27 July 2008

A Palavra & O Poder / O Poder das Palavras

Logo na primeiríssima crónica deste ano escrevi que as eleições americanas seriam o acontecimento mais importante de dois mil e oito. As políticas dos EUA atingem-nos a todos (o Iraque tem alguma responsabilidade no preço do petróleo que nos inflaciona a gasolina). Contudo, mantive-me calado sobre o assunto. Eis, porém, que agora Obama veio à Europa. Esteve na semana passada em Berlim, onde foi recebido por mais de duzentas mil pessoas. Muitos lhe louvaram o discurso; outros, contudo, repetem que são apenas palavras bonitas.
Quando se fala de Obama, o seu exímio manejo da palavra é apresentado como fraqueza. O discurso político actual, de facto, fundamenta-se não tanto na palavra, mas muito mais no número. A estatística foi a ciência que triunfou e essa matemática corrompida despejou as palavras do seu significado, só pelo pecado delas não serem números também. No império da imagem, a própria palavra foi reduzida a esse estatuto superficial. A política, em última análise, destruiu a língua, de tanto ter escavado às palavras o seu significado real, para, vazias, as usar a seu capricho e sem que implicassem um compromisso. Por isso, ninguém acredita no que dizem os políticos, porque não há nada ali para acreditar: as palavras estão ocas.
O milagre de Obama foi ter reinventado a língua, como se cada palavra nascesse quando ele a pronuncia. Em Obama, as palavras são o que são, com todo o seu peso. O homem moderno esqueceu-se que o poder da palavra é infindo: Deus criou o mundo falando. Obama voltou a ancorar a palavra na realidade, devolvendo-lhe a sua essência, o seu significado. Daí o sucesso da sua campanha: já não nos recordávamos do que era a verdade a palpitar debaixo da pele das palavras. “Palavras, palavras, palavras”, assim resmungam os detractores de Obama. Este é um mundo mais pobre, este a que chegámos, este, dos ateus da palavra. Percebe-se. Vai-se a uma livraria e os romances, na sua maioria, não dizem nada, são fracos, mas volumosos, todavia. A palavra enquanto processo de enunciação e revelação da verdade oculta das coisas e da vida tornou-se uma arte pouco praticada. Políticos prometem o que nunca quiseram cumprir.
E eis que chega alguém que nos recorda a função primordial do verbo e nos convence do poder verdadeiro das palavras verdadeiras de mudarem o mundo. Change: mudança – é essa a palavra em que Obama permanentemente insiste. Quando se repete muitas vezes uma mesma palavra, duas coisas podem acontecer: ela fica descalça de todo e qualquer significado que possa ter, como sucedeu na política moderna, ou concretiza-se, porque a palavra é mágica (é nisso que acreditam as crianças, como dizia possivelmente Proust). Só quem odeia a poesia pode não gostar dos discursos de Obama e, rancoroso, criticá-los pela sua força. Obama recolocou a palavra, inteira e concreta, no centro da política, onde ela antes era só uma muleta.
“We are a people of improbable hope”, “Somos o povo de uma esperança improvável”, confessou o candidato democrata, em Berlim, na semana passada, naquele que nem foi um dos seus discursos mais brilhantes, mas onde, porém, pululavam pequenas pérolas como esta. Tudo é improvável na campanha deste homem: até a sua vitória está longe de ser certa. É improvável também que Obama consiga levar a bom porto todas as suas propostas ou que cumpra com sucesso tudo quando promete: quando, porém, fala, o que diz, di-lo convicto e sem disfarces. Quando Obama diz emprego diz emprego e não diz votos. E isto é uma revolução. Qualquer que seja o resultado das eleições em Novembro, Obama conseguiu já o que eu teria considerado impossível para os homens de hoje: restaurar a fé perdida nas palavras. Obrigado.

Persona

Quando visitei Paris, no Verão passado, recordo-me de, ao passar em frente ao Hôtel de Ville (o cenário em que se beijavam os dois amantes da famosíssima foto de Robert Doisneau), se encontrar aí um poster gigantesco com a imagem de Ingrid Betancourt (a França sempre fez do seu resgate uma causa nacional). Nada me fazia adivinhar que, quase um ano mais tarde, Ingrid conheceria, de facto, a liberdade. No meio do regozijo geral, só uma voz se calou: a do PCP. No seu primeiro comunicado à imprensa, não se encontrava uma única palavra de contentamento pelo fim do cativeiro dos quinze reféns. Na Assembleia, recusou-se a subscrever o voto de congratulação aprovado pelos demais partidos, propondo um outro, da sua lavra, insistindo em não condenar as FARC, em virtude da duvidosa amizade que os comunistas mantêm com a guerrilha colombiana, por ambos partilharem a mesma ideologia marxista.

