23 December 2006

Ensinamento Às Crianças de Saragoça


Às crianças da escola Hilarion Gimeno, de Saragoça, a quem impediram de celebrar o Natal, para não ofender outros credos.

Queridas Crianças de Saragoça, venho-vos explicar o mundo, como um filósofo velho que acolhe, como avô, os pequenos no regaço. Porque há coisas, crianças, que os outros velhos, que se chamam adultos, não querem que vocês saibam: mas é urgente que saibam! Percebo que não percebam muito do quanto percepcionam e cada dia é uma novidade e cada espaço, uma vontade de ser maior, sendo mais sabido. E, no entanto, Deus!, às vossas perguntas, só têm o eco como resposta. Por isso vos sento hoje aqui, Crianças de Saragoça, e vos falo do Natal.

Sei que na vossa escola não há Natal. E, coitados de vós – ó arautos de permanentes porquês! –, que não entendem a cidade, porque na cidade há Natal. Há luzes confusas nas árvores do jardim municipal – mas também isso, sabeis?, não é Natal. Os vidros das lojas têm azevinhos e tons encarnados, como fosse tudo um grande pecado – o pecado de celebrar o Natal. E, subitamente, tudo fica mais barato (ou assim se promove) – coisa bizarra, quando se pensa que, depois, logo seguem os saldos: que pensam os adultos? Mas nem isso, crianças, nem isso é verdadeiramente o Natal. Aliás, coisa mais esquisita ainda, é vocês receberem presentes, ainda por cima, sempre no mesmo dia do ano. Eu sei a vossa alegria e como voam aladas de brinquedos, mas, lá no fundo, comichão!, há essa grande confusão de perceberem a razão por detrás da atitude, porque tanto quanto os pais vos tenham dito, vocês fazem anos noutro dia.

É uma época, a bem dizer, aberrante – um pouco como os adultos. E na vossa cabeça pequena e no vosso coração grande, não faz sentido nenhum – só porque desconhecem, porque vos calaram, o que acontece. Não que as coisas para serem belas ou agradáveis tenham de fazer sentido, mas nenhuma de vocês, crianças, acredita, certamente, que os adultos são surrealistas, que são o único género de pessoas que fazem coisas muito divertidas, mas sem sentido nenhum.

O mais enervante, porventura, é que, maldição!, o vosso primo, que até é um ano mais novo do que vocês – o primo de Barcelona, que vem sempre passar esta altura convosco (o que é uma coisa, em si, também esquisita: por que inspiração todos acorrem, pastores peregrinos, à gruta de vossa casa?) – ele sabe o que se passa, certamente, porque não parece nada confuso – e vocês nunca o tomaram por palerma. Há um grande mistério, e nenhum Holmes para o resolver.

Ai Crianças de Saragoça!, fazem-vos cegas, mas como os dentes novos que vos nascem incessantemente, brota em vós nova vista continuamente. E que eu vos dê a luz, que não seja artificial ou um néon disparatado a piscar numa rotunda. Ficai pois sabendo, ó Crianças de Saragoça, que toda a barafunda instalada em torno a vós, todo o hábito estranho que constatais agora, nada mais são que manifestações superficiais de uma coisa profunda, mas que, talvez a medo que fiqueis corcundas com o peso da verdade, os adultos vos escondem. Mas, ai!, sabeis?: nem têm más intenções, os vossos pais – julgo apenas que eles mesmo já são ignorantes.

Por isso, vós que me escutais arrebitados, ide hoje dizer a vossos pais, que há algo de profundamente errado nisto tudo, enquanto o ser humano for um macaco que teimou em não se submeter a Darwin. E como macaco, copiar uma tradição que herdou e mais não sente – e mais não lhe conhece a causa. E erguei-vos, crianças, a homens: vós que estais mais perto, porque ainda o tendes fresco na memória, do que é nascer. E ide dizer ao vosso primo de Barcelona que afinal, ah!, também ele andava enganado pela coca-cola: porque o Natal, o Natal, niños, é só – e é tanto! – a festa de um outro Ninõ que nasceu.

O Príncipe


Havia pressa minha, mas havia a contrapor, do outro lado, urgência. Parei, escutei amenamente (mau grado o frio que se faz sentir nestes últimos dias que são também os dias últimos), e ganhei felicidade em assinar o papel: tinha-me inscrito na Amnistia Internacional, em mais uma das suas campanhas de rua. No próximo domingo celebram-se 58 anos sobre a adopção pela Assembleia Geral das Nações Unidas da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Contudo, a Amnistia ainda existe – porque, infelicidade!, continua a ter trabalho.

