22 February 2006

Munique-Teerão

Amanhã estreia Munique, o novo filme de Spielberg, sobre a retaliação israelita após o sequestro, por palestinianos, da sua comitiva olímpica em Munique, em 1972. O espectro da vingança perpetrada por democracias ocidentais é tanto mais válido como tema de discussão se atentarmos nas recentes declarações de Chirac, defendendo o uso de armas nucleares para "a segurança dos nossos abastecimentos estratégicos" e como meio de dissuasão para “os dirigentes de Estados que utilizem meios terroristas, assim como aqueles que tencionem usar armas de destruição maciça”.

Se a proposta francesa força as fronteiras da razão, entrando no delírio, levanta, contudo, a mesma questão da fita de Spielberg: haverá um dever do bem de aniquilar, violentamente se preciso, o mal? Maniqueísta, a pergunta é dúbia, pois implica sempre uma definição de herói e de vilão. E se para o Ocidente o inimigo é o fanatismo muçulmano, para este, o Grande Satã é América e Israel. Elucidativas a este propósito são as afirmações de Ahmadinejad, presidente do Irão, que considera o Estado judaico “tumor maligno a riscar do mapa”, congratula-se pelo coma de Sharon, apelida de “mito” o Holocausto e sugere a transferência de Israel para a Europa.

Estas opiniões ganham tanta mais relevância quando o programa de enriquecimento de urânio foi, aquando da eleição de Ahmadinejad, retomado. A actual crise iraniana começa a atingir cumes insuportáveis, com o claro desprezo a que o Irão votou a Agência Internacional de Energia Atómica e a própria ONU. O acesso à energia nuclear por um tal fanático não é, por certo, para fins pacíficos, antes com o intuito de agressão ao Ocidente.

O Irão terá de/será atacado. Segundo país no «Eixo do Mal» de Bush, o ataque ao Irão é uma possibilidade remota neste momento, não obstante a necessidade que se lhe possa reconhecer. Só há três forças que poderiam comandar uma ofensiva e nenhuma agirá tão rapidamente. Israel encontra-se num clima de incerteza que não se dissolverá senão em finais de Março, quando for eleito um novo governo. Os EUA estão imobilizados: as suas tropas estão demasiado dispersas e as campanhas de recruta angariam cada vez menos jovens. Só com o abandono total do Afeganistão e do Iraque é que uma tal acção militar poderia começar a ser ponderada. Em termos de opinião pública, a América sofre do problema de Pedro e o Lobo: tendo mentido aquando do Iraque, agora, ainda que as razões sejam justas e acertadas, ninguém acreditará. A Europa, essa, nunca avançará sem os EUA, se bem que se coligará efectivamente – não como aquando do Iraque – com eles.

Porém, uma tal intervenção bélica poderia não redundar nos efeitos desejados. Os regimes islâmicos radicalizaram-se, tanto em Agosto com a eleição de Ahmadinejad, como na semana passada com a vitória expressiva do Hamas na Palestina. A violência no Iraque persiste – o plano para o Médio Oriente parece estar redondamente a falhar. Um ataque-relâmpago, o suficiente para resolver a crise a curto prazo, obrigaria a um segundo ataque dos EUA, posteriormente, tal como aconteceu após a incompleta primeira guerra do Golfo. Porém, um mero ataque aéreo às fábricas atómicas poderia desencadear uma resposta violenta, como o confirmou um Guarda da Revolução: “Se formos alvo de um ataque militar, usaremos a nossa muito eficiente defesa de mísseis”. O Irão poderia avançar com uma invasão do Iraque, gozando do apoio da maioria xiita iraquiana – ou, pior, atirar-se a Israel. Eis a nova Guerra Fria: passada nos desertos, quente como eles. ■ o corvo

Publicado a 1 de Fevereiro de 2006

Belém (e não é Natal!)

“Como não vamos ter novo contacto antes da realização desse evento, é inevitável que falemos disso.”, escrevia o Helderix, na última semana. Inevitavelmente, pois, aqui crocito, sobre o mesmo, mais: grito de corvo entre as macacadas de velhos lobos nestas presidenciais.

Há um candidato, cujo nome não me relembro, que insiste em ser discriminado pelos media – não, não é Garcia Pereira, cujo protesto seria até inteligível. É outro, cujo nome – maldição! – não me ocorre, esquecido, por decerto, devido à sua parca cobertura mediática. Candidato mp3, chamam-lhe os jovens da sua candidatura, mas o mp3 parece-me mais vinil: muda o disco e toca o mesmo. “Soares é fixe!”, gritam esses seus pequenos apoiantes, mas a verdade é que aquele-cujo-nome-não­-me-lembro é fixíssimo: palavra do próprio! Para além de que, profissionalmente falando, é versado em jurisprudência, filosofia e história: em suma, político profissional, coisa que a Esfinge afirma não ser. Mas porque recorro a um impropério do fixíssimo? Ele mesmo confessara na pré-campanha que não mais atacaria os outros adversários: porque infrinjo no meu crocito o que o concorrente tão bem praticou? Se acaso deslize houve no cumprimento do juramento, foi erro, tal como é erro, se Cavaco ganhar, a candidatura do mp3-vinil: assim ele nos garantiu há uma semana. Erro é pois, de facto.