Não me interessa aqui zurzir no PCP, que assim se descredibiliza e desonra a esquerda, mas antes reflectir sobre a forma como a pessoa saiu do centro da discussão política, para ser suplantada pelo fundamentalismo ideológico ou pelo seu oposto, o relativismo da conveniência (também chamado Realpolitik). O PC cometeu, dos dois, o primeiro pecado. Acima de toda a ideologia está o homem (neste caso concreto que discutimos, a mulher). Nenhum valor é absoluto, porque sujeito à régua da pessoa: “O homem é a medida de todas as coisas”, dizia bem Protágoras. Honra, verdade, justiça: nobres que sejam – e são – estes valores, devem cair aos pés da pessoa, a quem devem servir. Até Deus, neste particular, se inclina ante o homem: a incapacidade de o perceber foi o que esteve na base desse erro colossal que foi a Inquisição, em que se julgou justo matar por crime de lesa-divindade (o mesmo mau juízo o fazem hoje os radicais islâmicos). De igual doença e cegueira morre o capitalismo, que, com a sua tónica no lucro, perdeu a pessoa para ter a máquina (estava tudo na 25ª Hora, de Gheorghiu – urge reler!).

O segundo pecado que apontámos não é, contudo, menos grave que o primeiro. Apagar a pessoa do discurso político em função de conveniências & convivências é igualmente trágico. É a isso que o mundo, por exemplo, tem vindo a assistir no caso do Zimbabwe (e também aqui o PCP foi o único partido do Hemiciclo que se absteve aquando da aprovação de um voto de condenação da situação política daquele país). Dias depois das mais que fraudulentas «eleições» no país, os líderes africanos receberam Mugabe, o «novo» presidente (esse mesmo que Sócrates convidou para a Cimeira EU-África), no Egipto, tendo o presidente do Gabão afirmado que “acolhemos Mugabe como um herói”. Percebe-se a condescendência: o autor da afirmação já se encontra ele mesmo no poder há quarenta e um anos. Entretanto, soube-se que os EUA usaram em Guantánamo técnicas de tortura chinesa e que os guardas tiveram formação específica sobre as mesmas. A UE, há coisa de quinze dias, aprovou a Directiva do Retorno, para controlar a imigração, de uma severidade impensável, para escorraçar aqueles que, mais e mais, contribuem para a sua construção (muito literalmente).

Neste vomitado de notícias, dá vontade de perguntar: e as pessoas? Que silêncio sobre os métodos ilegais de Mugabe pode calar a fome e o sangue dos zimbabwianos (ou o das vítimas do Darfur, cujo governo assassino é apoiado por essa China a que vamos agora todos lamber as botas nos Jogos Olímpicos)? Como é possível que os guardas de Guantánamo vissem à sua frente terroristas, mas não pessoas, impossíveis de serem torturadas? Como não vê o Parlamento Europeu o desespero daqueles que arriscam tudo por uma esperança chamada Europa e os recambia de volta para os seus países, como se tratassem de produtos com defeito que se devolve à fábrica? Perderam-se, na política, as pessoas. Só há já números, palavras, abstracções. Não entendo não entendo não entendo. Como é que chegámos a isto, meu Deus? Como é que saímos disto, meus homens?

04 July 2008

Os Dias da Ment-ira

Há muito – tenho já saudades! – que não pratico o meu hobby favorito: atacar a excelentíssima Ministra da Educação e a sua trupe iluminada. Perdoe-se-me a crueza dos termos, politicamente incorrectíssimos, mas “a ira tem, porém, seus privilégios”, como escreveu Shakespeare no Rei Lear. Estes, contudo, mais que os dias da ira, são os dias da mentira (e não é abril, sequer). No requiem pela educação, a furiosa secção do dies irae (na cabeça ribombam os acordes de Mozart) foi substituída, parece, pelo dies mendacii, o da mentira.
A política tornou-se, de facto, a arte de bem mentir. A expressão peca por redundância: toda a arte é fingimento (“O poeta é um fingidor”, dizia Pessoa), mas, como explicava a protagonista de V de Vingança, o filme: “Os artistas utilizam mentiras para revelar a verdade enquanto os políticos as utilizam para esconder a verdade”. A grande vantagem da mentira hoje é ser fácil demonstrar cientificamente que é verdadeira. Já Sócrates, esse heterónimo de Platão, dizia no Hípias Menor: “o mesmo homem que mente é o que diz a verdade”. E assim a Ministra proclama: foram reduzidas de maneira extraordinária as negativas nas provas de aferição. E esquece-se: isso está longe de se traduzir num maior domínio da disciplina pelos alunos, antes reflecte uma simplificação excessiva das provas, como critica a Sociedade Portuguesa de Matemática. A Ministra vende-nos uma verdade falsa (só um tempo como o nosso podia ter engendrado este paradoxo lógico). As estatísticas, barro fácil de moldar conforme mais sirva ao oleiro, são apresentadas como espelho do real, quando nem espelho nem real são: são caricatura.
As estatísticas são hoje o bunker do governante, que nele fechado vai ignorando a cidade que se desmorona à sua volta. Hitler, nos seus últimos dias, enterrado debaixo de terra entre paredes e corredores de cimento, movia divisões imaginárias no seu mapa de guerra: assim age o político, armado dos seus números, geografias de uma realidade imaginada, falando de um mundo fantástico, irmão da Terra-Média de Tolkien ou da Nárnia de Lewis. Pouco importa que, na prática, muitos alunos pouco ou nada saibam; o importante é assegurar o seu “direito a ter sucesso”, como lhe chamou Margarida Moreira, Directora Regional de Educação do Norte, a responsável pelo badalado caso Charrua, no ano passado. Por isso, recomenda que se afaste da correcção das provas “aqueles professores que têm repetidamente classificações muito distantes da média”, o que, neste contexto, significa, naturalmente, os mais exigentes.
Creio que tanto esmero não seria necessário: os exames já são, em si mesmos, assaz simples, como várias vozes têm confirmado. Importantes são os resultados, nem que para isso se recorra ao facilitismo. O lema destes novos pedagogos – devo escrever pedabobos? – parece ser o velho “laissez faire, laissez passer” – deixai fazer, deixai passar. É uma política coerente para um governo liderado por um primeiro-ministro que adquiriu a sua licenciatura da forma por todos conhecida. Ao contrário do que muitos então disseram, esta não é uma questão frívola, antes revela uma forma de ser, onde o que conta é o título, o grau, o diploma, o inglês técnico.
Veja-se a mirabolante ideia da Ministra de agora instituir um Dia do Diploma, a saber, dia doze de Setembro, em que se procederá à entrega dos certificados aos alunos que tenham concluído o Secundário no ano anterior. Trata-se da importação de uma tradição americana, bem conhecida de todos por causa dos filmes. Depois das sorridentes e televisivas entregas de computadores, a entrega de diplomas. Há-de ser giro fazer uma festa e gastar mais dinheiros públicos a distribuir papéis aos alunos. A mentira, Deus!, é uma coisa tão alegre.

