30 April 2006

Paris Universal!

A França é dos países mais interessantes do mosaico ocidental, pelo temperamento muito próprio dos seus habitantes. Depois dos subúrbios, os distúrbios revolucionários reencarnaram na Sorbonne. A questão do CPE (Contrato Primeiro Emprego) é apenas uma sinédoque de todo o problema maior, não francês, mas europeu, com que a juventude se confronta actualmente. Na edição de quinta do Público, o jornal registava a confissão dum jovem italiano, licenciado em economia e com mestrado feito em Buenos Aires, que afirma que, tivera 1000 euros como salário, prontamente se casaria e compraria casa. Pelo contrário, porque recebe somente 300 euros, continua a viver com os pais. Encontra-se contratado por seis meses apenas: tivera ele mais estabilidade, por certo não hesitaria em se autonomizar. Tudo se acha invertido: numa altura em que a terceira idade cada vez mais necessita que sejam os jovens, com trabalho redobrado, a suportarem-na; são os mais velhos que sustentam os jovens, que não se conseguem empregar.

Correríamos a tentação de, ante tal demografia, rejubilar perante a perspectiva próxima da reforma de toda uma série de funcionários. Porém, a esperança é errada, pois, ainda que estes saiam, não entram novos – assim o exige a remodelação da administração pública. A título de exemplo, olhemos o caso dos professores – com tantos desempregados há anos, que lugar no sistema se reserva para os novos?

Alguns criticam os jovens por não estarem dispostos a um futuro precário: argumento fácil para aqueles que têm assegurada a profissão. Dizem-nos: há que ser polivalente e flexível, têm de estar preparados para exercer profissões que não estão ligadas ao que cursaram. A título de exemplo, ainda há umas semanas atrás, a revista Dia D entrevistou jovens recém-licenciados, registando como sobreviviam em trabalhos completamente alheios ao seu canudo. Uma rapariga estava empregada como caixa e outra, de noite, indicava os lugares no escuro dum cinema. Comentarão então os sábios iluminados que estamos perante dois casos notáveis de bem-sucedida adaptação ao mercado, independentemente da sua formação universitária. Erguem-se-me, porém, duas perguntas: é este desperdício de recursos humanos intelectuais que esses senhores querem apoiar? Num período de contenção orçamental, nada se faz para travar esta sangria de dinheiros públicos, com profundos investimentos em jovens que, simplesmente, não fazem uso daquilo que estes lhes proporcionaram?

Entretanto, Mariano Gago veio avisar que já no próximo ano lectivo, os cursos universitários que não tiverem 20 matrículas no primeiro ano deixarão de ser financiados pelo Estado. Obviamente, várias universidades expressaram já o seu desagrado, considerando que existem cursos nucleares – técnicos e artísticos, entre outros – que não podem ser dispensados. (Estranho as Associações Académicas permanecerem passivas ante toda a situação –compreendo!, não falamos de propinas...). Pessoalmente, não fora a Universidade de Coimbra ter afirmado que financiaria o curso que pretendo, deixaria de poder candidatar-me ao ensino superior no próximo ano. Não só deixámos de ter emprego, deixámos de ter ensino; não só não podemos trabalhar, não podemos estudar.

Acena, no Sena, a angústia juvenil... Paris, faz-te universal! ■ o corvo

Publicado a 12 de Abril de 2006

03 April 2006

Regresso À Cidade...

1. O governo anunciou, pela secretária de Estado dos Transportes, no início do mês que se esquece, que tenciona expandir a rede do sebastianista – porque se espera e não vem – Metro Mondego através da criação de um eixo Norte-Sul que una Mealhada a Condeixa, com um possível alargamento até à Figueira da Foz. O sistema do tram – como se designa este tipo particular de carruagem que pode servir-se quer das tradicionais linhas de comboio quer das linhas próprias de metro, saltando entre os dois sistemas sem entraves – ligaria, deste modo, uma vastíssima área do centro litoral, da qual a Mealhada seria a fronteira. Porém, o Presidente da nossa Câmara apressou-se a esclarecer, ao Público, que «Estamos em condições de dispensar o metro»; mais, «Ainda seríamos mais mal servidos pelo eléctrico».

Estamos «razoavelmente servido[s]» pela CP e pelos autocarros, mas porque não superar a mediocridade de um “razoavelmente”? Encontramo-nos perante uma oportunidade única de reforçar a nossa união á área metropolitana de Coimbra – da qual, de resto, já fazemos parte. A possibilidade de, apanhando o metro na Mealhada e, sem o abandonar, circular por toda a Coimbra, e, em dia de Verão, estender a viagem até à Figueira, é cenário quase futurista não fosse a iminência da sua muito plausível concretização nos tempos próximos. A sua construção não invalida a do troço da EN1/IC2, entre Sargento-Mor e a Anadia, essa prioridade pela qual o Presidente não troca o tram. A recusa do metro não pode servir como pressão para tal variante – que jeito estranho de negociar politicamente! Estaremos tram-ados?

