17 June 2005

Presépio Futurista

Tive um sonho de Natal, uma alucinação. E se de são e de louco todos temos um pouco, então a vossa parte louca deverá achar curioso este desvairo de minha mente.

Vi nessa demência minha um presépio de proporções gigantescas. Curvado perante ele, mais por dever da inconsciência que por escolha livre do arbítrio, foi com maior admiração que observei as estranhas figuras que o faziam, todas elas de tamanho desproporcionado. Tudo parecia uma realidade elevada ao quadrado. O gosto pelo espectacular e monumental é velho no homem, para o bem ou para o mal.

Uma senhora explicava à criança que levava pela mão a origem daquele bizarro presépio. Tinha mergulhado no futuro: estava a conhecer o último quartel do século em que redijo agora esta crónica. A mãe do pequeno dizia-lhe que o presépio que ele agora tomava com os olhos fora, no tempo dos seus avós, fortemente diferente. Ao que consegui captar, fora mudado pelos países europeus. Tudo começara neste ano que agora se fecha sobre nós e se contorce já em dores que não se percebem se são de morte e agonia, ou do parto iminente dum ano novo que se abeira.

Em Inglaterra, nesse ano que é o nosso, haviam montado um presépio cuja Sagrada Família era um jogador de futebol e sua mulher, ambos então famosos, que toda a fama é efémera. Segundo a progenitora, tal presépio adulterado acabou por ser barbaramente vandalizado. Que se violasse a imagem de Jesus e Maria, isso, era secundário, uma mesquinhice e implicação dum grupo de malucos e que em nada escandalizava ninguém. Agora que o Mr. Beckham fosse maltratado, ainda que só em estátua, isso era sacrilégio!– gritava o povo.

Na América, também nesse ano, num liceu, tinham-se proibido as canções natalícias que referissem alguma personagem cristã, pois isso era violar a laicidade das escolas públicas. E assim os meninos haviam-se contentado a cantar músicas sobre bonecos de neve, trenós e Pai Natal. Sim, que se Deus tem de ser banido, o capitalismo americano, esse, tem de ser exaltado sempre, na imagem perpétua do Pai Natal, vermelho apenas por causa da Cocacola. Adorá-la e cantá-la é legal; Jesus, esse é um fora-da-lei, já diziam os poderosos no Seu tempo.

Parece que, a uma certa altura, tais países resolveram que era preciso refazer o presépio à imagem dos tempos modernos e sem referências religiosas. No papel de S. José, o Pai Natal. O que mais nele estranhei era o não-ser das suas barbas: haviam desaparecido! Também isso o zunzum ininterrupto da turba clarificou: queria-se era a juventude, o culto desse físico ideal!

Nossa Senhora havia sido substituída por essa personagem, caricatura criatura da Sonae, a Leopoldina. Se Maria quer dizer ‘Senhora dos Mares’, a Leopoldina é a Senhora do Oceano! Quanto ao Menino Jesus, em nada se assemelhava ao Nosso: era uma criança gorda, anafada, com um pacote de batatas fritas gordurosas na mão inchada de gordura. A sua excessiva obesidade devia-se à exacerbada quantidade de horas que passava em frente às televisões, uma de cada lado, aquecendo o menino em vez do tradicional burro e boi.

Também a figura do pastor se vira radicalmente adulterada: aos ombros trazia cordeiros manipulados geneticamente de pele cor-de-rosa fluorescente, e pela mão conduzia uma horda de ovelhas bem maduras engordadas com os incógnitos venenos para a produção em massa dos ovinos. Tudo é produção em massa: pessoas, cidadãos em massa, de cérebros já moldados, prontos a sucumbir sem resistência às tentações do materialismo consumista.

Pouca coisa de facto sobrara do presépio nosso conhecido. Só mesmo os três reis magos haviam sido poupados. O primeiro transportando o ouro precioso –incentivo ao desenfreado luxo; o segundo, carregado com o incenso, que, assim ouvi, adquirira numa coffee shop: era sempre bom mostrar publicamente apoio às drogas leves.

Como alguém tão pomposamente gritou para cerrar a cena de minha tonta alucinação dentre o magote informe que corria as ruas: ‘Eis, irmãos, o Natal – 5€ levam um e outro igual!’. o corvo

Publicado a 22 de Dezembro de 2004 - Considerada por muitos a melhor crónica

Quem atura esta Literatura?