Senhoras e Senhores, o Apocalipse!

Tive a ocasião de, na semana passada, entre exames e trabalhos, ler um dos clássicos da nona arte, Watchmen, de Alan Moore e David Gibbons, evereste dos comics americanos, desconstrução moderna, de realismo bruto, das estórias de super-heróis, obra cuja grandeza nem eu mesmo, por ora, consigo apreender totalmente. Gostaria de lhe dedicar a crónica, mas seria difícil justificar essa escolha egoísta perante o leitor, com todos os acontecimentos da semana passada. A crónica, porém, poderia bem copiar o início da BD, com uma estranha personagem desfilando um cartaz avisado e avisando, a lançar o tom do que se segue: o fim está próximo.
Quem me conhece, sabe como, mascarado de Nostradamus, prevejo regularmente para 2052 o fim do mundo. Conto a anedota com sucesso em vários jantares de gala, mas ninguém me acredita e em vão prego a minha escatologia barata. Esta consciência permanente do fim, dizia-o Steiner, é dos nossos traços mais distintivos enquanto europeus: mas, coisa triste, parece que hoje já não há muita gente interessada em ser europeu – perguntem aos irlandeses. Sócrates, abatido, chora em São Bento: lá se foi o tratado “porreiro” que era “fundamental para a minha carreira”. O não irlandês cria, de facto, uma situação embaraçosa: se, ignorando o referendo, os líderes europeus resolvem (e parece ser isso que se cozinha) avançar com o Tratado na mesma, mais razão terão os críticos do texto quando rabujam contra a falta de democracia no processo de ratificação do bicho, que dizem amamentado em secretárias ministeriais, longe do povo. Por outro lado, a Europa, obesa de vinte e sete países, precisa de agilizar as velhas instituições, para bem de todos eles, e Lisboa era uma efectiva possibilidade disso, quero crer. Na ressaca do referendo irlandês, conversava com um amigo meu, poeta e lúcido, desgostoso com o resultado, sobre que futuro a partir daqui para o projecto europeu, sem conseguirmos achar respostas ou consolos. No meio disto tudo, a Europa, cansada, velha, fuma um cigarro – e espera, ainda mais.
Portugal, porém, provou outros aperitivos do apocalipse. A paralisação dos camionistas, tivesse durado um pouco mais, teria deixado provavelmente o país sem pernas para andar, ou noutra perspectiva, precisamente apenas com as pernas para andar, de carro parado na garagem. Sem carta de condução e hibernado em casa a estudar para os exames, não notei as prateleiras vazias nos supermercados ou as filas para abastecer nas bombas: tudo me chegou pela televisão. Pouco me importa aqui discutir a legitimidade do protesto, mas não posso deixar de sublinhar a incompetência do governo e sua resposta tardia, demasiado tardia. Se não me demoro demais neste ponto é porque outro é o meu intuito. Por ora, ainda que nada lesta, a actuação do governo conseguiu apaziguar os ânimos e adormecer a situação. O problema, porém, será daqui a uma década e meia, mais ou menos, altura em que o preço do petróleo disparará não por causa da especulação, como agora, mas sim por, pura e simplesmente, o ouro negro começar a escassear. Um qualquer comentador, que a memória não me deixa recordar quem era, perguntava no outro dia que fizeram os governos desde o primeiro choque petrolífero, em 1973, para evitarem que, no futuro, se conhecesse a mesma situação. Seria injusto dizer que nada foi feito, mas ainda há muito, muito a fazer – e pouco, pouco tempo.
Outros sinais do apocalipse: no Zimbabwe, onde o povo morre à fome, a mulher do presidente gasta mais de 50.000€ em compras, na Itália, durante a cimeira mundial sobre a crise alimentar (piada negra do destino). Leio tudo isto e desanimo, confesso. Há quem diga que sou um pessimista incurável (e insuportável, também). Escrevia o jornalista americano George Will: “a coisa boa em se ser um pessimista é que nós estamos sempre ou a ter a confirmação de que tínhamos razão ou a ser agradavelmente surpreendidos”. Prefiro, de longe, a última opção.