O caso de Alexander Litvinenko persiste em no-lo relembrar. O antigo tenente-coronel dos serviços secretos russos morreu a 23 de Novembro, em Londres, onde residia, exilado, na sequência de um envenenamento, por polónio-210, no início do mês passado. Dissidente, da sua boca e da sua pena saíam fortes denúncias do maquiavelismo das cúpulas políticas russas. Alguns apelidavam as suas teses de ‘lunáticas’; mais recentemente, concentrava-se no caso da jornalista russa Ana Politkovskaia, fortíssima crítica de Putin, também ela assassinada, em princípios de Outubro, com quatro tiros no elevador de sua casa.

Não desejo repetir o que os media repetiram. Mas, vendo aquela fotografia de Litvinenko, já na fase terminal, no hospital, a minha mente teimava em descarrilar para as memórias que guardava de Yushchenko, o malogrado presidente da Ucrânia, de rosto desfigurado, vítima também ele de envenenamento, por recusar o protectorado subjugador da Rússia e olhar alto para a Europa à esquerda. Ninguém pode afirmar nada, nada pode acusar ninguém: a política tem sempre a subtileza de um pano de veludo como luva de uma mão de ferro – e ficamos restritos a enunciar factos, quando todos, nos cantos, anunciam, porque sabem, os criminosos. De resto, já não há informação independente na Rússia para dizer a verdade mesmo que alguém a desconhecesse: só na última década, 261 jornalistas russos foram mortos.

Paralelamente, no mesmo dia em que uma dessas mártires, Ana Politkovskaia, foi assassinada, Putin celebrou os seus 54 anos. José Milhazes, jornalista conhecido de alguns, que mantém um dos mais interessantes sítios da blogosfera (http://blogs.publico.pt/darussia), dava conta, in loco, das celebrações. Destacava, com ilustrações, o concurso lançado a crianças de todo o país, as quais eram convidadas a desenharem o presidente: o vencedor receberia um cachorro, irmão da cadela de Putin. O segundo premiado levaria um quimono de judo, desporto favorito do presidente, e o terceiro um manual de alemão pelo qual Putin, enquanto agente da KGB, estudara. Em meados do século XX, isto seria reconhecido como culto da personalidade.

De facto, é viva a ligação entre o chefe e o seu povo: Putin dá entrevistas, respondendo a perguntas dos internautas sobre a sua vida pessoal, compõem-se canções apresentando o presidente como paradigma de masculinidade, e o povo ama-o tanto que, na referida celebração do seu aniversário, na Tchetchénia, as autoridades organizaram uma reunião de 60 000 pessoas, pedindo que Putin altere a Constituição para que se possa recanditar uma terceira vez. Incrível!

Ao mesmo tempo, esse «povo», de acordo com a sondagem de uma rádio moscovita, concorda que o assassinato de Litvinenko foi “a realização da lei russa de combate ao terrorismo no estrangeiro”. Durão Barroso comentou, no novo cargo: «Temos um problema com a Rússia. Na verdade, vários problemas. Demasiadas pessoas forma mortas e não sabemos quem as matou.» As crianças, lá fora, no recreio, trauteiam: «O rato roeu a rolha da garrafa...».

22 December 2006

Artes Plásticas


Saiu recentemente em DVD a terceira temporada de Nip/Tuck, uma série americana de grande sucesso centrada na vida de dois cirurgiões plásticos. A série, polémica, aborda de forma inovadora a actividade destes profissionais explorando os dúbios limites éticos da sua profissão. Paralelamente, estreou na semana passada o novo reality show do canal quatro: Doutor, Preciso de Ajuda! Estou convencido que é a estação quem precisa de ajuda e dum facelift urgente.

A persistência e a insistência no modelo dos reality shows, progressivamente mais aberrantes e espectaculares que os anteriores, é algo que, mau grado a válida explicação sociológica, me começa a confundir. Certo: há a curiosidade natural, o voyerismo quase hitchcockiano, uma longa cultura de imprensa cor-de-rosa que assenta no mesmo sentimento. Também é verdade que nem todos os reality shows gozaram da mesma fama, alguns notabilizando-se pela negativa. Porém, que justifica que, ciclicamente, reapareçam? Raramente se fala da possível relação do fenómeno com a incapacidade criativa do espectador. O telespectador médio perdeu o sonho depois de ter sido criança e ter acreditado em duendes. Porque não é capaz de um exercício de ficcionalidade, porque toda a ficção surge ante ele como delírio especulativo, ele busca então os programas ditos reais ou os que reflictam prtensamente o seu real (telenovelas). Nietzsche pôs a tragédia grega vítima esganada às mãos de fenómeno análogo.