2. Baixo agora a pena crítica e descanso a postura de corvo irritante que bica os transeuntes para me sentar num ramo da árvore e, arrisco!, cantar até (efeitos, talvez, da Primavera). Guardo o dedo indicador e, mãos abertas, ovaciono. Como noticiado no número anterior do jornal, esteve entre nós Mário Augusto em mais “Um Café Com...”. Pude participar na conversa com o entrevistador e isso recordou-me a significância cultural do Cine-Teatro Messias no panorama cultural do concelho.

A temática de todo o serão – o cinema – ainda mais fortemente me fez meditar no papel do espaço onde me encontrava. Senti que fazia um regresso a casa. Há uns cinco anos atrás, pouco ou nenhum seria o meu interesse em participar em tal sessão: ia duas vezes ao cinema, quando estava de férias, emigrado na praia – e todo o mais ano era um deserto. Foi, em 2001, a recuperação do Cine-Teatro, que me fez mergulhar, irrecuperavelmente, nesse mundo. A proximidade inédita aos bens culturais que gerou, permitiu uma mudança qualificativa dos meus gostos – e dos de tantos outros mealhadenses.

E, porque o Cine-Teatro fez-se por justaposição, no seu segundo termo revela, explícita, a sua segunda força. Com um recinto à altura, a Mealhada começou a acolher grandes representações teatrais e criou as bases para o posterior desenvolvimento de grupos teatrais, como a Oficina de Teatro do Cértoma. A título de exemplo, só este mês de Março que se fina, o Messias assistiu a um monólogo de Sofia Alves e ao clássico Felizmente Há Luar! – que, nem a propósito, eu comecei, nessa semana, a estudar a Português.

E porque um palco não serve apenas à dramaturgia, como esquecer os concertos que já proximamente preenchem de novo a nossa sala de espectáculos? E quantas pequenas – mas nem por isso menos belas ou significativas – exposições não cruzaram já aquele recinto? Indubitavelmente, a recuperação do edifício e da área envolvente foi a maior benesse com que a população da cidade se viu agraciada nos últimos anos (e o tram pode vir a ser a próxima...) – que ela saiba continuar a fazer justo e saudável uso dela.

Publicado a 29 de Março de 2006

Munique-Mealhada


Já aqui o referimos, ainda ele não tinha atingido – pedra no charco – as salas portuguesas. Agora que escrevemos, bate, pesado, às portas da nossa cidade. Munique, de Steven Spielberg, está em exibição no Cine-Teatro Messias a partir de amanhã. Tendo já visto a película, não posso evitar tecer sobre ela alguns juízos, não tanto do ponto de vista cinematográfico, mas mais sobre o seu conteúdo, ainda que, no que respeita ao primeiro, como seria mais do que expectável, ela venha, mais uma vez, justificar a razão do prestígio do seu realizador – apresenta-se como verdadeira obra de arte.

O sentimento mais instantâneo com que abandonei a sala de cinema foi o de uma profunda impotência: o filme revela bem – àqueles de nós mais cegos, ou inocentes (qual, dos dois, o meu caso, desconheço) – como as grandes decisões neste plano (o militar) estão completamente fora do âmbito de acção do cidadão comum, cuja opinião é irrelevante nesta matéria. Assim o verificámos, por exemplo, aquando da guerra do Iraque, em que, não obstante a mobilização mundial contra o conflito, este foi desencadeado – para ainda hoje se arrastar.

Sendo uma apresentação equilibrada dos dois lados (palestiniano e israelita), a fita revela, nuamente, como as razões de ambas as partes são as mesmas, logo, inconciliáveis: tanto uns como outros recorrem ao argumento do sangue, da família, da terra. Num dos diálogos do guião mais reveladores a esse respeito, um palestiniano comenta que o seu povo está disposto a esperar milhares de anos para recuperar a sua terra, tal como os israelitas, desde a destruição de Jerusalém, também esperaram, vendo só concretizado o sonho do regresso à pátria. Perante argumentos desta natureza, era inevitável que o filme se fechasse com uma triste mensagem de desesperança: a fita não prega moral, apenas constata a impossibilidade de paz.