Filosofias, Robôs & Companhia

Espantam-se os meus amigos quando eu lhes falo na necessidade de começar a trabalhar activamente na construção de uma filosofia robótica. Estou assaz ciente de que será sempre, em maior ou menor grau, um exercício de especulação – como podemos nós, humanos, saber o que é estar no mundo como robot? – mas, contudo, estou convencido que é altamente necessário. Os meus colegas riem-se, e dizem que o meu amor pelo Matrix, essa obra-mor da ficção científica, me toldou o discernimento. O futuro, porém, é cada vez mais um assunto do presente (1).
Li no Público de sexta passada que cientistas de Pittsburgh, nos EUA, conseguiram que dois macacos comandassem um braço mecânico, ao qual não tinham ligação física, graças a alguns eléctrodos – da largura de um cabelo humano! – instalados no seu cérebro. Dava vontade de falar em telepatia: o rigor científico não o permite, contudo. A equipa de investigadores salientava a importância desta descoberta para as pessoas gravemente paralisadas, mesmo se a tecnologia ainda precisa, naturalmente, de ser aperfeiçoada. A simbiose entre máquina e homem avança a passos cada vez mais largos. O último número da Sábado, curiosamente, trazia precisamente uma entrevista a Kevin Warwick, o primeiro cyborg da história, ele que já teve instalado um chip que lhe permitia automaticamente abrir e fechar portas ou acender e desligar luzes. O ex-homem-máquina pretende em breve fazer novo implante que deverá permitir comunicar directamente entre dois cérebros humanos, descartando assim a fala, que ele rotula de “barulhos estúpidos” e “forma primitiva” de comunicação.
Como escritor e agricultor da palavra, assusta-me – não me assusta mais porque não me convence – esta possibilidade do fim da linguagem que, de resto, só um cientista limitado pela sua matemática pobre poderia conceber ou desejar sequer. O homem, aliás, não se encontra preparado para uma conversa translúcida, sem a mediação da palavra e do silêncio. Esta nova tecnologia a desenvolver por Warwick pretende também explorar a capacidade de o ser humano interagir com aparelhos tecnológicos meramente a um nível mental, como os macacos de Pittsburgh provaram ser possível. Ainda que um pouco exagerada, a previsão do investigador de que em 2050 os cyborgs serão uma realidade comum não é impossível, nem sequer improvável.
Esta possibilidade coloca-nos perante a questão última: o que é o homem? Subitamente, o indivíduo comum vê-se forçado, por força do futuro que espreita, ao exercício da filosofia. As implicações, contudo, estão longe de se resumirem a esse campo. Os cyborgs, por exemplo, serão preferidos naturalmente pelos empregadores para uma série de trabalhos, devido às suas superiores capacidades, filhas dos seus mais diversos implantes tecnológicos: seremos forçados a criar quotas de humanos puros nas empresas? Não pense o leitor que o presenteio aqui gratuitamente com uma visão apocalíptica do futuro: não receio este cenário, apenas insisto na urgência de o começar a pensar e resolver. A verdade é que o ser humano atingiu as portas do palácio da criação e está à beira de as transpor: podemos, enfim, mudar-nos a nós mesmos, ao ponto de nos confundirmos. Há coisa de duas semanas, o Reino Unido legalizou a criação de híbridos humanos, embriões com 0,1% de material genético de origem animal (essencialmente bovinos ou coelhos). Proclamava um bom professor meu que assistimos verdadeiramente ao nascimento de um minotauro: a mitologia faz-se realidade. O que é o homem, pois?
Filosofia robótica? Precisamos dela, sim; mas também, e muito, de uma filosofia do homem: aparentemente, esquecemo-nos do que é isso (ser homem é duro e mais fácil é não pensar).

1. Não posso deixar aqui, a este propósito, de saudar a Câmara da Mealhada pela inauguração da nova zona wi-fi no Jardim Municipal.

