto cujas designações linguísticas variam entre reajuste e remodelação, dependendo do ponto de vista. Fim.

Sim, de mau gosto no mínimo, este teatro. E o seu actor principal pôs agora em xeque o seu partido, que agora partido o queria ver para outros lados. Mas como, quando no congresso apoio mais expresso lhe investiram nas urnas? E para as furnas atrás do líder a laranja se vai enchendo de bolor... Parece que nem o astral salvará Santana no final: sua astróloga nos confessa que o tempo derradeiro dele se apressa, pois que o ano dele, a crer no chinês calendário, se encerra agora– aproxima-se a última hora do Macaco!

Com certeza, ela com firmeza avança, ainda com data não estabelecida. Provavelmente, conta-se por aí, virá mascarada e disfarçada. Estou deveras convencido de tal, pois a sabedoria popular não se engana e já ela mo revelava num velho conto da minha meninice, que alguém nomeou de ‘O Pedro e o Lobo’. Pedro acorre ao vale em falso alarme e as gentes o socorrem aflitas, para constatar a mentira. Mas atira Pedro de novo essa calúnia à cara do povo, e eles o acodem e o mesmo que antes verificam. Uma terceira vez, quando de facto o terror sucede, e o lobo vai fero devorando as ovelhas, e Pedro busca auxílio, das gentes só acha exílio. Quem mente, há-de vir a altura em que, precisando mesmo, nem mesmo a verdade convencerá. Está na hora de Santana compreender essa lição. o corvo

Publicado a 8 de Dezembro de 2004

Controlo com trela

Era inevitável, como meia dúzia de coisas o são na vida. Há sempre esse grupo que se deixa domar pelo destino que fatalmente, inexorável, sobre nós tomba. Como acto de rebeldia, podemos tentar escapar, mas o nosso fado aproxima-se então do das tragédias helénicas: quanto mais o herói da sorte marcada se esquiva, com mais renovado fulgor nele o destinado se criva. Foi pois vã a minha “glória de mandar”, emendar meu capricho foi a única saída. Saúda pois meu teclado, agora, esta crónica nova, e que a escrita se apresse, que a pressionam e aprisionam por esse país luso em uso nocivo.

Não tentarei aqui discorrer sobre a corrente central da acesa polémica, a martelada questão marcelina. Para quê invocar os personagens desta comédia tão badalados a cada badalada do relógio nos noticiários televisionados, em nome dos quais tantas canetas já foram sangradas, tantos cartuchos despejados de impressora? Dá a impressão, contudo, que com tudo o que dactilografado foi, só mais confuso se acha agora o mais vulgar lusitano. Não comente eu pois o comentador, despeça-se a crónica desse despedido por pé próprio.

Sim, o caso maior do professor cegou-nos, chegou-nos para alertar para a utopia em que vivíamos, mas não para nela melhor repararmos; nem para a repararmos, construindo uma verdadeira livre expressão sem pressão. Os mais recentes episódios passados na RTP desenterraram as velhas frases dum já conhecido ministro. Atente-se no atentado à independência televisiva que constituem as declarações do ministro da presidência. Como reagir quando se refere que são necessários “limites à independência” do operador público, que há que haver “uma definição por parte do poder político acerca do modelo de programação” desse mesmo canal, e se conclui dizendo que “a RTP ainda tem um longo percurso [a percorrer] a nível dos conteúdos”?

Anunciou pois o sargento Sarmento que a programação da RTP é competência estatal. Estatela-se desajeitado com tais impensadas afirmações o senhor ministro, ao qual aqui ministro minha veemente crítica, repreendendo aquele que assim vai prendendo esse direito tão fundamental! Mais se reforça a minha convicção quando leio, com espanto e admiração, a invocada e justificativa razão para esse intento. Sem tento defende-se Morais argumentando que “não são os jornalistas nem as administrações que vão responder perante os eleitores”. Ó leitores, como se preocupa o santo ministro tanto connosco, nós que às urnas, armas nossas, iremos!