Tenho por hábito vaguear por livrarias, na minha rotina sempre igual na sua regularidade, que por vezes contorno em inesperadas revoltas contra o hábito, tendo elas, contudo, já virado também costume, por seu turno, pela sua frequência. Pelo puro prazer de ver e saber que não posso ter, e moer-me então em desejo, entro pois nessas casas de cultura (que não são as de Santana Lopes), cultivando o meu saber acerca das novidades editoriais, o que mais recentemente se deu à estampa.

Cada minha visita, porém, me tem feito abandonar cabisbaixo aquele abrigo onde antes encontrava refúgio para a leviandade intelectual do mundo que nos circunda, porque, como dizia Torrente Ballester, «A pior forma de solidão é a de dar-se conta de que as pessoas são idiotas». É desmotivante observar as novidades escritas em português, por lusa pena. É que é mesmo uma pena e, não fora trágico, seria ensejo de chorar. A literatura nacional de maior mercado tornou-se o desprezável equivalente à música comercial das rádios ou às comédias hollywoodescas.

Primeiro, o futebol, de todas a maior prioridade nacional. A proliferação de livros escritos por jogadores/treinadores/dirigentes de clubes ou por adeptos com reputação firmada, nomeadamente jornalistas, bem como obras de descrição dum dada temporada ou da conquista dum certo troféu converteram-se num nicho profícuo de vendas, que inunda as prateleiras. Lado a lado com ele, quase evocando a trilogia dos três ‘F’ portugueses do tempo salazarista, aparecem-nos os livros religiosos, hoje em dia aliados aos esotéricos, tendo-se, nas mentes dos livreiros e das pessoas, esbatido a diferença entre os dois sectores. Este boom da literatura religiosa ganha essencialmente com o famoso Código Da Vinci e com a eleição do novo papa. Assim, uma panóplia vergonhosa de livros sobre ambos os sujeitos têm pululado as livrarias, num claro intuito de vender – todos os livros passaram a ser “o livro que inspirou o Código Da Vinci”, remodelaram-se as capas dos antigos livros de Ratzinger. Na literatura nacional, não podemos esquecer o seu expoente: a filha de Raul Solnado, essa grande profetisa, que nos tem vindo a elucidar sobre o que o Jesus Cristo que nos fala quer de nós para este milénio: dinheiro.

Conjuntamente, não podemos esquecer essas obras-primas que têm vindo a engalanar a nossa produção nacional, como por exemplo o recente “Amanhã à Mesma Hora – Diário de uma Stripper Portuguesa” editada pela prestigiada D. Quixote, ou tantos blogues agora impressos com capa – o mais recente o do ‘Gato Fedorento’, ou a libertinagem das publicações humorísticas, que agora, sob a chancela da Texto Editora, invadem o mercado. Mas como ler é aborrecido e cansativo, os engenhosos senhores das editoras contornam o problema anexando aos livros CDs com o melhor deles, ocasionalmente ainda preenchidos com imagens. Algo está podre no reino da literatura de Portugal... E literatura lhe chamar é já um eufemismo, se não uma total hipocrisia.

Escritor amador como gosto de ser nos meus tempos livres em que livros componho, tenho amigos que se me juntam e confessam a sua angústia de não conseguirem publicar o que pretendem. A tal medo, eu lhes replico simplesmente «O que quer que tu escrevas há-de ser melhor do que aí corre, por isso, não te preocupes!». Ou talvez nos devamos inquietar, porque os artistas, os verdadeiros, amadores que se tentam atirar para esse circo de feras das editoras, vêem constantemente barrados os seus caminhos pela lógica capitalista de hoje, pela mentalidade retrógrada dos nosso leitores. A cultura escrita portuguesa está viva? o corvo

Publicado a 15 de Junho de 2005

Ai, que saudades do Faroeste!

Muitos de nós ainda terão presentes na cabeça as imagens do magnífico e chocante documentário Bowling For Columbine, de Michael Moore em que o lobby americano das armas era denunciado em toda a sua crueza, mas sempre num invólucro de corrosivo humor como só este realizador nos sabe oferecer. Muitos contestaram a película, argumentando ser ela parcial e deturpada. Não escrevo para a justificar, mas dos dados que se seguem, cada um tire conclusões.