Crónica Sem Solução

Quem me conhece sabe bem como aspiro a ser cinéfilo e sonho ser realizador. Não foi inocente, na plantação do desejo, a reabertura do Cine-Teatro Messias, que me trouxe o cinema montanha mágica a mim, maomé. O cinema como arte, porém, descobri-o em casa com esse filme de que me tornei pregador: Dogville, de Lars von Trier (2003). Os meus amigos mais próximos, todos eles sofreram o meu apostolado: Dogville, afirmo-lhes, é a prova final que temos todos de atravessar como homens, a esfinge última que guarda a tebas da nossa humanidade e a cujas questões, édipos, temos de responder. A cada espectador a fita assombrará conforme for mais incómodo; para mim, sobre as demais, uma interrogação emerge depois dos créditos: será legítimo ao bem, para triunfar sobre o mal, recorrer precisamente ao mal? Até hoje a pergunta atormenta-me, sem que lhe ache resposta, encravado em insónias morais.
Dogville era uma parábola, mas a realidade encarrega-se de fazer descer as abstracções ao quotidiano, e a especulação filosófica ganha, subitamente, o vestido de dilema político com a situação catastrófica em que o ciclone Nargis amortalhou a Birmânia. Era perturbador interrogarmo-nos, como já o fizemos aqui aquando do tsunami do sudoeste asiático num exercício de teodiceia, sobre o absurdo porquê disto, a razão metafísica de tamanho holocausto: quase metade das vítimas, até agora, são crianças (“Mas as crianças, Senhor,/Porque lhes dais tanta dor?”). Outra catástrofe, porém, se abate agora sobre o país: a tirânica Junta Militar, que apodrece há décadas no poder – a mesma, lembram-se?, que no final do ano passado esmagou a sublevação dos monges budistas, a efémera revolução de açafrão –, está a impedir a entrada no país da ajuda humanitária da comunidade internacional. Há um milhão e meio de sobreviventes que, sem nada para comer e sem cuidados médicos, correm sérios riscos de morrer. Apesar deste cenário, a Junta recusa-se a atender os telefonemas de Ban Ki-Moon, secretário-geral da ONU.
O autismo do regime birmanês imola, a cada dia, novas vítimas. Há navios da União Europeia carregados de alimentos às portas da Birmânia – impossibilitados de prestar ajuda. A questão de Dogville assume agora, pois, uma formulação muito material: deve a ONU obrigar a Junta, ainda que pela força, a aceitar o auxílio da comunidade internacional? Teoricamente, sim. Os países-membros das Nações Unidas consagraram em 2005 a “responsabilidade de proteger” (R2P, abreviam os ingleses), isto é, comprometeram-se a intervir – militarmente, se for preciso – se um Estado, dalguma forma, se revelasse incapaz da sua função primeira: proteger o seu povo. A ideia do R2P é prevenir situações como o genocídio do Ruanda, a que o mundo assistiu calmamente, entre dois cigarros. Como, porém, já alguns vieram argumentar – nomeadamente Bernard Kouchner, ministro francês dos Negócios Estrangeiros e co-fundador dos Médicos Sem Fronteiras –, a presente situação da Birmânia poderia bem justificar a invocação do R2P. A União Europeia e a ONU, contudo, não parecem muito amigas dessa sugestão.
E aqui eis-nos de novo na questão moral fundamental: é justo que se derrube, pela violência, um regime violento para salvar o seu povo da morte? No fundo: os fins justificam os meios? Ou continuaremos a trilhar a muito provavelmente inglória estrada das negociações? Qual o maior crime moral: transvestir os bons de maus, incorrendo em incoerência, ou, à custa de um pacifismo firme, compactuar com um pequeno genocídio? Reconheço a frustração que, para o leitor, deve ser esta crónica: não apresento, de facto, qualquer solução. Muito humildemente, logo no início, reconheci não ter a chave para essa pergunta que me dilacera desde há tanto, águia que me devora o fígado de prometeu. O tempo, porém, não perdoa: milhares de bocas esperam a resposta que lhes daremos. Quem ousa uma decisão?