É assustador verificar que o grande objectivo das candidaturas de esquerda é travarem a direita, num regime em que o Parlamento é, por maioria absoluta, dessa mesma esquerda. Fosse de direita, e entenderia a necessidade de equilibrar os poderes – não é o que sucede. Mais, todo este discurso maniqueísta esquerda/direita pretende somente radicalizar o adversário de uma forma estúpida e o facto de Cavaco continuar a subir nas sondagens só demonstra como este técnica falhou rotundamente. Em contrapartida, o falso sebastianismo cavaquista tem singrado, com um messianismo envolvendo a sua figura, usurpada a Soares, o “Pai da Pátria”, que passou a “grande perturbador nacional”. Este coitadismo, este fazer-se de vítima, era típico de um outro político: Santana Lopes. Não me espantaria ver Soares a clamar pelo contraditório...

A Cavaco parece pouco import(un)ar Soares, que tratou de se encontrar com Valentim Loureiro, quando o Sr. Silva foi recebido na Madeira (por aquele que Louçã expulsaria do poder). Alegre, para não ser incomodado pelas companhias, escolheu um morto, mas até assim o partido comunista criticou a invocação em vão do santo nome de Cunhal, o que é só mais um testemunho da infeliz campanha de Jerónimo. Este, no insulto, seguiu as passadas de Soares, apelidando Cavaco, por exemplo, de “sábio macaco”. Igualmente lamentável foi o discurso primitivo comunista sobre os apoios capitalistas da campanha de Cavaco. Quando foi feita pressão para que Cavaco revelasse os financiadores da campanha, só Alegre revelou simpatia para com o criticado – talvez por a sua própria campanha não ter dinheiros partidários. Pois nestas presidenciais temos candidaturas suprapartidárias, semi-partidárias e ex-partidárias!

Não vai haver segunda volta porque as pessoas estão cansadas de “muito barulho para nada”, como dizia a comédia de Shakespeare, como diz a comédia do país. Cavaco ganhará como César: ueni, uidi, uici. Vencerá porque as pessoas estão cansadas – há uma saturação de política: os eleitores desejam que o farrobodó cesse, cesse depressa. A tal esquerda perderá – e a culpa é toda e inteiramente sua. ■ o corvo

Publicada a 18 de Janeiro de 2006

Elegia Natalícia

Anunciava o Expresso, na sua edição de 23 de Dezembro, que o postal de Natal do presidente Bush aos seus concidadãos omitia qualquer referência a Jesus e dele não constava a palavra Natal, desejando-se antes uma boa holiday season, ‘época de férias’. O artigo do semanário continuava garantindo que o presidente da Câmara de Nova Iorque inaugurara não uma árvore de Natal, mas uma “árvore das Festas”. O caso recordou-me quando, na altura da invasão do Iraque, devido à oposição francesa, na cantina do Senado, as batatas fritas (french fries) viram o seu nome mudado para “liberty fries”, o que omitia as referências aos franceses. A linguagem é pródiga em manipulações hábeis na verborreia política.

A mesma linguagem, contudo, é explícita nas suas raízes: Natal, etimologicamente, significa nascimento – um homem velho de barbas tem, por natureza, de estar deslocado de uma quadra assim intitulada. Deambulando pela nossa terra, porém, descobri Pais-Natal subindo escadas dependuradas da varanda. O objecto ridículo, saído de uma qualquer loja dos trezentos, indigna-me pela sua a-estética e mau gosto, produto descartável – como as fraldas.

Estas decorações confirmam que enfrentamos uma campanha exaustiva de erradicação do imaginário cristão do Natal. Na festividade original, pagã, à qual parece termos retornado, adorava-se o Sol (celebrava-se o solstício de Inverno); hoje, venera-se o Pai Natal, escalando nas suas escadinhas excêntricas as varandas dos mealhadenses e outros portugueses. A própria figura do homem de vermelho tem origens cristãs (comemoradas, por exemplo, na Alemanha), mas mesmo isso foi propositadamente ignorado para se tornar num simples produto de mercado.

Esta operação de maquilhagem dos símbolos religiosos, levada ao extremo, obrigaria à remodelação completa das decorações públicas natalícias: desde a inocente estrela até ao presépio do jardim frente à Câmara. Por detrás desta perseguição, redescobrimos a mentalidade subjacente à polémica da retirada dos crucifixos. Se condeno, de ambas as partes, o comportamento (o número de escolas ainda com crucifixos era irrisório), ele constitui, porém, um sinal claro de toda uma forma de pensar anti-religiosa. Ironia – com essa ironia da hipocrisia humana, para homenagear Sá Carneiro no aniversário da morte, optou-se por uma cerimónia de cariz religioso. São incoerências assim que minam toda a credibilidade de quem as pratica.

