Tive um sonho de Natal, uma alucinação. E se de são e de louco todos temos um pouco, então a vossa parte louca deverá achar curioso este desvairo de minha mente.
Vi nessa demência minha um presépio de proporções gigantescas. Curvado perante ele, mais por dever da inconsciência que por escolha livre do arbítrio, foi com maior admiração que observei as estranhas figuras que o faziam, todas elas de tamanho desproporcionado. Tudo parecia uma realidade elevada ao quadrado. O gosto pelo espectacular e monumental é velho no homem, para o bem ou para o mal.
Uma senhora explicava à criança que levava pela mão a origem daquele bizarro presépio. Tinha mergulhado no futuro: estava a conhecer o último quartel do século em que redijo agora esta crónica. A mãe do pequeno dizia-lhe que o presépio que ele agora tomava com os olhos fora, no tempo dos seus avós, fortemente diferente. Ao que consegui captar, fora mudado pelos países europeus. Tudo começara neste ano que agora se fecha sobre nós e se contorce já em dores que não se percebem se são de morte e agonia, ou do parto iminente dum ano novo que se abeira.
Em Inglaterra, nesse ano que é o nosso, haviam montado um presépio cuja Sagrada Família era um jogador de futebol e sua mulher, ambos então famosos, que toda a fama é efémera. Segundo a progenitora, tal presépio adulterado acabou por ser barbaramente vandalizado. Que se violasse a imagem de Jesus e Maria, isso, era secundário, uma mesquinhice e implicação dum grupo de malucos e que em nada escandalizava ninguém. Agora que o Mr. Beckham fosse maltratado, ainda que só em estátua, isso era sacrilégio!– gritava o povo.
Na América, também nesse ano, num liceu, tinham-se proibido as canções natalícias que referissem alguma personagem cristã, pois isso era violar a laicidade das escolas públicas. E assim os meninos haviam-se contentado a cantar músicas sobre bonecos de neve, trenós e Pai Natal. Sim, que se Deus tem de ser banido, o capitalismo americano, esse, tem de ser exaltado sempre, na imagem perpétua do Pai Natal, vermelho apenas por causa da Cocacola. Adorá-la e cantá-la é legal; Jesus, esse é um fora-da-lei, já diziam os poderosos no Seu tempo.
Parece que, a uma certa altura, tais países resolveram que era preciso refazer o presépio à imagem dos tempos modernos e sem referências religiosas. No papel de S. José, o Pai Natal. O que mais nele estranhei era o não-ser das suas barbas: haviam desaparecido! Também isso o zunzum ininterrupto da turba clarificou: queria-se era a juventude, o culto desse físico ideal!
Nossa Senhora havia sido substituída por essa personagem, caricatura criatura da Sonae, a Leopoldina. Se Maria quer dizer ‘Senhora dos Mares’, a Leopoldina é a Senhora do Oceano! Quanto ao Menino Jesus, em nada se assemelhava ao Nosso: era uma criança gorda, anafada, com um pacote de batatas fritas gordurosas na mão inchada de gordura. A sua excessiva obesidade devia-se à exacerbada quantidade de horas que passava em frente às televisões, uma de cada lado, aquecendo o menino em vez do tradicional burro e boi.
Também a figura do pastor se vira radicalmente adulterada: aos ombros trazia cordeiros manipulados geneticamente de pele cor-de-rosa fluorescente, e pela mão conduzia uma horda de ovelhas bem maduras engordadas com os incógnitos venenos para a produção em massa dos ovinos. Tudo é produção em massa: pessoas, cidadãos em massa, de cérebros já moldados, prontos a sucumbir sem resistência às tentações do materialismo consumista.
Pouca coisa de facto sobrara do presépio nosso conhecido. Só mesmo os três reis magos haviam sido poupados. O primeiro transportando o ouro precioso –incentivo ao desenfreado luxo; o segundo, carregado com o incenso, que, assim ouvi, adquirira numa coffee shop: era sempre bom mostrar publicamente apoio às drogas leves.
Como alguém tão pomposamente gritou para cerrar a cena de minha tonta alucinação dentre o magote informe que corria as ruas: ‘Eis, irmãos, o Natal – 5€ levam um e outro igual!’. ■ o corvo