Crónica de um Jovem Democrata de uma Jovem Democracia

Entre grande escândalo e censura desvelou o Presidente da República, na cerimónia parlamentar do 25 de Abril, a ignorância dos jovens a nível de questões políticas. Aflito, apontou os criminosos, e não ilibou os partidos. Teve o mérito, pelo menos, de, durante, digamos, uma semana, ter posto meio Portugal a discutir o assunto. Sou o primeiro a reconhecer que os resultados do estudo da Universidade Católica encomendado especialmente por Cavaco Silva para o efeito são, a seu modo, preocupantes. No meio da discussão que se ergueu, porém, poucos atentaram no resto das conclusões do inquérito, tão ou mais interessantes do que as outras.
Leio uma síntese dos resultados do estudo. Os jovens, dizem, desvalorizam o voto como instrumento político, considerando-o pouco eficaz. Queixam-se da oferta partidária existente (metade não se identifica com partido algum) e da dicotomia esquerda/direita em que o debate político parece mover-se ainda (consideram esta distinção irrelevante, aliás). Estão ansiosos por reformas, profundas, e parte afirma mesmo a necessidade de uma mudança radical. Defendem uma maior taxa de mulheres em cargos políticos, novas formas, mais eficazes, que facilitem aos cidadãos a participação na tomada de decisões políticas. Valorizam mais os candidatos que os partidos – e argumentam a favor desta mudança de foco. Colocam a política em último lugar, sepultada: “outro valor mais alto se alevanta”, como a família, amigos, hobbies, religião, voluntariado ou o trabalho. Assinam muitas petições e não hesitam em boicotar produtos.
Leio tudo isto – e revejo-me no retrato. Penso em tantos dos meus colegas e amigos – e sinto-os iguais. A política em Portugal, entre jovens – seja-me permitida a aproximação – sofre hoje o mesmo mal que a religião: a simples menção dela é suficiente para afastar os potenciais ouvintes. Tenho um amigo meu que – e isto, acreditai-me!, é verídico –, quando, em dia triste, pretende enxotar a depressão sentimental, vê a ARtv, o Canal Parlamento, para se rir e animar. Compreendo-o e, tivera eu tempo para ver televisão (só a estreia da quarta temporada de Perdidos, no próximo domingo, me arrastará de novo, tal força da gravidade, para o sofá da sala) partilharia do seu entretenimento. Os políticos, em regra, falam mal e falam mentira: como querem que os queiramos ouvir? Os poucos que se filiam em partidos não o fazem tanto por convicção como por esperança de que, no futuro, isso lhes possa ser útil (os partidos são ainda redes de clientelas). Há, pois, os que têm cartão de sócio – e outros que não passam cartão nenhum aos partidos.
Hoje são eles, espante-se!, o principal problema da democracia. Tal como a vanguarda revolucionária comunista, se conseguiu tomar o poder, pela sua dedicação total a esse fito, perdeu de vista a realidade daqueles que, teoricamente, dizia servir, assim, do mesmo modo, todos os partidos hoje, obcecados em conseguir uma fatia do bolo guloso do poder, esqueceram o povo – e o povo futuro, os jovens, esqueceram-nos, por sua vez: perante “gente surda e endurecida”, melhor ficar calado. Errado, contudo, seria supor que tal visão significaria uma resignação dos jovens. Pelo contrário, face à falência evidente dos partidos como corpos efectivamente capazes de solucionar os problemas que nos atingem, os jovens assumem eles as responsabilidades. O estudo da Universidade Católica confirmava isso: se poucos se inscrevem em Juventudes partidárias, muitos, porém, entregam-se a projectos de voluntariado.
A grande reinvenção da democracia, creio, ocorrerá precisamente no tempo em que os partidos forem relegados para segundo plano, deixando de ser a força omnívora no esquema político. Não sei exactamente em que moldes tal operação se processará, mas é a ela que se referem os jovens do inquérito quando falam em “reformas profundas”. Recordemos: a nossa é uma jovem democracia – está só a atravessar a idade do armário: por isso os jovens a entendem.

Contra Fa(c)tos,...


A falar é que a gente se entende, diz o velho provérbio; contudo, modestos, é a escrever, por ora, que nos queremos entender. A entrada em vigor do acordo ortográfico parece, de facto, inevitável, e a coisa mereceu mesmo honras de editorial aqui, no Jornal da Mealhada. Meio povo anda a discutir o assunto, e todos ajuízam e se apaixonam. Como escritor e poeta-em-crise, o caso interessa-me de sobremaneira: falamos da matéria-prima da profissão, as palavras. Pesei pois os dois pratos da balança, e como uma nossa senhora disse que sim.

Choca a muitos que a língua seja regulada por decreto, mas por decreto ela se fixou: foi D. Dinis, “o plantador de naus a haver”, que obrigou a que os documentos oficiais, antes redigidos em latim, o fossem doravante na criança língua lusa. Por lei se sacudiu o ph e sózinho ficou sozinho sem acento companheiro. Outros refilam por um pequeno conselho de sábios e políticos pretender impor, do alto, a forma como a língua de milhões é escrita. Percamos a inocência: o português é, já hoje, determinado por um restrito e severo tribunal de linguistas, constantemente empenhado em enfiar num corpete essa mulher, a língua, que já quer andar de biquini. Dizem que empregue não pode ser empregado, mesmo se o novo particípio passado já se tornou corrente há muito – dizem isto, e muito mais. Pelo contrário, o acordo conserva a variedade lexical, procurando tão somente a harmonização ortográfica entre as muitas variantes.

Protestam os detractores, afirmando que essa unificação não sucederá, visto que, para certas palavras, guardar-se-á a dupla grafia, como facto e fato, que quer Portugal, quer Brasil, poderão continuar a escrever à sua maneira, sem que, contudo, nenhuma das ortografias seja censurada, qualquer que seja o lado do Atlântico do escriba. Argumento certo, mas falacioso: não encontramos tal variedade dentro mesmo do nosso português europeu? Veja-se a alternância entre ou e oi, em vocábulos como touro/toiro ou louça/loiça. Há aqueles a quem faz espécie a queda das consoantes mudas, mas Batista, assim mesmo, sem p, encontra-se já como apelido.