Que vê ele na sigla de RTP, que significado oculto? Quiçá, Rádiotelevisão do Partido? Ou, tendo em conta a necessidade de pensar nos votantes, será porventura Rádiotelevisão da Propaganda? Rádiotelevisão do Pedrinho? Qualquer que seja aquele que o ministro mais prefere e deseja, será sempre uma Rádiotelevisão Parcial, e não uma Rádiotelevisão da Palavra. Uma palavra livre e plural. Basta observar o que sucedeu agora tão recentemente! Até os Santos são corridos! Valha-nos a Alta Autoridade para a Comunicação! Aquela, cujas conclusões o ministro acusa de falta de credibilidade: crédito não tem é o Estado (até mesmo nos seus cofres!). Estejamos cientes: calados e calcados se acham hoje os nosso direitos de expressão!

E do ecrã pequeno para a vida saltam mais exemplos do controle de que falo. É no desporto, o dragontino treinador espanhol, castigado pelo frustrado desabafo: “Isto é falta!”. Pois é falta, é! É falta de liberdade! E que dizer do cidadão pombalense que alega ter sido despedido por pressões da sua autarquia junto da sua empresa, por o munícipe ter um blog no universo cibernético em que criticava a câmara? Ah!, e não se salte o problemático assunto da direcção renovada do ilustre Diário de Notícias! E como sob tudo isto a manopla da manobra ilegal paira, e pára assim, discreta e secreta, o que perturba a turba dos interesses estabelecidos!

Sim, altere-se o provérbio! “Quem cala, consente” é adágio que a adaga dos tempos modernos últimos se encarregou de matar! Fale-se hoje antes o oposto “Quem cala, discorda”. Pois é a seita de interesses que não aceita o ‘contraditório’ que cala. Cala o eminente e o menor. (Ao menos no calar há igualdade neste país!). Mas há uma certeza e dela faço minha conclusão desta crónica triste, com Alegre citando: “Há sempre alguém que diz não”! o corvo

Crónica Inédita

Semáforos Urbanos

Acreditou a Mealhada feita cidade que lhe faltavam os semáforos. Cidade que se preze, há que ter semáforos. Pois que a cidade reze para que lhos tirem, agora que postos são!, é o que eu grito. Que jeito pomposo da urbe de se crer e querer altiva! Onde está tua humildade, ó Mealhada? Orgulha-te antes de quem te habita e não do semáforo que o trânsito apita! O que acreditaste que te havia de trazer louros, provou ser coisa de loiros, a acreditar nos falsos preconceitos anedóticos do povo sobre as gentes de cabelo cor de espiga!

Fiaste-te que os homens, de dentro e de fora de ti, haviam de celebrar a inauguração desses polícias sinaleiros de metal com gáudio. Antes com gládio no punho os combatem! Acaso há semáforos para parar e mandar andar entre a aorta e o miocárdio, músculo do coração? Pobres de nós se assim sucedesse, que tombaríamos todos de imediato para o solo, sufocando por falta de sangue! O sangue quer-se que não pare, que flua incessante! E tão bem junto ao jardim da nossa cidade esse fluir antes era imitado! Limitado é ele agora por máquinas tricolores!

Revolveram-se as entranhas da terra para aqueles postes verdes espetar, e espectar tais torres é agora nova função dos automobilistas presos pelo símbolo escarlate! Com o tráfego congestionado, na avenida da data da lusa liberdade, vê-se preso o morador para sair de sua garagem! Quando enfim vê escoada para outros lados a fila que o impedia de avançar, e consegue por fim que as rodas do seu carro pisem o negro alcatrão, mira o sinal, e choca com um forte vermelhão! E mais dois minutos aguarda encravado pelo semáforo que maldiz.