Doutor,... espelha a necessidade da aparência. O programa oferece aos seus participantes uma cirurgia plástica, transmitida publicamente: no fundo, cultiva-se o gosto que levou à morte, na semana passada, da jovem modelo brasileira Ana Carolina. Uma das primeiras concorrentes – relatava o Público – “47 anos, motard nos tempos livres, já é avó, mas acha as conversas das pessoas da sua idade uma chatice”. Aqui se mostra a hipocrisia profunda da sociedade: a candidata, ao submeter-se a uma operação de rejuvenescimento, vai-se disfarçar, com patrocínios. E, numa terra de máscaras, espantamo-nos com as declarações do primeiro-ministro húngaro de que é necessário mentir povo: somos cães da mesma raça.

Mas notai!: “No nosso programa há muita informação médica, há conversas com anestesistas, com nutricionistas, que explicam os passos tomados”, reafirma Miguel Stanley, ideólogo do projecto. Não se trata de qualquer ficção inconsistente: todos os procedimentos são cientificamente explicados, o que representa evidentemente um contributo impagável de educação pública ou até “uma forma de trabalho social”! Ai, que riso amargo!: sim, é trabalho social, porque trabalho para o social, para a aparência, para o inglês, que é português, ver.

Eduardo Moniz vem em defesa do programa explicando: “Não poderíamos passar este programa antes das 23h. Sim, porque nós cumprimos as regras!”. Por isso, pelo respeito pelas regras, é que 25% do emitido na televisão em Setembro foi publicidade e a TVI domina no valor gasto. E há regras, caro Moniz, que não se acham escritas em Diário da República algum... Essas são conhecidas pelo nome de ética. Mas “quem tem ética passa fome”. A TVI é um exercício de kitsch – mas isso é só um sinal de esterilidade. Porque, admire-se o recém-nascido!, também este Doutor,... não é mais que uma variante de um já testado estereótipo. De produtos artificiais como os D’ZRT (que precisaram de se legitimar chamando ao segundo álbum Original), passando por Inspector Max (cujo único excerto que vi, num restaurante, me convenceu da inabilidade primária do director de fotografia) até Doutor,..., a TVI chapinha de cópia em cópia, até criar pastiches sem consciência da sua essência ridícula.

Na América, há Nip/Tuck – em Portugal, Doutor,...: cada um tem o que merece.

O Processo


Quando o bicho espevitou o olho, permaneci adormecido – e guardei silêncio. Sabia em mim muita coisa e deixei que o mundo seguisse o seu curso natural. Há um prazer hediondamente cínico em rir por último: mas até o cinismo era entre os gregos uma escola de filosofia! Acolhi, pois, como um déspota a notícia dos jornais que ordenava que o Ministério da Educação repetisse apressadamente o exame de Química a uma aluna de Coimbra, cidade do conhecimento!, e que, a obter média igual ou superior à de acesso em Medicina, se abrisse nova vaga na vetusta Faculdade local. Ah!, que gozo, ah!, que espanto!

Recordo, vívido!, uma altercação na TSF, no dia em que me fui candidatar à Universidade, e o comentário de um ouvinte que afirmava que se geraria o caos se todos os exames fossem repetidos. E eu disse, deus feito: «Faça-se o Caos!» e o Caos fez-se por tribunal. Faço figas secretas agora pela desconhecida que se sentará numa sala vigiada por dois docentes e responderá certas às perguntas. E, nessa altura, se ainda houvesse honra, a Ministra demitia-se.

De um lado, pois, se erguem prometeicos exames prometedores; do outro, esgaravatam os cientistas da 5 de Outubro as suas pedagogias alucinadas e declaram eurekas!: Filosofia não terá mais exames nacionais. [Só há, coisa de somenos, cerca de 300 cursos que aceitam Filosofia como prova de ingresso.] A Ministra e a sua equipa são reencarnações, em linha directa, sem interrupção, dos juizes que condenaram Sócrates no Areópago: estabeleço definitiva a tese da metempsicose! A Filosofia é arma do pensamento: e o Governo não quer armas, e o Governo não quer pensamento: e o Governo não quer revolução! E o Governo quer poder.

O silogismo é breve: ou a Ministra é de uma ignorância tal que não consegue perceber a fundamentalidade da Filosofia e então, pobre!, falando como Cristo, perdoemos-lhe, porque não sabe o que faz; ou a Ministra é suficientemente lúcida para entender aquilo que está em jogo e, então, é claro a intenção propositada e maléfica nisto tudo. Não há inocência na política: e todos têm as mãos cheias do sangue de Lady Macbeth. Repito: está em curso um processo de estupidificação.