A única, mas grande, diferença nos métodos entre palestinianos e israelitas é o facto de, pelo menos intencionalmente, os últimos não assassinarem inocentes, ou, sendo mais precisos, civis: pois nem sempre a culpabilidade dos alvos a abater pelos israelitas está suficientemente bem provada, deixando espaço à dúvida – e ao consequente abatimento de inocentes. Pelo menos, a informação, dentro dos seus limites que comportam a inexactidão que acabámos de referir, não era deliberadamente fabricada: como aconteceu na Guerra do Iraque, com a CIA e as “provas” das armas de destruição maciça.

Ainda assim, esta política de eliminação selectiva – como lhe chama Israel, que já avisou que prosseguirá com ela, pondo na lista inclusive o recém-eleito primeiro-ministro do governo Hamas – tem verdadeiros efeitos práticos? A película é, garanto, profundamente deprimente. A resposta que nos dá é um redondo não, ainda que, em defesa de tal estratégia, um dos personagens argumente que não deixamos de cortar as unhas só porque elas voltam a nascer, para explicar porque, a seu ver, se deve continuar com tal política, ainda que o terrorismo surja, claramente, como uma Hidra, em que uma cabeça cortada dá logo lugar a duas. Avner, o protagonista, não aceita a explicação, resignando-se à vanidade das suas acções.

Munique é também um magnífico ensaio sobre como a violência altera para sempre um homem. Os membros da Mossad destacados para assassinar os responsáveis pelo planeamento de Setembro Negro começam, gradualmente, a ter dúvidas sobre a justeza moral da sua missão: ou não estarão eles, para todos os efeitos, a assassinar também?

«Uma oração pela paz»: assim chamou Spielberg ao seu filme que divide quantos o vêem. Deixemo-nos também dividir – é o convite que vos lanço.

Publicado a 29 de Março de 2006

Apelo Público

Três acontecimentos distintos precederam esta crónica. Nas últimas semanas antes desta pausa lectiva, alguns colegas meus dos agrupamentos de economia e artes tiveram de fazer um teste para aplicarem os seus conhecimentos gramaticais recentemente adquiridos: assim o obriga a inclusão de tal matéria – não leccionada em anos anteriores – no exame, forçando professores e alunos a verem num ano o que deviam ter visto em três. Se isto fora bastante para suspirarmos de requiem pela organização do país, acontece, porém, que algo mais de grave escondia o estudo dos meus amigos. Olhando para as suas fichas de trabalho, constatei a panóplia de nomes e designações gramaticais várias com que jamais me havia cruzado na minha carreira estudantil. Pedi-lhes que mo explicassem, o que prontamente fizeram, revelando-me que aqueles termos tinham sido difundidos por um qualquer iluminado do Ministério da Educação. Era o disparate cumprido e encarnado – para não mencionar o disparate intrínseco que é aprender gramática no secundário: de todo despropositado, se a Literatura é tão mais apaixonante.

Outro dia, numa amena conversa com outro meu conhecido, ele rejubilava, porque tirara boa nota num teste de português. Perguntei pela matéria da prova e ele respondeu-me: “discurso político”. Fiquei atarantado, sem compreender: não era ele do 11º de Humanidades? Nunca eu, em igual agrupamento, aprendera tal coisa. Esclareceu-me que era uma matéria dada agora em conjunto com o Sermão aos Peixes de P.e António Vieira, uma vez que os programas de português A e B haviam sido fundidos. Mas se era para fundir, que o programa de B se elevasse ao nível do A, nunca este se baixasse ao outro! Inquiri mais, e descobri – quão pouco informado andava! – que Amor de Perdição ou Folhas Caídas deixaram de constar das obras de estudo. Obviamente, algo de podre exalava cronicamente do reino do ensino do Português...

A minha imaginação é que não podia conceber barbárie como a que finalmente se revelou em todo o seu esplendor, há uma semana, num artigo de Maria do Carmo Vieira, aparecido no Público. Aí, denunciam-se Vpps, adjectivos relacionais, nomes epicenos, nomes agentivos. Se o leitor não percebeu, não se preocupe: eu também não. Mas estes são os palavrões inventados por um qualquer linguista que, doravante, devem ser ensinados no básico para classificar aquilo que antes eram adjectivos e substantivos.