Corre e conta-se por aí, que pelos peões se puseram no cruzamento tais desamadas invenções. Percorrendo eu a cidade, pude pois constatar o logro que tal afirmação em si carrega, mentira que notei especialmente nas múltiplas vezes em que eu mesmo e outros fomos obrigados a atravessar pelas passadeiras junto aos sinais. Pois atente-se nas seguintes palavras. Quando o peão passa, sente-se obviamente incomodado, visto ter sido ele o responsável por parar toda a circulação naquela artéria da urbe e apressa-se a passar, para não apanhar com os irados e desesperados olhares dos condutores. É que nas grandes cidades, quando alguém passa numa passadeira, jamais anda sozinho: uma manada de pessoas acompanha a sua procissão. Na minha amada terra, a Mealhada, cada vez que o sinal vira verde para os passeantes, passam dois indivíduos: um de lá para cá, e outro de cá para lá. E isto quando sucede os dois encontrarem-se.

Quando por sua vez o polícia automático aponta o vermelho aos peões, qualquer das três passadeiras fica inutilizada para os caminhantes. De facto, estou convicto de que os sinais são precursores duma degeneração dos costumes e bons valores. Concebamos a situação pré-semáforos: um peão está do outro lado da rua quando vê um carro aproximar-se, decidindo por isso não atravessar. O automobilista, vendo o pobre homem esperando, num gesto afável, deixa-o passar. Agradecido, o peão levanta a sua mão em sinal de reconhecimento.

Imaginemos a agora a nova realidade que nos foi imposta. Os condutores, em vez de serem simpáticos, maldizem os peões que lhes bloqueiam durante dois minutos os movimentos da viatura, pois o tempo de espera é colossalmente desapropriado e desajustado. A afabilidade tornou-se em ódio, irritação e impaciência. O peão, por sua vez, nada tem a agradecer, ou será que se deve sentir grato frente aos semáforos? Ao contrário, atravessa o alcatrão, mas passa-o pleno de indiferença.

Não conheço ninguém, nem da nossa querida cidade, nem do exterior, que se tenha alegrado ao ver estas novas aquisições da nossa pólis. Todos contra elas têm barafustado, e eu limito-me, por meio desta crónica, a dar voz a uma cólera e revolta generalizada que eu igualmente partilho. Mais descabidos se tornam ainda os sinais pois afastam do jardim o trânsito, que opta por entrar na Mealhada pelas duas outras rotundas da estrada nacional. Ora, o pouco trânsito que resta e que circula por essas vias semaforizadas, carrega o fardo de suportar sinalizações que estão concebidas para regular engarrafamentos caóticos urbanos. Todos saem penalizados e, para mais, o investimento não é recuperável. O melhor que ainda havia a fazer, é colocar os sinais a mostrarem a amargura de ali estarem, pondo-os, para isso, a olharem-nos com um falso sorriso amarelo perpétuo. Bem branco seria o nosso riso então. o corvo

Publicada a 24 de Novembro de 2004

Um terço dos terços

Certo, vivo nesta terra, a única do país em que um turista pode bradar sem ofender os populares que isto é uma terra de porcos. Contudo, em migrações pendulares estou preso, não só as do tempo e as dos pêndulos dos relógios vetustos que ainda se agitam em paredes de casas mais antigas; mas igualmente nas viagens que os estudiosos assim designam, isto é, aquelas, como a minha, que consistem numa diária ida e volta ao posto remoto de trabalho. O meu ofício localiza-se na cidade cuja autarquia está a pensar mudar o nome da urbe para Rainha Santapólis ou Castropólis, o que não deve tardar muito, tal é a velocidade a que tudo é renomeado para corresponder aos apelidos das duas padroeiras. Tudo, até a começar por uma inocente ponte europeia sobre o Mondego que custou mais do dobro do que estava previsto.