No dia 11 de Maio do presente ano, a Secretária de Estado norte-americana, Condoleezza Rice, afirmou que a segunda emenda à Constituição (que garante o direito das pessoas guardarem e transportarem armas) é tão importante como a primeira (que salvaguarda a liberdade religiosa, de expressão e de reunião). Rice declarou ainda que “devemos ser muito cuidadosos quando começamos a reduzir direitos que os nossos Pais Fundadores consideravam muito importantes”, criticando, assim, subtilmente as organizações contra a tão fácil obtenção de armas na América.

Na Florida, foi aprovada já em Maio uma nova lei que legalizou ainda mais o uso de força mortal, ao permitir que, inclusivamente em locais públicos, desde que o cidadão se sinta ameaçado, dispare contra o possível atacante. Antes tal direito estava apenas reservado à propriedade fechada (casa e carro, por exemplo) e em espaços públicos o cidadão tinha o dever de primeiramente tentar fugir daquele que o ameaçava. Com a nova lei, esse dever foi abolido e, portanto, à mínima suspeita, somos livres de usar força mortal. Ao assinar a lei, o irmão de George Bush, governador da Florida, declarou, naquele jeito que já vem sendo típico dos Bush, «É do senso comum permitir às pessoas defenderem-se.»

Este recente diploma vem recolocar na ordem do dia aquela que é, a meu ver, uma das maiores discussões com que as nossas sociedades modernas se debatem. Cada vez mais a segurança se torna uma prioridade dos governos e, sob a sua bandeira, numa bandeja entregam os cidadãos a sua liberdade. Ironicamente, quanto maior a obsessão pela segurança física, tanto maior é a insegurança psicológica. Entra-se numa insana paranóia do medo. A nossa liberdade é tanto mais ameaçada se pensarmos no controlo exercido por toda a estrutura da sociedade moderna, que nos obriga a deixar rastos indeléveis das nossas actividades, permitindo a reconstituição delas. Após o 11/9, os serviços secretos americanos chegaram a pesquisar suspeitos baseando-se no registo de livros lidos nas bibliotecas públicas – o medieval Índex regressara. Pela segurança, tudo.

A velha polémica americana das armas é só mais um reflexo desta obsessão pelo inimigo desconhecido que se encarna em cada transeunte com um ar menos simpático. Esta lei, incompreensível para a maioria de nós, distantes da louca realidade dos EUA, resume-se a mais uma manifestação desta deturpada hierarquia de valores, em que a segurança se impõe à liberdade. É necessário realizar, por parte de todas as nações, a escolha entre os dois valores. Eu fiz a minha: a liberdade é o valor mais alto e mais humano que define a pessoa, pelo qual se deve pugnar incessantemente, especialmente num mundo, como o actual, em que ela é tão ameaçada ainda por países que se dizem democráticos, mas continuam a atentar contra ela impiedosamente, só que sob formas mais subtis e delicadas – a perícia da malícia é muita e variada. A cada um de nós cabe a sua escolha e dela deriva a nossa perspectiva sobre o mundo actual. Que ele saiba adequadamente perceber que a segunda emenda não é tão importante como a primeira... o corvo

Publicado a 1 de Junho de 2005

A Lição da Educação - II

Continuando a crónica iniciada há quinze dias, aqui se apresenta a segunda vaga de propostas para um melhor sistema de ensino em Portugal; sugestões estas resultantes das minhas próprias ideias e dum debate com um colega.

6. Obrigatoriedade de exames nacionais de final de ciclo. Uma das principais razões da gigante taxa de iliteracia portuguesa é o facto de, em nome do não elitismo do sistema, consecutivamente se transitarem alunos aquém dos objectivos que deveriam ter atingido. Uma forma de evitar esses favorecimentos, a meu ver, merecedores de tanto repúdio como uma cunha, passa pela efectivação da medida proposta. Caminha-se já em Portugal para essa situação e não se deve nunca ceder às exigências dos estúrdios que reclamam o cessar de tais avaliações e o fim da nota mínima de entrada na universidade. No dia 22 de Abril, o Ministro Mariano Gago reafirmou a sua determinação na obrigatoriedade da nota mínima de 9,5 para entrada nas universidades para assegurar um ensino superior de qualidade mínima. O facto de um governante ter de proclamar isto é a prova suprema de que vivemos numa país retrógrado. Se dúvidas ainda restassem do nosso atraso, basta rir-se com as declarações doutros sectores políticos acusando o ministro de ainda mais favorecer o elitismo do ensino. Sem nota mínima, onde estariam os valores do trabalho, do esforço, do mérito pessoal? É importante a afirmação e valorização do labor de cada indivíduo.