E não nos deixemos enganar pelas mentiras! Ontem, como hoje, os “cérebros” quando não fogem, são vandalizados. Prova disso é a recentíssima demonstração dos bolseiros da área das Ciências frente ao Parlamento: alheados do sistema de Segurança Social, estes jovens – tantos deles, demasiado deles! – vivem em absoluta precariedade, não tendo assegurada reforma ou não podendo, sem grande luta, conseguir um pequeno crédito numa instituição bancária. Não me cabe aqui discutir que outro sistema de bolsas pode ser reinventado, cabe-me assegurar que seja respeitada a dignidade destes manifestantes – e não que sejam achincalhadas pelo Estado.

A nossa educação é kafkiana, isto é, não tem sentido nenhum. Os velhos gregos primavam por que as suas crianças desde cedo fossem cultivadas na música, na língua, na ciência e na filosofia. A primeira, ninguém sequer se levanta para discutir a sua inclusão obrigatória a substituir ridicularidades como Área de Projecto; a língua, com a nova terminologia, pode ter ficado mais cientificamente correcta, mas aparece hidra às crianças que se têm de fazer Hércules para a vencer; quanto à ciência e filosofia, já falámos. Estamos cada vez mais distantes do tempo absoluto de Sophia, esse tempo que aprenderíamos do exemplo dos helenos. No último Jornal de Artes & Letras, sugeria-se um referendo aos currículos: estou plenamente de acordo. Mais, faça-se um referendo à Ministra e sua equipa! Mais ainda, faça-se um referendo à interrupção voluntária do Governo!

Negativo


A 13 de Outubro – esse dia de azar, sexta-feira – a Academia do Nobel (dispensa-se a leitura à la Saramago) galardoou Muhammad Yunus com o Prémio Nobel da Paz 2006: sorte grande dos pobres! A 2 – o único canal que vale a pena ver, agora que o Dr. House acabou na TVI – emitiu sábado passado um documentário sobre a revolução, como dom, que este professor de economia ofereceu aos miseráveis (num tempo em que Vítor Hugo já morreu). O conceito de microcrédito, patenteado por ele, é tanto mais fascinante quando compreendemos que não se trata, como inicialmente seríamos tentados a fazer, habituados que estamos, de um donativo de caridade, mas sim de um verdadeiro e formal empréstimo, inclusive com juros. Eis que o capitalismo – esse bicho amorfo que uns viam castrado de fazer bem – se mostra, esplendoroso, pela coisa simples, mas nunca antes experimentada – a solução esperada.

É notável o relativo pouco destaque que alguns meios de comunicação social deram ao anúncio norueguês, mas tristemente mais espantoso é como pessoas com a têmpera de Yunus permanecem ostracizadas pelos media, por escolha destes últimos: em contrapartida, uma revista de há duas semanas noticiava com importância que José Castelo Branco tinha sido contratado para um circo. É que Yunus não devia ser propriamente desconhecido: só este ano, já tinha sido galardoado com o Prémio da Paz de Seul e o Prémio Madre Teresa. Entristece-me mais ainda, contudo, saber que, para o ano, poucos se recordarão do nome deste filantropo – para não querer ter de admitir que, se um inquérito fosse feito, provavelmente já agora quase ninguém reconheceria o nome Muhammad Yunus no nosso país – país em que, de resto, pouco valor parecem ter os direitos humanos, quando, numa recente sondagem do Público, 41% dos portugueses é a favor da pena de morte para homicidas e dois terços defendem a legalização da prostituição: nitidamente, ainda não viram Transe, o novo filme de Teresa Villaverde.

Porém, hoje é o dia em que a minha esperança não se abala. Se há quinze dias, em «Fotografia», constatava a naturalidade do mal, hoje é o tempo em que revelo a inversão das coisas, e da fotografia fico com o «Negativo»: a possibilidade, tão real quanto a outra, de o ser humano ser agente de bem. Provas, como dons, apresentam-se, para quem as queira detectivar: esta semana que passou foi a Semana para o Mundo Unido, promovida pelos Jovens para a Unidade; este domingo em que redigo a crónica, é Dia Mundial das Missões; e, no anterior, pomposa e grossa, mas justa e merecida, assistimos todos, concelho, à magna celebração dos ínclitos cem anos da Santa Casa da Misericórdia da Mealhada – realidade tão próxima (e tão necessária) de nós que mais me ratifica esta certeza da bondade.

Algures no documentário já aqui referido dizia-se que a dignidade humana passa, entre outras coisas, por não ser pobre. Numa sociedade como a nossa, em que as crianças vilipendiam os pais no peditório de um 3G – e, maior agravo! – os pais as satisfazem, essa dignidade passa também por não ser demasiado rico, ou, antes, por saber pôr a riqueza nas coisas certas e duradouras – e saber dar, numa cultura de ter. Já na homilia da missa de 15 de Outubro, D. Albino Cleto apontava essas palavras no Evangelho do dia. Podemos sempre indagar que diferença fará o nosso contributo, mas aí são válidas as palavras, sobre o microcrédito, com que Yunus fechou o documentário e com as quais termino: «Quando os irmãos Wright voaram com o seu avião pela primeira vez, este manteve-se no ar por 20 segundos e percorreu 36 metros. Na altura, dissemos: “E então?”. Mas isso mudou o mundo. Seres humanos voaram pela primeira vez. Nós somos o avião dos irmãos Wright. Estamos a percorrer apenas 36 metros.»