Há um mal-estar com a religião, como se se tratasse de algo anti-natura, repelente até. Em Portugal, relega-se a disciplina de Educação Moral e Religiosa Católica para horários inconvenientes, ou seja, última hora do dia. Em países “retrógrados”, como a Finlândia, trata-se de uma cadeira obrigatória – de nome diferente consoante o credo do estudante – e, no caso dos ateus ou agnósticos, existe, em alternativa, ‘Ética’. Aqui, na tradição histórica do cultivo da aparência, guardamos a casca – e cuspimos a polpa. Instalou-se, paulatinamente, este pensamento moderno de que não é preciso ser-se crente para celebrar o Natal, sob a tese de que se trata de uma festa sem conotações bíblicas: uma reunião da família, tempo de paz e amor. Porém, acaso os ateus, nos países muçulmanos, celebram também o Ramadão? Ou, em Israel, comemorarão eles a Páscoa judaica? Acontece que, tanto quanto sei, em nenhuma dessas outras festividades se oferecem prendas, pelo que, posto isto, penso enfim perceber a falta de interesse que têm em as comemorar…o corvo

Publicado a 4 de Janeiro de 2006

«É Milhor De Decer Que De Subir»

Já o preguei várias vezes deste meu púlpito e não cesso de o fazer: nas escolas portuguesas está em curso um processo de estupidificação dos alunos. «O analfabetismo protege o analfabetismo» acusava Vasco Pulido Valente na sua coluna do Público, a propósito do fim dos exames nacionais a Português, medida entretanto revogada. Contudo, só a disposição, por parte da malograda ministra, de o fazer deve preocupar. A situação recorda-me a proposta polémica, de há uns anos, de retirar os Lusíadas do secundário.

O conhecido professor Carlos Reis denunciou, argutamente, que a retirada do exame é a definitiva subalternização das ditas Humanidades aos cursos científicos. Tudo se processa no sentido inverso: acertado para a ministra seria, por exemplo, retirar a distinção entre Português A e B. Não deve um cientista ou economista conhecer Camilo e Antero, dois dos renegados da segunda variante? Enquanto desdenha estes, o programa mitigado contenta-se em ocupar os alunos ensinando-lhes conteúdos gramaticais aprendidos no segundo ciclo, mas, agora, com designações novas. Inconcebível é igualmente o estudo cronologicamente desordenado dos autores previsto no programa, não permitindo uma visão de conjunto e continuidade como o faz, por exemplo, o seu irmão mais velho, o Português A. E, entrementes, alegremente concebemos iliteratos. O que mais indigna é a Associação de Professores de Português ter-se pronunciado pelo fim do exame – não entendi ainda o paradoxo.


Semelhantemente queria a ministra fazer a Filosofia, disciplina que seria dramaticamente reduzida em Coimbra, não fora o exame ser exigido como prova de ingresso pela Faculdade de Direito e ser obrigatória – por ora! – no décimo e décimo primeiro anos. Os currículos de Filosofia podem ser comparados aos de Ciências pelo primitivismo de ambos. Em pleno século XXI, aqueles que não optaram pela via científica no liceu, chegam ao final do ensino básico sem terem ouvido falar da teoria da evolução, da complexidade do genoma humano, da física quântica ou da teoria da relatividade. O que desta conheço é graças ao livro Mais Rápido que a Luz, de João Magueijo, físico português que ensina em Inglaterra.


Do mesmo modo, no fim do décimo primeiro ano, a Filosofia, não foram abordados Kant, Hume, Descartes, Nietzsche ou Hegel. O desconhecimento deste último, a título de exemplo, implicou que tivesse de ser a professora de português a dar umas noções muito gerais de Hegel aquando do estudo de Viagens na Minha Terra, onde a teoria do filósofo alemão ocupa lugar de destaque. A triste verdade é que, fora Piaget e a Fenomenologia, aprendi mais lendo O Mundo de Sofia de Gaarder do que ao fim desses dois anos de Filosofia escolar; e, no que respeita à Lógica, o que sei devo ao pouco que li d’ O Lugar da Lógica na Filosofia, do português Desidério Murcho, mais um emigrado em terras inglesas.

Tiram-se exames quando estes deviam ser aumentados. Se o grau de exigência não subir, ao invés de diminuir, como constantemente verificamos, prosseguiremos com uma nação decrépita. Sem conhecimentos linguísticos decentes, os alunos são até incapazes de perceber os enunciados matemáticos. Mas, ai!, é que em Portugal, para todo o obstáculo, para todo o monte no caminho, para todo o desafio, ecoam aqueles versos do Poeta «...aquele outeiro/É milhor de decer que de subir»!

Publicado a 21 de Dezembro de 2005