Nessa cidade estudo eu, mesmo nas traseiras do consumo do grande Coimbra Shopping, ponto de fuga habitual para os alunos da Escola Secundária Quinta das Flores aquando dos furos. Não que tal hábito agora continue a durar, pois instalou-se um sistema de cartões electrónicos que impedem saídas durante o horário lectivo, exceptuando a hora do almoço. Foi precisamente numa dessas horas de comida que eu fui passear ao colosso da Sonae, depois de saudavelmente ter reabastecido as forças na cantina escolar, que, no entanto, é demasiado pouco chique para metade dos alunos que preferem ir tomar a sua refeição junto das cadeias americanas de comida rápida que pululam o Continente e são três vezes mais caras que uma vulgar senha de liceu. E depois espantam-se que um terço dos americanos seja obeso!

Relatava eu que ia a passear pelo círculo da restauração, num dos extremos da catedral do consumo, quando vejo uma caricata cena, que acabou por inspirar toda esta crónica desta semana. Bizarra é sem dúvida! Como quem passa e não liga, assim eu rondei a parelha de raparigas que se debruçava sobre um estranho objecto e escutei atento a conversa que encetaram, os gestos que encenaram. E como aquele episódio tão menor era o símbolo, a metáfora duma decadência tão maior! Revele-se pois o que visto foi.

Uma das raparigas retirava da sua mochila um pequeno terço de Fátima cintilante, daqueles que brilham luminosos no escuro. A outra agradeceu-lhe, viva e feliz, pela oferta que lhe havia solicitado há umas semanas atrás. De facto, sabendo que a presenteadora iria a Fátima, requisitou-lhe um terço e a outra rapariga cumprira a sua palavra, trazendo-lho. Já isto era anormal, não fora o desapego dos jovens de hoje em dia à religião, por todos notado. Era pois estranho ver semelhante alegria numa adolescente por receber um terço. Atento, continuei a ver.

Qual não foi o meu espanto quando a rapariga a quem fora dado o objecto religioso, o alarga e o faz passar pela cabeça, tal colar, metendo a cruz do terço dentro da camisa. E muito alegre proclama que aquilo é giro, é moda. Realmente, já antes eu assistira a pedidos de compra de terços por parte da juventude feminina, sem nunca perceber plenamente o que elas pretendiam com tal. E eis que enfim me era revelada a hedionda verdade! Um terço dos terços para esta fraude são vendidos, sem que quem os vende saiba para o que os vende. Que lhes interessa também, a eles comerciantes? Só o dinheiro na caixa registadora é importante e a religião é um grande negócio quando sabe ser bem explorada. Pouco importa o que se vende, importa que se venda. Se não fosse este o seu pensar, razão alguma haveria para que eu, nessas lojinhas que medram em torno ao Santuário, encontrasse objectos tão curiosos e com uma tal falta de bom gosto, como, por exemplo, um disco com a imagem da Aparição de Nossa Senhora com os raios do círculo iluminados de múltiplas cores que vão passando para o raio seguinte, dando a impressão de que o disco está a girar.

Sim, não só o distanciamento das gentes face à religião é preocupante, mas igualmente a banalização dos símbolos do culto, não apenas na Igreja, mas em toda a esfera religiosa mundial. O facto de eu não crer em algo não me dá o direito de zombar desse mesmo algo e dos seus mais queridos símbolos. Fazê-lo, é só mais uma prova da crescente intolerância que se vai semeando no nosso mundo. Uma atitude é contestar os símbolos que se julgam errados, outra, é ofendê-los. Contestar é não usar tais objectos porque não se partilha o significado religioso daquelas peças; escarnecer é desvirtuar o objectivo para o qual tais símbolos foram criados. Não caiamos na segunda tentação. o corvo

Crónica Inédita

Prólogo às Crónicas

Por mero ensejo viu-se o desejo desejado cumprido. Como sempre, foi no menos aguardado tempo e sítio que sitiados fomos pelo bafejo do ensejo. Inopinadamente, como é recorrente correrem estes encontros com a oportunidade. A paternidade da sorte que nos chega, nem sempre pelas mãos mais esperadas vem ter connosco: gente normalmente normal, que nos apanha. Mas não mais se refinem as metáforas, que se finem elas! E esclareça-se quem lê, conte-se claro o ocorrido e socorrido seja o leitor destes passeios por becos sinuosos das palavras.