Fotografia


As crianças vão, levadas num jipe quasi-militar, cinzento. O rapaz, mudo, com a sombra que lhe lança o chapéu de palha maior que a cabeça, esconde os olhos, fixo no que deixa enquanto o veículo arranca. O nariz é a parte mais visível e distinta, estreita, sulcando o rosto. Do lado esquerdo, a rapariga, com a sua toca vetusta, curiosa criminologista, concentrava-se na cena, incompreendendo. E, ao centro, escondida dentro, a garota, assustada, comprimida, com os dedos de fora segurando ferozmente a janela traseira do transporte, observando, receando e receosa, de olhos muito azuis. Há um certo verde de campo como pano de fundo baço.

É a fotografia – que ilustra a notícia.

As crianças fazem parte da comunidade amish, onde a semana passada um homem, aparentemente comum, assassinou meticulosamente várias alunas que tomara como reféns na escola local. O massacre foi o terceiro em menos de uma semana nos EUA, estes ainda precedidos do mediático tiroteio numa escola no Canadá. Há um qualquer absurdo em todos estes cenários. Há um mal, puro e inteiro. Podemos invocar causas psiquiátricas que justifiquem este acto que firmemente pretendemos rotular de irracional. Porém, quanto mais remetemos a explicação destes comportamentos para a área da loucura, menos nos consciencializamos da horrorosa verdade da sua lucidez. Todos estes ataques não resultaram de um delírio momentâneo do criminoso, mas de profunda preparação e cuidado.

O ser humano lida mal com a sua faceta obscura, crendo-se civilizado e racional. Veja-se o caso de Hitler, sistematicamente achincalhado com problemas psicológicos na busca das pessoas de uma explicação para a ditadura: o ditador era, na verdade, bastante normal – e parte do «pecado» do excelente filme A Queda foi tê-lo retratado assim. O Mal é, verdadeiramente, uma escolha, feita com a mesma dose de consciência com que, alternativamente, uma pessoa pode alinhar por um comportamento dito concordante com as normas sociais. A bondade, a correcção, não são essências, fixas; mas estados. Entrar numa escola a disparar é algo que pode acontecer a qualquer um de nós, sem qualquer razão justificativa (até porque não a pode haver). Em comentários ao seu cru Elephant, uma reconstituição parcial do massacre de Columbine, o realizador Gus Van Sant, que nunca, ao longo da película, indica uma causa concreta para o que aconteceu, explicou que a primeira cena, em que se filmam, longamente, nuvens, era uma forma metafórica de levantar a hipótese de o móbil dos assassinos não ser outro que o tempo nublado. De facto, tudo serve de justificação – porque a não há, senão o capricho.

Repito, porque é essencial a compreensão desta verdade: não estamos perante psicopatas. Um jogo gratuito na net permite ao utilizador tomar o lugar dos assassinos de Columbine e reproduzir a matança. Este RPG teve 40.000 downloads: vamos acreditar que todos os utilizadores que o descarregaram sofrem de terríveis e ominosos distúrbios psicológicos? Contudo, não caiamos na falácia de julgar então estes jogos como os responsáveis pelos instintos violentos dos jovens: eles vêm-lhes responder, o que é diferente. A forma fácil como se desliza para o «lado negro da força», para usar a gíria da Guerra das Estrelas, é ilustrado brilhantemente em obras como o aterrador O Deus das Moscas, do nobel Golding.

Aceitar, parafraseando Hannah Arendt, a banalidade do mal é custoso – e mais fácil de não ser feito. Filosoficamente errado, o povo associa ao normal o correcto – e o que difere olha de soslaio e condena. Mas não há qualquer relação de causalidade, menos ainda de sinonímia, entre os dois conceitos. O Mal pode ser banal – mas não menos absurdo, não menos horroso, não menos destruidor – e, ai!, há esse lado que não escolhe: o lado da vítima inocente. «...as crianças, Senhor,/Porque lhes dais tanta dor?!...» Deixai o jipe levá-las, deixai...e elas não vejam o horror!