7. Redução dos agrupamentos e maior versatilidade na passagem entre eles. A nova reforma do secundário, entrada em vigor este ano lectivo, só complicou mais a vida aos alunos de nono ano que, face a uma maior gama de ofertas, cada vez mais especializadas, são obrigados a fazer uma escolha vital cada vez mais cedo. Isto só vem entravar a mudança de agrupamento numa fase posterior que só com quatro áreas já é complicada.

8. Forte redução da carga horária. Esta é claramente excessiva e nem a introdução das famosas aulas de noventa minutos a solucionou, porque o tempo que se perdeu com elas (cinco minutos por cada hora, em comparação com os horários antigos), foi somado e recuperado em novos blocos rotativos destinados a retomar esse tempo perdido. As manhãs livres deviam acabar e serem substituídas por tardes, o que é muito mais proveitoso. Já no básico, poder-se-ia acabar com disciplinas sem sentido como Estudo Acompanhado e Área de Projecto; tudo disciplinas que visam desenvolver o lado social do aluno, sem entenderem que isso é tarefa multidisciplinar, comum da família, amigos e sociedade em geral.

9. Mudança do currículo no secundário. Devia acabar a separação entre Português A e B e a Matemática devia tornar-se obrigatório para todos os agrupamentos, sem simplificações para os não-científicos. Isso evitaria muitas falsas vocações (sempre, contudo, cada vez menores) em Humanidades, para além de fornecer aos alunos uma bagagem intelectual imprescindível.

10. Fim de todas as reformas educativas, pelo menos durante um longo período. Acaba por ser frustrante e péssimo em termos de estabilidade educativa as constantes reformas que os diferentes governos promulgam e que de ano para ano mudam tudo, frequentemente para pior. Há que elaborar um pacote radical e profundo de alterações que reúna um vasto consenso partidário (ou, pelo menos, de dois terços da Assembleia), aprovar essa última reforma e deixá-la ser aplicada. Só vários anos mais tarde se poderia considerar uma revisão, depois duma inteira geração ter passado por ela e ser, assim, possível avaliar os seus afeitos reais. Melhor educação é possível! o corvo

Publicado a 18 de Maio de 2005

A Lição da Educação - I

Um amigo meu de longa data, filiado desde o início deste ano numa juventude partidária coimbrã, falando comigo numa noite cibernética, contou-me que fora convidado para ser representante dos alunos do ensino secundário na comissão política dessa organização. Honrado com a proposta, aceitou-a. Apesar da minha postura reticente face aos partidos, não pude deixar de me alegrar com o sucesso deste meu colega. A propósito deste acontecimento, iniciámos um curto debate sobre a educação, nomeadamente a secundária – a que nos diz mais respeito. Dessa conversa amena surgiu uma série de ideias reformadoras que estão na base desta crónica.

1. As turmas deviam ser mais reduzidas. É um lugar-comum da pedagogia, mas a verdade é que na mais recente manifestação das associações de estudantes não era uma reivindicação, dando-se primazia a outros assuntos como o fim dos exames nacionais. A título de exemplo, a minha classe contém em si três diferentes que se fundiram numa só, o que leva a uma desigualdade de horários escolares tremenda: enquanto há colegas que usufruem de três tardes livres, um outro terço da turma só goza duma. E, é certo e sabido, quanto menos alunos, tanto mais a aprendizagem tende a ser mais efectiva e proveitosa.

2. A inexistência duma tal variedade de manuais escolares. Se o meu amigo pretendia um livro único, eu, não chegando a esse extremo, admito, todavia, apenas duas ou três variantes. Isto é, para uma disciplina dum dado ano de escolaridade, as escolas só devem poder optar por um número limitado de manuais, de modo a que haja uma muito maior homogeneidade entre os estabelecimentos de ensino do nosso país. É espantoso constatar que hoje em dia a mesma editora chega a oferecer dois ou três manuais para a mesma matéria. A aplicação desta norma facilitaria muito mais a transferência de escola a meio do ano lectivo para os alunos que o fizessem.

3. Uma efectiva intervenção do Estado, com um órgão controlador tanto do preço como da qualidade. É vergonhoso o peso no orçamento familiar que os manuais têm no início do ano lectivo. Outra forma de o reduzir seria assegurar a continuidade dos manuais escolares por um período de tempo mais longo do que o actual, de modo a que os irmãos pudessem, sempre que possível, reaproveitá-los.