Tenho vindo a denunciar sistematicamente nesta coluna atentados à inteligência dos alunos. Se não me engano (era tão bom que me enganasse!), daqui a pouco tempo, de novo me encontrarão vituperando sobre o mesmo assunto. Porém, o que hoje aqui apresento é, de tal forma, visceralmente repugnante ao trucidar a nossa pátria – que a “minha pátria é a língua portuguesa”, como dizia Pessoa – que exige que algo se faça contra tal. Lanço, pois, aqui o meu apelo público. Apelo para ti, aluno, não só porque isto é um claro atentado à tua dignidade e uma tentativa burocratizada de te estupidificar, mas porque desnecessariamente te complicam o que é simples; apelo para ti, professor, a quem esta reforma linguística obriga a que assistas pateticamente a acções de formação e que sabes, lucidamente, o quão errada ela é; apelo para ti, encarregado de educação, porque estão, obviamente, a manipular o teu educando, castrando-lhe a cultura; apelo para ti, cidadão, porque, com um ensino assim, permites que se fabriquem patetas que governarão o país em que vives. Apelo, no fundo, para todos os homens de boa vontade – e, mais que isso, de bom senso, que é o que falta abundantemente à Ministra.

Publicado a 1 de Março de 2006

Caricato(ura), não?

«Medo é remorso antecipado», confessava-se na peça de José Rodrigues Miguéis, O Passageiro do Expresso, que a Oficina de Teatro do Cértoma já representou entre nós. E o medo de Kåre Bluitgen parecia conter em si já o remorso pelo acto, como que, numa omnisciência estranha, previsse o que se seguiria. Embora poucos o saibam, este é o homem que espoletou toda a controvérsia dos cartoons, ainda que indirectamente. Autor do livro O Corão e a Vida do Profeta Maomé, o escritor teve grandes dificuldades em encontrar ilustradores para a sua obra, publicada este ano, por medo dos desenhadores de represálias de extremistas islâmicos. Foi em sabendo do caso que o director do obscuro jornal dinamarquês resolveu propor a alguns caricaturistas que representassem o Profeta – causando a confusão.
Compreenda-se que, em primeira análise, o que irritou a comunidade muçulmana foi a simples representação de Maomé, que é interdita segundo o Corão. Não podemos limitar a liberdade, num estado laico, a preceitos religiosos: existem hindus em Portugal e, tanto quanto saiba, ainda não houve qualquer petição para interditar o abate de vacas. Em segundo lugar, circularam pelos países árabes caricaturas de cariz sexual explícito, envolvendo o Profeta, que não foram publicadas em qualquer jornal ocidental. Houve, evidentemente, um aproveitamento do caso por parte das comunidades islâmicas. De facto, toda esta questão foi devidamente empolada pelos líderes religiosos dinamarqueses que, não obtendo a reacção tempestuosa que esperavam, elaboraram um dossier de 43 páginas que fizeram circular pelo mundo árabe, procurando assim espicaçar os seus irmãos de fé, para conseguirem a solidariedade que sentiam faltar-lhes. Tal atitude representa uma tentativa descarada de inflamar os ânimos. Registou-se um óbvio aproveitamento político da situação – que está longe de ser meramente religiosa.
Finda a Inquisição cristã, eis que se ergue, violentamente, o Santo Ofício de Alá. Os autos-de-fé não queimam pessoas, mas incendeiam embaixadas – e as fatwas já estão lançadas. Já em 2004, o filme de Theo van Gogh, Submissão, uma curta-metragem de dez minutos sobre a violência nas sociedades islâmicas contra as mulheres, acabou por ser a sentença de morte do realizador. O mesmo recurso à força agora é, para todos os efeitos, e independentemente da opinião que se possa ter sobre a polémica, uma transgressão muito mais gravosa das regras do Estado democrático do que a publicação dos cartoons. Não teria o cartunista que desenhou Maomé com um turbante-bomba, até um certo ponto, dentro dos limites de uma certa facção dos muçulmanos, acertado argutamente na sátira?
Reservando-nos ao direito de, moralmente, concordar ou discordar das caricaturas, não podemos, porém, unilateralmente, proibi-las. Esta caso está a abrir um precedente na opinião pública – tendencialmente favorável aos muçulmanos – que poderá ser hábil e erradamente manipulado. O direito de se exprimir – e com humor, como convém ao cartunista – não pode, não deve, ser interditado. De tal forma que, na mesma Dinamarca, foram publicados outras doze caricaturas satirizando o primeiro-ministro e a o tratamento dado por este ao caso. A partir do momento em que abrimos uma excepção para as religiões (e quantas vezes não foram satirizados cristãos e judeus?), temos de passar a considerar outros grupos como não passíveis de o serem, como ideologias políticas ou correntes filosóficas. E eis que, em nome do convívio saudável entre todos, a civilização da liberdade deixa-a cair, conquistada por uma falsa paz e pelo medo. Caricato(ura), não?

Publicado a 15 de Fevereiro de 2006