Argumentam alguns que todas estas razões não apagam a evidência incómoda: mesmo com acordo, o português do Brasil e de Portugal continuarão a ser fundamentalmente distintos. O objectivo do acordo, porém, nunca foi esconder essa diferença entre os dois idiomas, como fora ela coisa feia e vergonhosa, mas tão somente, com humildade, a todos dar a mesma escrita das palavras, na impossibilidade de dar mais. Ónibus pode nunca vir a ser um autocarro, mas ao menos não será, de um lado do Atlântico, ônibus, e do outro, ónibus. Uns, indignados, vão mais longe, afirmando que no momento em que o nosso país ceder ao Brasil (como se o Brasil, noutras coisas, também não cedesse a nós – e acreditem, há gente tristíssima por ver morrer o trema), será a norma brasileira a usada para fins internacionais. Só uma mentalidade colonialista pode temer essa mudança de paradigma no português; só um espírito cego pode negar que essa operação está já em curso e se concretizará, com acordo ou não. À medida que o Brasil cresce, a nível económico e demográfico, o português tal e qual como é praticado nas terras de Vera Cruz vai-se impondo como a norma, substituindo a variante europeia. De resto, enquanto língua internacional em congressos e afins, o português só subsiste por causa do Brasil.

E África nisto? Já alguém reparou que os PALOP são sinceramente favoráveis ao acordo? Escritores como Agualusa e Mia Couto, de Angola e Moçambique, respectivamente, já manifestaram o seu apoio à iniciativa. Está, de facto, na altura da lusofonia não ser mais um palavrão político para se materializar numa realidade. Este acordo, no respeito pelas diferenças, unifica-as, contudo, numa base comum: a escrita, expressão mais elevada de uma mesma língua.

O Desejo do Inútil

Hugo Pratt, um dos autores maiores do século XX, criador do imortal Corto Maltese, tendo sido, uma vez, criticado pela aparente inutilidade da sua profissão, confessou em resposta o seu desejo de ser inútil: a expressão dá mesmo título a um magnífico livro de entrevistas com o desenhador. Não raras vezes, quando me interrogam sobre o meu curso, perante a pergunta inevitável “para que é que isso serve?” (posta, por vezes, na variante, mais atenta ao futuro e ao emprego, “para que é que isso dá?”), gostava de poder responder do mesmo modo, evocando o meu capricho e gosto pela inutilidade, como Pratt.
Vivemos no que eu costumo definir como uma sociedade romana, eminentemente prática e pragmática. Se dos gregos se dizia que, para eles, tudo quanto era útil tinha de ser belo, dos latinos comentavam as más línguas, acertadas, o oposto: tudo quanto era belo tinha de ser útil. Não é sem razão que a economia triunfou sobre a política, subjugando-a: onde a política era, na origem, o combate pela utopia, um discurso sobre o que deve ser, a economia é, hoje, o manuseamento amargo do real, um discurso sobre o que pode ser, quando não mero discurso sobre o que é. Esta obsessão pelo fazível dita, por exemplo, entre as ciências, o triunfo da tecnologia. Hoje, a aferição da verdade assenta no proveito último que as coisas nos podem dar.
Muitas canetas e tinteiros se sangraram em redacções apaixonadas a propósito do recente caso de violência escolar no Porto, que o YouTube trouxe para a praça pública. Poucos, contudo, parece-me, reflectiram sobre por que razão não estava a aluna a fazer o que, naquele contexto, dela se espera: estar atenta à aula (alguns, pelo contrário, defendiam mesmo o direito da estudante a estar desatenta, se assim lhe aprouvesse, conquanto não perturbasse os demais). Pouco me importa aqui falar da falta de respeito demonstrada (sobre isso, outros, mais e melhor que eu, escreveram), mas sim sobre o profundo desinteresse que o manuseamento do telemóvel em contexto lectivo explicita. Espantarei alguns, creio.
O episódio da vergonha sucedeu numa aula de francês. Mas qual é, de facto, o interesse em estudar uma língua démodé, como o francês, especialmente hoje, num mundo em que todos compreendem o inglês? Entendo a indiferença da aluna perante a lição da professora. Mais: qual a vantagem de conhecer as bases da trigonometria, ou os maiores exportadores de cereais a nível mundial, ou de ler Os Lusíadas? De que serve saber o quotidiano dos camponeses e dos nobres na Idade Média, ou todos os detalhes do funcionamento do intestino delgado, ou a fórmula exacta para calcular a gravidade? Tudo isto são matérias que se estudam até ao nono ano. Sejamos sinceros: metade destas coisas, nenhum de nós as recorda já, e, a bem dizer, reconheçamos que mentimos quando procuramos convencer-nos da sua suma importância. Na sociedade que fabricámos, bem mais do que de conhecimentos, fala-se hoje de competências. Daí a aparição nos currículos escolares de mirabolantes disciplinas como Área de Projecto.
Esta é uma sociedade que desvalorizou o conhecimento, porquanto a maioria deste não é, de facto, útil: é meramente um exercício daquilo que nos faz mais humanos – daí ser tão precioso. É preciso inculcar nas crianças, desde a primária (aí apenas se podem plantar estas sementes), o culto da inutilidade, o saber pelo saber, sem quaisquer pretensões pragmáticas. Hoje temos inúteis (muitos, até), não temos inutilidade, porém. Uma é a receita contra isto: a curiosidade. Quando perguntaram a Pratt o que o guiou a vida toda, foi isso precisamente que ele respondeu: “a curiosidade intelectual”. A aluna da Carolina Michaelis tinha razão: a aula, é verdade, pouco valor prático tinha. Porém, tacanhos são os que se encerram nesses juízos. Amasse ela a curiosidade, tivesse sido educada para a amar, o telemóvel, esse grande hipnotizador (como aquele ladrão italiano do momento), há muito se teria reformado, derrotado.