Ardia pois o Estio já em fins do mês oitavo, quando, em terras alentejanas, com o sol violando forte a frescura da minha nuca, e estando eu a olhar para as manobras e dobras dum autocarro que me levaria, uma mão se poisa sobre o meu ombro. Viro-me instantaneamente. Esboço um sorriso, ao reconhecer quem assim me abraçou a espádua. Estendo-lhe a mão e cumprimentamo-nos. Olhamos um para o outro por meio das nossa lentes oculadas, se bem que os óculos dele sejam mais grossos e idosos, confirmando o tempo que lhe pesa sobre as costas. Contudo, é da união da geração mais avançada com a desabrochante que surgem as coisas mais belas.

Sempre com a sua mão sobre o meu ombro, como um velho avô que vai caminhando levando o neto lado a lado, contou-me como se iniciara naquelas artes jornalísticas. Não fora um professor seu, que o coagiu a escrever um papel sobre o mundo artístico, e um conhecido amigo dele, que um dia lhe solicitou um artigo sobre uma partida de futebol; não tivessem sido estes dois, esta parelha, e provavelmente, quando mais tarde ele reviu o seu literário baú, havia de achá-lo nu, e diria certo que aquela vida não era existência para ele. E hoje, trabalharia, quiçá, noutro posto. Mais foi outro o gosto do destino e de Deus. E no seu cofre particular, foi o professor os velhos escritos recordar, o que o foi acordar para o talento que possuía. Bem decidiu nessa hora pô-los a render e hoje arrenda-os a todos a um preço modesto numa banca de jornais.

Foi então que, com solenidade, olhando-me bem nos olhos, me propôs ousada oferta. Conhecendo já o meu jeito de escrever, havendo mesmo já publicado um texto meu anteriormente, falou-me abertamente do desejo que tinha que eu contribuísse para o seu semanário. Foi mais longe até, abrindo-me, se assim fosse de meu agrado, uma coluna nas páginas do jornal só para mim. Deixava a meu cargo o tema e o teor das palavras que eu dactilografaria nessa rúbrica. Nunca ninguém antes me escancarara tanto as portas para esse admirável novo mundo do jornalismo. Acima de tudo, ali tinha a possibilidade de deixar fluir regularmente as minhas cogitações, dúvidas e pouca arte. E a um escritor, que mais apraz que escrever?

Malgrado a tentação, não foi logo ali o meu sim. Havia que reflectir, pois uma vida não pensada, não merece ser vivida, como já vêm os filósofos dizendo desde o tempo do Sócrates que não era secretário-geral socialista. Indaguei pois entre amigos meus, que deveria eu escrever no nobre espaço que me seria reservado no hebdomadário, no jornal mealhadense. Depois de muita gente entrevistar, surgiu a decisão. Encontrei de novo o meu benfeitor e apresentei-lhe as minhas propostas para a forma como ocuparia a coluna que me era concedida. Ela acordou, concordou satisfeito. Mais renhida foi a luta pelo nome incógnito, o pseudónimo, mas no fim tudo se aceitou.

E foi pois assim que ganhei o direito de, de forma regular, vir aqui falar, sendo o meu púlpito uma coluna. Que estranho desvairo arquitectónico! Maior milagre no entanto é como se ajeita, em coluna tão estreita, o mundo todo sobre o qual discorrerei. Pequenas meditações críticas, intercaladas, por vezes, por pequenos quotidianos acontecimentos e histórias. Tudo será abarcado neste meu sermão deste meu púlpito: esta nossa cidade e os seus urbanos problemas, o nosso país e o desgoverno em que tudo se finge governar, e enfim, o mundo vasto redondo para o qual a gravidade nos puxa. Como todos, tenho as minhas ideias mais liberais e as mais radicais, os extremos e o meio, o equilíbrio e as loucuras. Não prometo nem quero agradar a todos, sabendo de antemão que poderei magoar alguns e louvar outros. Acima de tudo, porém, que corra nesta rúbrica uma espécie de tentativa de amostra da arte sublime que é a escrita e que seja fiel ao espírito dela pelos tempos, que sempre tentou divertir e emendar o humano espírito.