Cons-pirados


Fui comprar o jornal. Ao chegar à tabacaria, um homem discutia avidamente com o vendedor, mas a matéria não era o regatear de um preço. Dizia o comprador que o 9/11 não era mais que uma conspiração bem organizada pelo governo americano, já que um edifício daquela altura, comprovavam-no as afirmações de engenheiros, não podia ruir com o simples embate de um avião, como o demonstravam documentários agora finalmente revelados. Outro senhor ao lado ratificava a postura de desconfiança, expondo as semelhanças óbvias entre uma implosão propositada e a queda das torres. E o vendedor, coitado, não assentia nem negava, porque o cliente tem sempre razão, até quando a não tem.

Este episódio é sintomático de tantas conversas que tenho escutado entre amigos desde que a RTP transmitiu o documentário Loose Change (cuja tradução portuguesa do título, lamentavelmente, desconheço), que emitiu mais três vezes, mostra da sua popularidade. Quando o vi na 2:, alertado por um amigo, acabei por abandonar o filme, cansado de tanta teoria tola. Não o levei a sério, mas mais como um exercício de humor negro pelo canal público. Quando, contudo, membros da comunidade muçulmana – que de modo algum considero representativos da opinião da mesma, no Prós & Contras que opôs Soares e Pacheco Pereira, baseados em Loose Change apresentaram as suas dúvidas tímidas quanto à veracidade do 9/11, entendi, enfim, o alcance daquele pequeno filme. Amigos meus começaram também a pôr em questão a versão oficial, alguns rendendo-se mesmo em absoluto ao documentário e suas «provas».

Se Pacheco Pereira condena a RTP por ter posto no ar tal peça, eu não a censuro, pois, inserida numa série de documentários sobre o mesmo assunto, representou, para aqueles com distanciamento crítico, um lado, ridículo, mas existente, do 11 de Setembro. Porém, vendo a confusão que originou, tenho de confessar que entendo Pacheco Pereira. Esta teoria é semelhante às que negam que o homem alguma vez esteve na lua: ambas inconsistentes. Satirizando, eu e o amigo que me avisara do documentário juntámo-nos para filmar uma tese que já anteriormente apresentei neste espaço, a de que Antero de Quental é o verdadeiro responsável pelos atentados – julgo, sinceramente, que a nossa produção é tão credível como aquela que a 2: revelou e enviaremos esperançosamente o nosso filme para a emissora pública.

Brincadeiras de parte, é preocupante a facilidade com que as pessoas caíram na armadilha, pelo que urge desmontá-la. Se nenhum avião embateu contra o Pentágono e se o voo 93 nunca caiu na Pensilvânia, então, quem choram os familiares das vítimas? E onde estão aqueles que, assim sendo, não morreram? O documentário afirma que os terroristas não estão mortos, mas não explica o paradeiro dos tripulantes, supostamente, por necessidade lógica, também vivos. Mais, como pode a queda das torres ser devida a uma implosão premeditada vinda da cave dos edifícios (como pretende o documentário) se a queda destas sucede não a partir da base, mas a partir do topo, como é facilmente observável? Para além disso, se o 9/11 não é mais que uma conspiração americana, foram então também os americanos os responsáveis pelo 11 de Março espanhol e pelo 7 de Julho inglês? Isto para partilhar apenas as indagações mais pertinentes.

Uma coisa é afirmar que o 9/11 serviu como pretexto à invasão do Iraque – como o faz o Fahrenheit 9/11 de Moore – outra, que os atentados foram provocados para servirem de desculpa a essa mesma invasão. Eu, que discordo na generalidade da política levada a cabo por Bush e que continuo a declarar que a guerra do Iraque foi um erro, não deixo que as minhas opiniões me conduzam a uma deturpação do real desse nível. Só se estivesse (cons)pirado...

Elogio da Silly Season


É Setembro, com a pena que isso sempre acarreta. Universalmente, o fim das férias. Durante um mês, houve o sabor e a sabedoria de ser livre: arranjou-se um romance light, foi-se ao cinema e passeou-se amplamente à noite. Os mais jovens arranjaram um flirt. Os jornais, sinceramente, eram vagamente despachados num quarto de hora, vazios de notícias. Estupidificantemente, era-se capaz de ficar a ver, seguidos, os três filmes de sábado à tarde. E, no final do dia, estávamos, verdadeiramente, cansados. Era a silly season, a estação estúpida.

Principiou-se, então, a rentrée em seriedade da sociedade. Na política, a Festa do Avante! , ainda, confessadamente, um misto dos dois tempos, do ligeiro e do grave, intermitente entre concertos e jerónimos. A Festa do Pontal, coisa esquisita, montada em praia, sem líder. O BE, caminhando peregrinamente. O PP, longe, na Madeira. E o PS, num one-man-show, no Porto. A rentrée é, no mínimo, uma coisa esquisita.