4. A mudança profunda dos programas. O caso mais notório que eu e o meu parceiro de discussão comentámos foi o da disciplina de inglês, essa tal que agora também teremos na primária. O programa de inglês ao longo do básico e secundário é simplesmente infantil e ridículo, consistindo, a partir sensivelmente do meio do percurso escolar, duma recapitulação do anteriormente dado, que por si é tremendamente insuficiente para o nível de inglês que é exigido para a sociedade global em que vivemos. Em virtude disto, a maioria dos estudantes é simplesmente medíocre, incapaz de manter uma conversa de nível médio-alto durante um período médio-longo, sem bases para entender um texto literário ou escrever uma carta formal.

5. Fala-se em prolongar o ensino obrigatório até ao décimo segundo ano. Não tendo uma posição definida sobre o assunto, considero, porém, mais importante que se torne obrigatória a creche, que, sendo já uma prática muito comum em Portugal, merecia, contudo, um maior destaque, mais apoio económico e um maior desenvolvimento. o corvo

Publicado a 4 de Maio de 2005

Youth Of The Nation - II

O pensamento é fatigante e é mais fácil ser-se jovem praticante do vazio mental. Tal raça de gentes fazem contentes os manipuladores, senhores que pululam por todo o lado e se aproveitam destes inocentes mentais. Alguns jovens associam-se a juventudes partidárias, numa forma só um pouco mais sofisticada de consumo de ideias feitas, mas que, numa sociedade que é a nossa, os faz ganhar reconhecimento, mas nunca conhecimento. Mais provável é que provem o cunhacimento, cimento de toda a lógica partidária.

Há uma tolerância de opiniões que é indiferença, porque condescendência não é inexistência de diferendos e discussão. Cada um aceita a outrém opinião, mas não se procura apurar a verdadeira. A verdade não é prioridade desta juventude enquanto isso não a prejudica directamente. Por isso não há claridade, não há transparência, só aparência. “O mundo pode ruir desde que não me mate a meio do apocalipse” – vede o espiritualismo desta gente, tão desapegada da matéria e das coisas do mundo! Ironia, quão doce és, que nos fazes dizer verdades ao revés!

É preciso o confronto para que surja uma nova ordem. Mas esta é a juventude do “peace and love and money”, como pregava o anúncio recente dum automóvel. Não percebe ninguém, porém, como alguém escreveu, que “a paz dos homens é a guerra das ideias”? Não, ninguém entende, que este é o tempo da iliteracia que a todos se estende, como um polvo que sobre todos esparge a sua tinta negra e a ignorância faz-se regra. Ninguém precisa de entender, só tem de tender para onde tende a massa, o grupo – disso o sucesso depende, nem que isso signifique que o jovem – que o homem! – sua liberdade a uma caixa quadrada venda. Venda lhe tolha os olhos!

Nem a verdade nem a liberdade são bandeiras desta geração que só quer bandejas. Como se podem os jovens revoltar? Revolta implica pensamento. Revolta pede movimento. Mas é inércia o sentimento que doma e come toda esta geração. O mundo parte-se em bocados, o fim caminha a passos largos e aqueles que serão os governantes de amanhã dormem encostados, desencontrados do real. O mundo vai mal, mas não é esta juventude mole que o poderá mudar; ainda que o vá mandar, não o vai emendar. Onde está a rebeldia doutrora, meus irmãos? No armário em que o povo nos coloca nesta idade? Não sentis já o cheiro a mofo que o preenche?

Não, vejo-me ao espelho e comigo olho toda a juventude. Não encontro nos seus rostos o fulgor que construiu maios de 68 e hippies, ou o que monta agora marchas de liberdade no país do cedro, Líbano distante. Não, a juventude portuguesa o melhor que consegue fazer é trancar a Porta Férrea e pôr uma carrinha à frente porque a meia dúzia de gatos pingados que a velavam têm de ir tomar um café. Não, a juventude de hoje só consegue protestar para não ter de pagar propinas para lhe sobrar mais dinheiro para ir à discoteca. Não, a minha juventude só consegue reclamar para ter educação sexual porque infelizmente são todos uns coitados ignorantes que nunca ouviram falar de sexo e afins. Não, esta juventude só consegue lutar pelo aborto porque o prazer libidinoso deu para o torto e mais vale ter fora o caroço do que ter de tratar do bebé moço.