ilustração pedida emprestada a http://binoculosqb.blogspot.com/

03 July 2008

O Cambista de Cadáveres


Estudava, quando o meu irmão me sugeriu vermos um filme. Esconjurei o trabalho, e sentámo-nos juntos para a sessão. Roubei da estante O Bom, o Mau e o Vilão, de Leone, que tinha comprado recentemente e desconhecia. O filme, um clássico consumado, explicou-me as razões da sua grandeza, e eu rendi-me também ao génio do western. Uma cena, perto do fim, logo me impressionou, manifesto simples – de incomparável sobriedade cinematográfica – de denúncia da inutilidade da guerra. Homens, irmãos, atiram-se violentamente uns contra os outros por uma estreita, estúpida ponte de madeira, objecto do desejo de ambos os exércitos. A ponte não serve para nada (só para lutar). Os soldados, coitados, têm de se embebedar para ousarem combater. O protagonista, ante o absurdo espectáculo, apenas comenta, incapaz de entender (cito de cabeça): “Nunca vi tal desperdício de homens”.

A cena toda ganha novo significado, se acrescentar que vi o filme no dia triste em que se celebraram – o termo é quase macabro, neste contexto – os cinco anos da invasão do Iraque. Subitamente, fomos todos de novo chamados a uma realidade que, entretanto, o tempo acabara por varrer, com discrição, para debaixo do tapete da memória. Os media – as estatísticas confirmam-no – dão cada vez menos cobertura ao conflito: na CNN, por exemplo, só 1% das notícias diz já respeito ao Iraque. Os espectadores cansaram-se do espectáculo: a bem dizer, não era particularmente criativo, e a pirotecnia das explosões diárias acabou por aborrecer. Os cadáveres amontoam-se longe (menos de cem mil): o seu cheiro, em decomposição, não chega às nossas narinas ocidentais.

Estava no meu nono ano quando a guerra começou. Na altura, lembro-me, activista de pé descalço, desenhei uma campanha que – o meu quixotismo reivindicava essas altas metas – podia mesmo, imaginava, chegar a Bush (a inocência da ideia pede-me que a não narre aqui). Espanto-me como ainda haja quem defenda a justeza da invasão, alicerçada no que hoje sabemos ter sido uma mentira orquestrada: a (in)existência de armas de destruição massiça. Por outro lado, porém, a tese simplista de que interesses petrolíferos ditaram a guerra também nunca me convenceu: de resto, os seis milhões de barris que o Iraque, actualmente, de acordo com as expectativas iniciais dos americanos, deveria estar a produzir diariamente, estão reduzidos a perto de dois milhões e meio, apenas. Até nisso, tudo na invasão correu mal.

A democracia, ao contrário do que Bush imaginava, não se prega pelas armas, e o falhanço no Iraque não é mais do que o desmoronar dessa doutrina expansionista bem-intencionada (a esse propósito, é urgente rever Manderlay, de Lars von Trier, reflexão perturbadora sobre esta e outras questões para este século novo). Esta democracia made in usa também não saiu muito favorecida com casos como Guantanamo ou Abu Ghraib. Ainda este mês, de resto, Bush vetou uma lei que interditava o uso de tortura nos interrogatórios. A América hipotecou assim todo o seu plafond moral e, ao fim de oito anos, muitos confundem o ódio a Bush (justificado) com o ódio aos EUA (palerma): a imagem externa dos “States” foi danificada de uma maneira que só as próximas eleições, em Novembro, poderão curar.

Ésquilo, possivelmente o mais belo dos dramaturgos gregos, chamou uma vez a Ares, deus da guerra, o “cambista de cadáveres”: descrição amarga de uma realidade crua. Hoje, de facto, os EUA são tão vítimas do conflito como as restantes facções em jogo no terreno. É pueril a atitude de quem insiste em, neste estado das coisas, continuar a resumir aos americanos as culpas do paiol em que se tornou o Iraque. Cinco anos depois, aonde é que chegámos? Menos ainda sabemos para onde vamos. Na véspera dos cinco anos do conflito, novo atentado: uma mulher fez-se explodir, quatro mortos. “Nunca vi tal desperdício de homens” - e de mulheres.