Obrigado, Professor Santos! o corvo

Publicado a 10 de Novembro de 2004

Intro ou Abertura (Carta ao Director do Jornal)

Coimbra, 9 de Outubro de 2004

Caro Ex.mo Prof. Santos,

Chove forte lá fora e eu escrevo-lhe cá dentro, abrigado pelo tecto da Universidade, donde redijo esta minha carta. Venho por este meio anunciar-lhe a minha decisão relativamente à sugestão que me fez aquando do passeio mealhadense a Campo Maior. Nessa altura, recordo, propôs-me que contribuísse para o Jornal da Mealhada (JM) enviando mais frequentemente textos da minha autoria. Chegou mesmo a falar-me da possibilidade da criação dum espaço meu no JM, uma coluna própria, onde semanalmente eu pudesse escrever.

Depois de muito conversar com pessoas minhas amigas, resolvi aceitar a sua oferta. Venho pois expressar nesta carta o meu desejo de ter uma coluna própria na qual possa contribuir regularmente para o JM. Nessa rúbrica, abordaria temas da actualidade local, nacional e mundial. Eventualmente, por vezes, escreveria igualmente uma curta história. No entanto, fique bem claro, que a coluna que me proponho ocupar é dum teor essencialmente crítico, reflectindo a minha visão pessoal sobre os vários temas que agitam a sociedade.

Gostaria de assinar os meus artigos sob o pseudónimo “o corvo”. Esta palavra tem um significado especial que é desconhecido pela maioria das pessoas. De facto, procurando no dicionário, descobri que “corvo” é um termo para designar alguém que escreve cartas satíricas anonimamente. A própria significação enquadra-se naquilo que eu pretendo fazer. Devido ao meu pseudónimo, apelidaria a minha coluna de “Crónicas Crocitadas”. Agradar-me-ia se pudesse ter uma pequena imagem dum corvo na minha crónica. Se tal ilustração fosse possível, contactaria com uma velha amiga minha que possuiu um extraordinário dom para o desenho e que não se importaria, decerto, de desenhar a dita cuja ave a preto e branco.

Tenho porém algumas dúvidas que apreciaria se me pudesse esclarecer. Primeiramente, que espaço disporei eu para as minhas crónicas? Em segundo lugar, qual deverá ser a sua regularidade?

Satisfar-me-ia muito se eu dispusesse dum espaço análogo ao do editorial do JM. Não me parece excessivo e fornece-me espaço para desenvolver os vários temas apropriadamente. Contudo, se tal for demais, pode-se sempre reduzir a área da coluna para metade, e publicar as crónicas aos pares, isto é, a crónica dividida, que começa numa semana e se conclui no jornal da semana seguinte. Se sucedesse este último caso, penso que é lógico que tal obrigaria a um espaço meu semanal. Porém, se se optar por publicar as crónicas na íntegra em cada semana, pedia o favor de, pelo menos inicialmente, essas crónicas integrais saírem, não semanalmente, mas quinzenalmente, pois não sei até que ponto eu terei disponibilidade para escrever uma crónica integral todas as semanas. Se, mais tarde, vir que tenho o tempo necessário para tal em minha casa, então gostaria de tornar a minha coluna com crónicas integrais com periodicidade semanal.

Anexamente, envio-lhe as três primeiras crónicas que gostaria de publicar. Através delas, poderá avaliar o que escrevo e ter uma ideia do que poderá esperar de mim, tanto em termos de tamanho das crónicas como no que toca ao seu teor. Espero que as aprecie e aguardo por uma resposta sua brevemente.

Respeitosamente,

João Diogo Loureiro