Por fim, a única coisa pela qual a maioria dos portugueses se interessava minimamente, também correu mal, pondo sérias dúvidas à sustentabilidade deste país. Nas comemorações do 11 de Setembro, tão pródigo em teorias da conspiração, eis que uma nova e mais imensa e mais terrível cabala se ergue. O seu herói e o seu vilão: o Gil Vicente! Antes sequer que interesse identificar o culpado, o que causa, de imediato, espanto e choque no clamor de espadas que atravessa o futebol é a própria situação em si: é surrealista. Esta, conjugada paralelamente com o «Apito Dourado», veio, sobretudo, desvelar, pública e ostensivamente, a decrepitude que enche o futebol, cujo nome é: mesquinhez.

Esta vem mascarada de soberba, mas é apenas, verdadeiramente, o seu oposto. Ainda recordo de Luís Filipe Vieira afirmar, aquando da sua candidatura, que, dentro de três anos, o Benfica seria o maior clube do mundo. E foi eleito. Na realidade, política e futebol são bem mais parecidos do que aparentam: promete-se e ganha-se. Porém, o que incomoda é o orgulho destemperado e evidente convencimento com que os dirigentes dos clubes se apresentam. Como se pretendessem deuses, vêem-se acima das acusações que lhes tecem – e conseguem-no.

Não sendo o futebol o meu desporto favorito, não deixa, nem que não seja pela sua predominância televisiva, de ter um significado para mim. Ora, precisamente como apreciador, desgostam-me todas estas perturbações no decurso normal da Liga por uma mesquinhez tamanha como a dos gilistas que, pugilistas, a todos se opõem. Uma vez mais, mais do que a coisa em si, interessa-me o modo dela. Impressiona-me mais fortemente não tanto a decisão que os sócios do Gil tomaram na quinta passada (de resto, previsível), mas a forma como, de facto, tão facilmente se galvanizam multidões com demagogia. Ao que sucedeu naquele pavilhão aplicaria eu, verdadeiramente, o rótulo da alucinação colectiva. Não é de estranhar que, do mesmo modo, associações xenófobas e extremistas poluam as claques juvenis dos maiores clubes. Fenómenos distintos, a natureza da sua origem é semelhante. Numa altura em que as pessoas não conseguem ter orgulho no seu país (e, brevemente, nem no país sob forma da selecção nacional, se a FIFA chegar à punição) inevitavelmente deslizam-no, sob forma exagerada, para outro lado. O cómico é que isto é trágico.

Silly season, o Verão? Silly season Setembro!

Na Rota da Europa


Viajei até à Galiza celta, dois dias, para celebrar o início de Agosto. Levei, acompanhado de assuntos pendentes, o telemóvel, para a necessidade desconhecida. Rompida a fronteira hispânica, logo a operadora de rede, prestável, se dedicou a me informar do facto. Adolescentemente, não me apercebi da verdadeira substância do aviso automático, omnisciente. Só depois de atender uma anémica chamada e registar, em consequência, um saldo anoréxico, entendi, pleno, o significado do termo estrangeiro roaming. Independentemente das promoções que as operadoras possam anunciar, este é fantasticamente absurdo no espaço europeu.

Chocado, recordei-me duma leitura antiga, algures no último semestre do ano, de uma proposta, a discutir no Parlamento Europeu que visava, precisamente, a extinção do malfadado roaming. Calculava-se mesmo que, por volta da semana final de Julho, já estivesse em vigor a medida – pela minha experiência, apercebi-me, penosamente, que não. Este é apenas mais um dos exemplos, tão quotidianos, da Europa inacabada.

A UE é, possivelmente, o facto político mais miraculoso da segunda metade do século XX, independentemente de todas as crises porque passou (e passa hoje). Pessoa escreveu, nas suas reflexões sobre a I Guerra Mundial, que a civilização europeia assentava exactamente em três pilares comuns (o Poeta nunca definiu com precisão um quarto, que ele a estes juntava): a Cultura Grega, a Ordem Romana e a Moral Cristã. Que o conjunto de nações hoje tão amplo que se reúne sobre o mesmo abraço tenha, durante séculos, digladiado-se incessantemente é motivo de estranheza, perante esta inequívoca herança comum. Foi o reconhecimento desta que me converteu num acérrimo defensor da cidadania e do projecto europeus.

É, pois, com tristeza que me apercebo das falhas desse edifício, como a do mesquinho roaming. Mas fora todo o mal europeu esse! Quando um bom amigo meu me confessa que, no dia do mancebo, o militar que o acompanhou se lamentou que havíamos perdido parte da nossa identidade nacional com a adesão ao Euro; quando, numa aula de História, discutindo precisamente tal facto, vejo uma voz feroz contra a nova moeda; não posso senão sentir desilusão perante um nacionalismo caquéctico, primitivo e medricas.