Assisto à sesta deste bicho que sou eu e os iguais a mim e ao declínio do nosso poder, ao enrouquecer da nossa voz, ao enlouquecer de nós, que só a loucura justifica esta decadência. E aguardo o fim da nossa demência... o corvo

Publicado a 20 de Abril de 2005

Youth Of The Nation - I

O título desta crónica é homónimo duma música dos P.O.D. cujo refrão é precisamente este grito cantado pelo vocalista e um coro de jovens: We are the youth of the nation (“Nós somos a juventude da nação”). A letra acaba, contudo, por revelar a delinquência, violência e decadência da massa escolar de alunos, mostrando bem que juventude da nação é aquela apregoada pelo cantor. Enquanto jovem, não posso deixar de reflectir sobre a minha condição e a da minha faixa etária: o nosso estado, os nossos objectivos, os nossos problemas, a nossa identidade. Os jovens são a minha comunidade, a juventude é a minha sociedade. Porém, eu olho em volta, volto a face e peço que me enterrem a cabeça na areia, tal avestruz, porque não encontro luz ao fundo do túnel para os meus irmãos.

Sinto, apalpo mesmo, nos seus rostos e nas suas mentes, em tantos, uma indiferença a que tudo votam indiferentemente. São agnósticos do mundo. Face a qualquer assunto, encolhem ombros, enrugam a face, calam a boca: nada é objecto de opinião entre eles – opinar é trabalhoso, empinar ideias feitas, menos moroso. É este o nosso tempo: a era dor produtos light, a época do microondas. Um tempo em que se compra tudo em pó e do pó tudo se ergue ao fim de cinco minutos, para logo a gula o consumir e tornar pó de novo. Um tempo em que Roma e Pavia são feitas num dia, porque só para um dia são precisas. Vivemos num mundo descartável.

Para quem, contudo, a mente deixa dormente, mente-se se se disser que são ideias complexas, essas que os jovens na sua preguiça tomam para si. Não, tudo se resume a escassos esquissos, e não porque a obra final ainda está longe, mas porque não interessa mais do que ter a ideia geral. É este o nosso tempo: o tempo dos livros de resumos e dos resumos dos resumos, onde a informação é em segunda mão e, assim, é o tempo do ouvi dizer que se ouviu falar, dos boatos que batem em campanhas eleitorais e tantas situações mais. É o período da segunda mão que a criação é dolorosa e custosa, e ninguém quer ter calos nos dedos.

Esta indiferença, este contentamento com a contenção do saber, com o não ter mais que meio rabisco sobre tudo, incomoda-me, mais ainda porque se mostra como moda, numa soberba de exibir ignorância que me recorda a nobreza doutros tempos e que aqui encontra a sua reencarnação, numa massa jovem que se sacrifica por tendências voláteis, por um consumo que é sumiço do dinheiro que nem é seu. Como bicha-solitária, esta juventude definha as finanças da casa para satisfação do seu egoísmo, em vez de tudo arranjar por si mesma para si mesma, numa solidão que lhe dita o nome com que a coroo. Coro de vergonha por ver que esta juventude que é a minha não sonha com nada mais alto, não quer dar o salto para um futuro incerto.

Este materialismo é só o reflexo do niilismo intelectual a que tudo se reduz entre os jovens. A quota que era do espírito transborda na ânsia de satisfação para a carne e aí procura o colmatar da mente que lhe falta. Não percebem que o saber tem uma vantagem: não ocupa lugar. Mas os brinquedos que adquirem para distracção da inocuidade em que transformam as vidas deles não cabem para sempre nos recantos em que os armazenam. A necessidade de ter enche-lhes a alma e logo, pois, para que o novo venha, deitam fora o velho. A tudo é dado prazo de validade – perdeu-se a noção de eternidade. Ninguém mais luta por vencer a memória curta humana, por se imprimir eterno nas páginas da história, por ser herói e artista. Quer-se tudo temporário, porque compromissos a longo prazo são promessas que não agradam fazer, porque só uma regra lhes parece regular a vida: o devir, a mudança, uma perpétua dança entre experiências. Os jovens hoje são atletas que passam a vida a mudar de pista, mas nunca arrancam da partida, porque nem sequer têm meta ou mote que os guie... o corvo

Publicado a 6 de Abril de 2005