Do mesmo modo reajo e me exalto ante a cruzada das Juventudes de esquerda contra o Processo de Bolonha, como este fora um apocalipse universitário. Eu propunha até que, na mesma linha, esses grupos iniciassem manifestações contra o Projecto Erasmus, ou, ainda mais fiéis a tão nobres princípios, contra os estudantes portugueses que partem para estudar Medicina em Espanha: acaso não serão estas duas situações prenúncio de Bolonha, na permutabilidade entre universidades que pressupõem e que esta reforma vem amplamente facilitar, na uniformização europeia dos cursos que procura? Tudo quanto possa evadir os portugueses de Portugal só pode ser favorável.

Comemora-se este ano a entrada do nosso país na então CEE. É uma oportunidade única de se rever, em perspectiva positiva, esta caminhada. O fenómeno não é só português, mas sendo eu português (e mais europeu), é sobre Portugal que me debruço, constatando que ainda não soubemos acolher devidamente a ideia europeia. Enquanto assim não suceder e guardarmos o cepticismo inglês ou a negação francesa e holandesa, a Europa não se constituirá, jazendo incompleta, como sonho bonito – e arruinada. ■ o corvo


O Cedro (Ardendo)


A actual situação do Líbano sitiado sentou-se connosco às refeições. As televisões passam os desenvolvimentos da crise do Médio Oriente, intermitente entre uma novidade desportiva e uma politiquice nacional. Entre os que vêem, há os que ignoram – como ignoramos todos já, pacificamente, os mortos iraquianos; há os que lucidamente compreendem as implicações do conflito – como a subida dos preços do petróleo; e os que, como eu, olham ineditamente, preocupados pela presença de um amigo no epicentro do combate.

O frustrante na guerra que neste momento sacode o Líbano é o estado de inocência e impotência do país em causa, massacrado numa guerra que não é a dele. Num blogue libanês chamava-se a atenção para as declarações de Bush «De forma a poder lidar com esta crise, o mundo tem de lidar com o Hezbollah, com a Síria e continuar a trabalhar para isolar o Irão.» O autor do blogue interrogava-se, chocado, onde, neste discurso, aparece a palavra Líbano. Semelhantemente, deparando-me com um artigo de Pacheco Pereira, notei que, em três quartos de uma página A3, só uma vez o Líbano é referido, sem ser sequer, na alusão, o objecto da mesma. A pergunta que emerge é, de facto, porquê o Líbano.

Ninguém concebe que um país, que tão recentemente passou por uma revolução política – a Revolução dos Cedros – possa ter um governo suficientemente forte para expulsar uma organização essencialmente terrorista do Sul do seu território – sobre os problemas enfrentados por estes novos governos, basta olhar a crise que a Revolução Laranja atravessa na Ucrânia. É utópico responsabilizar o governo do Líbano pelas acções do Hezbollah – porém, é isso que Israel já afirmou procurar.

No jogo da política de que todos, meros cidadãos, somos somente peões, o Líbano aqui é só um bode expiatório, o palco de embate de potências alheias. Quem está por detrás do Hezbollah é a Síria. A prova de que é este, verdadeiramente, o país que deveria ser responsabilizado é a confissão de Bush, na cimeira dos G8, julgando os micros desligados: «O que eles precisam é de fazer com que a Síria convença o Hezbollah a parar de fazer esta merda, e acabou». A Síria, não o Líbano. Julgava os israelitas mais cultos que Bush em Geografia.

Pode-se argumentar que é no Líbano que está alojado o Hezbollah. Porém, o país que Israel, em sua defesa, possivelmente deveria legitimamente bombardear seria a Síria (ou o Irão – o único que, verdadeiramente, está a ganhar com tudo isto, com as atenções a serem desviadas do seu programa nuclear). É certo que os campos de treino do Hezbollah estão no Líbano – mas tal não justifica a necessidade de destruir um país fénix que, pela abundância de guerras que o trespassam, continuamente se vê forçado a reconstruir-se. De facto, de que servem campos sem dinheiro (Síria)? De que servem campos sem instrutores (Irão)? A acção mais espectacular do Hezbollah até agora, segundo Israel, deve-se à presença de Guardas da Revolução iranianos no terreno.

Uma sondagem estranhamente equilibrada no site da Al-Jazira procurava determinar o responsável pela crise – só um país aparecia absolvido, com 0% dos votos: o Líbano. Não que uma guerra contra a Síria ou o Irão deixasse de ser preocupante. Uma guerra é sempre um acto lamentável: pode ou não ser reprovável – e, tendo em conta o alvo e o género de ataques, esta é, indubitavelmente, uma das que encaixa na segunda categoria.